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3 ÀS CIDADES, A CIDADANIA

3.2 QUANDO O DISSENSO ENTRA EM CENA

Com a finalidade de reaproximar a estética da política em uma direção que se confronte com a sua espetacularização, Rancière (2005a) propõe o rompimento com a lógica dicotômica que coloca o sensível e a razão lógica em polos opostos. Nesta perspectiva, retorna a Baumgarten e Kant, reconhecendo-os como os precursores do que iria se tornar, mais tarde, a concepção de estética como teoria da arte. Importa-lhe destacar, nas obras destes autores, limites importantes: nenhum deles foi capaz de construir uma teoria estética que superasse a dicotomia entre o sensível e a razão, tampouco reconheceram que o sensível é, sim, inteligível, mesmo que guarde em si certa confusão. Segundo Rancière, a ruptura com a oposição razão versus sensível, capaz de assegurar um novo estatuto à estética, só viria mais tarde, com o período romântico

[que] força, de fato, a linguagem a penetrar na materialidade dos fatos através dos quais o mundo material e social se torna visível a si mesmo, ainda que sob a linguagem muda das coisas e da linguagem cifrada das imagens [...] uma maneira de dar sentido ao universo empírico das ações obscuras e dos objetos banais. (2005a, p. 54-55).

É só então que a estética permitirá que se compreenda o “conhecimento confuso” como aquilo que transforma a arte em território de um pensamento que, encontrando-se fora de si mesmo, é idêntico ao não pensamento. Neste sentido, a estética admitirá a existência de “um pensamento daquilo que não se pensa” (RANCIÈRE, 2009, p. 13, grifo do autor). Assim sendo, Rancière constrói uma concepção inovadora da estética como teoria, conferindo-lhe historicidade e distinguindo-a da disciplina que, até então, tratava a arte de modo isolado.

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Com isto, a estética passa a designar “um modo de pensamento que se desenvolve sobre as coisas da arte e que procura dizer em que elas consistem enquanto coisas do pensamento” (RANCIÈRE, 2009, p. 11; 12).

Para o filósofo, o caráter revolucionário do regime estético das artes se encontra no fato de este abolir um “conjunto ordenado de relações entre o visível e o dizível, o saber e a ação, a atividade e a passividade” (RANCIÈRE, 2009, p. 25). Sendo assim, o autor oferece as condições para fazer emergir a identidade de contrários própria do modo de ser das artes, ou seja, quando agir e padecer, saber e não saber se encontram no fazer artístico.

Colocar essas ideias em diálogo com a política permite a Rancière dois movimentos: primeiro, evidenciar a existência de uma partilha do sensível mediante a qual se define o comum entre diferentes, o que deste se tornará ou não visível e o que cabe a cada um que compartilha deste comum. O segundo é demonstrar como a emergência da contradição se torna o pressuposto para a instituição do dissenso (ou desentendimento) em relação à lógica da dominação a qual naturaliza uma ordem de corpos que fundamenta uma partilha sobre o princípio da desigualdade, que também orientará a definição de suas partes: quem pode falar, quem é visível, quem participa (e como) das decisões que dizem respeito ao que é comum a todos e que, em última instância, é o objeto de que trata a política.

Por desentendimento, compreenda-se “uma determinada situação de palavra: aquela em que um dos interlocutores ao mesmo tempo entende e não entende o que diz o outro” (RANCIÈRE, 1996, p. 11) não por desconhecimento daquilo que se diz ou pelo fato de cada um estar dizendo algo diferente do outro, mas porque ambos usam os mesmos termos para explicitar coisas diferentes. O desentendimento, ademais, não diz respeito apenas ao que se fala, mas, também, à situação de quem fala. Nesta perspectiva, o tipo de experiência de partilha política é crucial para a definição de quem pode e quem não pode falar, quem pode e quem não pode tomar parte nesta partilha. Por este motivo, os processos de tomada da palavra serão sempre transgressores.

Nas manifestações populares atuais, para localizar pistas, traços que nos levem a evidências de ter havido ou não desentendimento, é preciso recorrer aos registros que comunicam a prática política. Por meio de manifestos, artigos, vídeorreportagens, debates,

posts, memes e de outros tipos de registros que documentaram manifestações políticas,

buscamos conhecer se, em meio à cacofonia das multidões, as práticas políticas confrontam e rompem com a ordem de “polícia” que determina verticalmente os espaços e os modos de partilha (RANCIÈRE, 1996; 2012). Mas isso, isoladamente, nos parece insuficiente, dado o fato de serem estas formas de comunicação que afirmam o poder da palavra.

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É preciso ir além e buscar registros do desentendimento em outros tipos de “enunciação coletiva que redesenham o espaço das coisas comuns” (RANCIÈRE, 2012a, p. 60). Estamos nos referindo a enunciações que mostrem “o que dispensa palavras, o horror dos olhos furados” (RANCIÈRE, 2009, p. 22), ou seja, a invisibilidade de corpos em um determinado espaço, uma vez que a ruptura provocada pelo desentendimento começa

[...] quando seres destinados a permanecer no espaço invisível do trabalho que não deixa tempo para fazer outra coisa tomam o tempo que não têm para afirmar-se como coparticipantes de um mundo comum, para mostrar o que não se via, ou fazer ouvir como palavra a discutir o comum, aquilo que era ouvido apenas como ruído. (RANCIÈRE, 2012a, p. 60).

É, portanto, nesse vértice, nessa tensão instituída pelo desentendimento que se dá a perceber a política, compreendida como “invenção de uma forma de comunidade que suspende a evidência das outras, instituindo relações inéditas entre as significações e os corpos, e os seus modos de identificação, lugares e destinos” (RANCIÈRE, 2010, p. 427). É nesta tensão, também, que se evidencia o caráter estético da política, ou seja, aquilo que a torna revolucionária: em nome da igualdade entre diferentes, fazer emergir o dano, transgredir a ordem e instituir, por meio de novas vozes dissonantes em cena, uma comunidade inédita.

Toda nova comunidade, de algum modo, rompe com aquela que existia anteriormente. É inédita porque torna comum o que não era comum entre seus integrantes, “declarando como atores do comum aqueles ou aquelas que não eram mais do que pessoas privadas, fazendo ver como relevando da discussão política assuntos que relevavam da esfera doméstica, etc.”, afirma Rancière (2010, p. 425).

A tensão estabelecida pela introdução do desentendimento em cena se contrapõe à concepção de esfera pública, segundo Habermas (apud ORTEGA, 2001) para quem os sujeitos seriam já previamente reconhecidos e legitimados. Tal reconhecimento o leva a tratar as diferenças como algo que pertence à esfera do interesse privado e que, portanto, “são suprimidas para defender a ideia de que os argumentos devem ser avaliados segundo os seus méritos e não segundo a identidade dos argumentadores” (ORTEGA, 2001, p. 226).

Nessa perspectiva, a comunidade inédita é o acontecimento que abre a possibilidade para uma mudança radical nas formas de partilha do sensível entre todos os que fazem parte desse comum, reforçando a heterogeneidade como elemento fundador e da qual não se abre mão. Este é, portanto, o tipo de comunidade que toma o conflito como parte inseparável do jogo político igualitário.

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Portanto, como elemento de tensão permanente, o desentendimento pressiona os lugares de poder instituídos e legitimados visando a alterar as disputas no jogo político em direção à instituição de uma partilha igualitária. Compreendemos, desta forma, que a retomada do espaço urbano como lugar de confronto direto com o poder não se constitui apenas como lócus de pressão, mas, também, como uma práxis que expõe o que, muitas vezes, é difícil admitir: o limite das instituições políticas e a crise do sistema representativo.

Essa perspectiva se faz presente nas maneiras como movimentos, como o dos ¡Indignados!, por exemplo, se autodefinem: mobilização de “pessoas normais e correntes. Somos como tu” ou ainda como “cidadãos de distintas ideologias” que começaram um movimento apartidário surgido no “calor da internet e das redes sociais através de um grupo de discussão completamente informal” (CABAL, 2011, p. 9).25

No Brasil, vários movimentos e coletivos que vêm se formando, pelo menos desde 2005, se autoidentificam de modo semelhante. Encontramos alguns exemplos por todo o país, como, no Rio de Janeiro, o Fórum de Lutas Contra o Aumento das Passagens (2012) “criado por cidadãos do Rio de Janeiro que desejam o fim do aumento da tarifa de todos os transportes públicos da cidade. Movimento horizontal e de todos”26; em Fortaleza, o Movimento Quemderaserumpeixe (2012), “movimento cidadão, apartidário e político” declara: “acreditamos que a cidade pode ser pensada para os seus cidadãos. E somos contra a truculência dos grandes mercados do turismo e imobiliário em que poucos lucram e todos pagam a conta”27; no Recife, o Grupo Direitos Urbanos (2012), “articulação de pessoas

interessadas em política e preocupadas com os problemas da cidade do Recife [...] foi se expandindo através das redes sociais e começou a transformar suas preocupações em ação”28; em São Paulo, o Movimento Passe Livre (2005), “horizontal, autônomo e apartidário, mas não antipartidário. A independência do MPL se faz não somente em relação a partidos, mas também a ONGs, instituições religiosas, financeiras etc.”29

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Antes de entrar nas considerações sobre a experiência estética nessas ações coletivas, importa dizer que a presença desses novíssimos sujeitos coletivos, que vêm experimentando mudanças nas formas de organização e construção da ação política – mesmo que sem romper

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Tradução livre. Trechos no original: “personas normales y corrientes. Somos como tú [...] ciudadanos de distintas ideologías [...] “calor de la internet e de las redes sociales a través de un grupo de discusión completamente informal”.

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Disponível em: <https://www.facebook.com/forumcontraoaumento>. Acesso em: 20 ago. 2013.

27

Disponível em: <http://acquarionao.wordpress.com/about/>. Acesso em: 22 set. 2012.

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Disponível em: <http://direitosurbanos.wordpress.com/>. Acesso em: 22 set. 2012.

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totalmente com o passado30 –, criou um terreno propício aos acontecimentos de junho de 2013. Em muitas cidades, tornaram-se os próprios protagonistas dessas ações.