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Mariângela Gama de Magalhães Gomes

4. Acerca da apreciação político-criminal dos crimes de posse

4.3 A posse de publicações de pornografia infantil

Pela regra do § 184b, IV, parte final, do Código Penal alemão, é punível a posse de publicações de pornografia infantil. Esse preceito deita raízes em iniciativa do Parlamento alemão e em uma recomendação do Conselho Europeu48 e foi elaborado com o

principal propósito de impedir a produção de pornografia infantil, seja pelo seu banimento ou a partir de uma considerável redução em sua circulação.49 Seguramente, a produção pornográfica infantojuvenil está submetida a uma pena nos termos dos §§ 176, 176a, 180 e,

em alguma medida, nos do § 174, todos, do Código Penal alemão. Contudo, na maioria dos casos, não se pode chegar ao produtor do material pornográfico-infantil, dado que esse agente, como indivíduo, não é reconhecível nas ilustrações. Assim, o foco volta-se, por meio da demanda de seus compradores, para a identificação dos produtores de pornografia infantil, visando a que o sancionamento da aquisição desse material – penalmente punida pela proibição da posse – conduza a não produção ou à sua considerável diminuição. Por

46.. Sobre a crítica, conferir: nelleS-velten. Einstellungsvorschriften als Korrektiv für unverhältnismäβige Strafgesetze? In: NStZ, 1994. p. 366 e ss.; Staechelin, Georg. Don´t

“Legalize it”, but “Opportunize it”. In: JA, 1994. p. 245 e ss.. 47.. Ver: Staechelin, Georg. Op. cit., p. 246.

48.. Sobre a origem da norma, ver: Schroeder, Friedrich-Christian. Pornographieverbot als Darstellerschutz? In: ZRP, 1990. p. 299; Schroeder, Friedrich-Christian. Das 27.

Strafrechtsänderungsgesetz – Kinderpornographie. In: NJW, 1993. p. 2581.

49 . Schoroeder mostra as inconsistências de alguns fundamentos utilizados como justificativa do projeto do governo de criminalização da matéria, em: Schroeder, Friedrich-Christian.

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isso, o tipo penal de posse não é absoluto nessa seara. Segundo o § 184b, IV, 1.ª parte, do Código Penal alemão, é igualmente punível a ação de buscar pornografia infantil. Em contrapartida, a norma que incrimina a posse economiza intensas investigações acerca do modo de procura ou busca e, com isso, supera qualquer dificuldade persecutória na hipótese de não se saber se o possuidor das publicações de pornografia infantil teve algum envolvimento em sua produção.

Nos comentários à Lei, a nova redação legal dada a esse delito foi recebida com bastante perplexidade. Lenckner, Perron e Eisele

escreveram que mal poderiam reconhecer um motivo legítimo para a punição.50 Para Hörnle, seria extremamente duvidoso que, quando

se tratasse de material pornográfico infantil, a persecução penal fosse apta a legitimar um tipo penal autônomo,51 enquanto que, para

Kühl, não seria nada convincente o propósito de fundamentar o tipo de posse no dever de impedir a demanda por pornografia infantil.52

Apesar das objeções levantadas por esses autores, a meu sentir, é possível encontrar fundamentos que justifiquem a defesa do tipo penal em análise. Em primeiro lugar, resulta claro que, aqui, diferentemente do que sucede no caso da posse de drogas, não se trata de evitar a transmissão dos objetos possuídos com o fim de que o adquirente não seja prejudicado. Inclusive, cumpre não perder de vista que, nesse caso, a grave violação à infância já ocorreu.

Esse crime pode ser entendido como um “tipo de conexão”53 e, certamente, como um tipo autônomo que reúne partes dos crimes

de receptação (§ 259 do StGB) e de favorecimento real (§ 257 do StGB), além de ser caracterizável como “promoção da produção de pornografia infantil”. Ao contrário do que ocorre na posse de drogas, quando a finalidade de enfraquecer o “mercado” provoca a equivocada legitimação da punibilidade do indivíduo, aqui não se trata do obscuro e vago propósito de empreender uma luta contra redes comerciais inacessíveis, mas sim de impedir que ocorram casos concretos gravíssimos de violência sexual contra crianças e adolescentes.

50.. lenckner, Theodor; perron, Walter; eiSele, Jörg. In: Schönke-Schröder. StGB. 27. ed., 2006. § 184b, n. 8.

51 hörle, Tatjana. Münchener Kommentar, 2005. § 184b, n. 29.

52.. kühl, Kristian. In: lackner-kühl. StGB. 25. ed., 2004. § 184b, n. 8.

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Quanto à similitude desse tipo com o de receptação, destaque-se que Schroeder parte da tese de que hoje se “reconhece que o fundamento penal para a receptação está no incentivo à prática de delitos contra o patrimônio que ela, de um modo geral, provoca”.54

Similarmente, o desejo de ter pornografia infantil seria o motor de sua produção. Contudo, não restam dúvidas de que existem algumas objeções contra o emprego dessa fundamentação para justificar a punibilidade do crime de receptação. Duas delas, apesar de poderem ser relativizadas, são de peso.

A primeira objeção parte da ideia de que as representações de pornografia infantil, diferentemente do que ocorre com os objetos roubados, tendem a se multiplicar e a serem divulgadas. Assim, o efeito de incentivo que se origina com o adquirente individual teria pouca relevância e não seria bastante para justificar a punição. Um incentivo digno de pena só será alcançado se houver o acréscimo, ao comportamento do possuidor individual, o de todos aqueles que também receberam o objeto em questão, ou seja, praticamente um “crime de acumulação”.55 Contudo, essa objeção se depara com a criação de uma fundamentação penal ex iniuria tertii.56

Disso se originam inúmeros problemas que, todavia, não demandam, nesse contexto, uma análise detalhada. Schroeder expõe que a pornografia infantil é, na maior parte das vezes, solicitada e produzida na forma de vídeos privados e em pequena escala.57

ainda que se descobrir se, como Schoroeder sustenta, essa forma de produção está ligada, principalmente, à atração dos aficcionados de última hora, que divulgam pornografia infantil em pequena escala, ou a um grave encobrimento de tais relações privadas, o que, até o momento, não recebeu a devida importância. De todo modo, dentro dessas relações, alguns clientes, mormente os que pertencem ao grupo permanente de receptadores, são naturalmente incentivados a realizarem uma posterior produção de pornografia infantil, o que se compara ao incentivo, que nasce da conduta do receptador.

A segunda objeção consiste na invocação do princípio da autorresponsabilidade. Segundo esse axioma, cada um deve orientar seu comportamento, ab initio, de modo a não provocar, por si, lesão a bens jurídicos alheios. O princípio da autorresponsabilidade não traz

54.. Schroeder, Friedrich-Christian. Pornographieverbot als Darstellerschutz? In: ZRP, 1990. p. 300.

55.. Essa categoria delitiva foi primeiramente desenvolvida por Kuhlen. Sobre isso, ver: roxin, Claus. Op. cit., t. I, § 8, n. 80 e ss.

56.. paStor muñoZ, Nuria. Op. cit., p. 804.

57..Schroeder, Friedrich-Christian. Pornographieverbot als Darstellerschutz? In: ZRP, 1990. p. 300; Schroeder, Friedrich-Christian. Das 27. Strafrechtsänderungsgesetz –

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qualquer comando para que se impeça que outros lesionem bens jurídicos. Schroeder entende que esse princípio não deve ser reconhecido e ressalta que, ainda que fosse, seu reconhecimento se daria de forma extremamente limitada.58 Essa proposta nos conduz a complexas

controvérsias. De qualquer forma, a criação de estímulos para a realização de crimes não pode ficar impune, ainda que sua ocorrência esteja ligada a um autor de crime já consumado. Para se verificar a correção dessa assertiva, recorde-se do crime de receptação.

Por outro lado, nosso tipo penal de posse também contém elementos que se assemelham aos do crime de favorecimento real.59 Se

quem é o adquirente e possuidor das publicações de pornografia infantil – como acontece na maior parte das vezes – as obtém pagando por sua aquisição, disso se conclui que o produtor desse material colhe os frutos de sua obra. É extremamente discutível se esses frutos são benefícios indiretos que se subsumem ao crime de favorecimento real previsto no § 257 do StGB.60 Entretanto, não se chegará a isso,

posto que não há um exato paralelismo.

O fomento à produção de publicações de pornografia infantil está abarcado pelo tipo penal do § 184b, IV, parte final, do StGB e pode ser enquadrado dentro do âmbito de preceitos penais amplamente reconhecidos, tais como os de favorecimento e receptação, respectivamente, §§ 257 e 259, ambos, do StGB. Por meio do binômio inventivo versus recompensa, esse fomento adquire caracteres similares à instigação e à cooperação, apesar de não se tratar de uma participação pura. O preceito não é, portanto, ilegítimo, ainda que, a partir da leitura do § 184, IV, primeira parte, do StGB, surjam dúvidas acerca de sua necessidade.

Independentemente de outras considerações, o tipo penal deverá ser interpretado estritamente. Desse modo, deve permanecer impunível a posse de publicações de pornografia infantil quando não houver a solicitação de sua remessa ou, então, quando essas publicações forem adquiridas de boa-fé. Aqui, falta a criação de incentivos ao crime e à aquisição de benefícios indiretos oriundos do delito.