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Alcance da autoridade da coisa julgada de uma condenação por um crime de posse

Mariângela Gama de Magalhães Gomes

8. Alcance da autoridade da coisa julgada de uma condenação por um crime de posse

A problemática pode ser mais bem explicada, lançando-se mão de um exemplo. Veja-se o seguinte caso julgado pelo Tribunal Regional Superior de Zweibrücken:25

Em junho de 1985, o Ministério Público denunciou um indivíduo, que, no final de janeiro de 1983, havia matado uma mulher mediante o disparo de três tiros de uma arma adaptada para festim. Em agosto de 1984, esse sujeito fora condenado, por sentença

22.. BverG, t. 45, p. 434; BGHSt, t. 8, p. 92 e ss..; BGHSt, t. 26, p. 284 e p. 285; BGH, NJW, 1981, p. 997.

23..* (N.T.) Bundesgerichtshof – BGH. No Brasil, guardadas as devidas diferenças, esse Tribunal é equivalente ao nosso Superior Tribunal de Justiça. O BGH não se confunde com o Tribunal Constitucional Federal alemão.

24.. Primeira sentença do BGH nesse sentido em: BGH, t. 29, p. 288.

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transitada em julgado, em razão de ter exercido poder sobre essa mesma arma, em unidade de ações com seu porte. Essa decisão se baseou na comprovação de que, no dia 17 de fevereiro de 1983 – dia anterior à apreensão da arma pela polícia – e em espaço de tempo prévio a essa data, o acusado teria exercido o poder de fato sobre a arma e a teria portado, ao escondê-la em seu automóvel. Essa posição foi corroborada pelo fato de que, até aquele momento, o acusado não havia descartado a pistola. Em outros termos, até aquele momento, o acusado tinha o domínio da arma, posto que a portava ao mantê-la escondida no automóvel de seu uso.

Quase na mesma época, o Tribunal Regional Superior de Hamm teve de se pronunciar sobre um caso similar.26 Pelas regras de

concurso já expostas, a posse de arma é um delito permanente que, para o direito material, constitui uma “unidade de ação”. Enquanto durar a posse, esse crime se encontra, simultaneamente, em unidade de ação com os atos relativos ao porte da arma.27 No mesmo

sentido, não se deve perder de vista que os crimes cometidos com o emprego da arma estão em unidade de ação com o porte e a posse.28

O princípio de direito material, que dispõe sobre a unidade de ação, fundamenta também a identidade fático-processual. Assim, nos casos analisados pelos Tribunais Superiores de Zweibrücken e de Hamm, o crime de homicídio não poderia ter dado ensejo à ação persecutória, posto que ocorrera a extinção da prerrogativa estatal de deflagrar a ação penal. As instâncias judiciárias prévias já haviam decidido dessa mesma forma, ao recorrerem à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal alemão (tomo 31, p. 29) sobre unidade de ação no direito material. Inclusive, o Supremo Tribunal Federal alemão afirmou, pouco tempo depois da decisão do tomo 31, a identidade fático-processual entre o crime de homicídio e o de posse de armas,29 acentuando especialmente o “princípio da

indivisibilidade do fato”.

No entanto, o Tribunal Regional Superior de Zweibrücken pontuou – e com razão – que, nas decisões do Supremo Tribunal Federal alemão, somente se tratou de abarcar exaustivamente o fato imputado e, também, de incluir, além dos crimes de homicídio e lesões corporais, os delitos de armas. Em outros termos, o Supremo Tribunal Federal alemão não se pronunciou a respeito de eventual desistência da persecução do crime mais grave para preservar a autoridade da coisa julgada de uma condenação por um

26.. StV, 1986, p. 241, com análise de Grünwald. Para outras análises sobre essa decisão, ver: PUPPE, JR, 1986, p. 205; NEUHAUS, NStZ, 1987, p. 138. 27.. BGHSt, t. 29, p. 184 e p. 186; BGHSt, t. 31, p. 29 e 30; BGH, NStZ, 1984, p. 171 e ss.; NStZ, 1985, p. 221.

28..BGHSt, t.11, p. 67 e p. 68; BGHSt, t.31, p. 29 e ss., trazendo outras referências; BGH, StV, 1984, p. 171 e ss.; NStZ, 1985, p. 221. 29.. NStZ, 1985, p. 515.

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delito relativamente insignificante. Ou seja, a afirmação de identidade de ação não tinha como resultado – nos casos decididos – o abandono da persecução penal, mas a sua facilitação. As decisões do Supremo Tribunal Federal alemão lidavam apenas com a análise de consequências dentro do Direito Penal material. A problemática abarcou a controvérsia sobre a admissão do concurso formal ou material,30 que é um problema que, no máximo, tem efeitos marginais sobre o marco penal e a dosimetria da pena.

Tanto o Tribunal Regional Superior de Zweibrücken quanto o de Hamm chegaram à conclusão de que o delito de homicídio poderia ser objeto de uma persecução penal. O Tribunal de Zweibrücken partiu do direito material e favoreceu a concepção, ocasionalmente sustentada na jurisprudência, no sentido de que “entre o crime permanente, que se refere ao exercício do poder de fato, tal como o porte de arma de fogo, e o crime de homicídio, deve ser admitida a pluralidade de ações (...)”.31 Acrescentou o argumento de que uma decisão diferente conduziria “a um resultado grosseiramente discrepante das considerações de justiça”. No mesmo tom, o Tribunal Regional Superior de Hamm, que dispôs que: “se em um caso semelhante se produzisse a extinção da ação penal com relação ao crime de homicídio, então, o conteúdo do desvalor que nele se manifesta não seria nem de longe submetido a uma valoração justa”.32

A meu sentir, o último argumento parece ser o mais importante materialmente, apesar de se constituir, desde o seu ponto de partida, em um manifesto equívoco. Além do mais, ele implica a eliminação do instituto da coisa julgada material ou, na melhor das hipóteses, deixa a autoridade da coisa julgada à mercê das amorfas “considerações de justiça”. O sentido e o conteúdo do instituto da coisa julgada material estão, justamente, em sua capacidade de interromper a investigação processual penal da verdade, produzindo uma resignação ao impedir a realização da justiça material.

Certamente, o Tribunal de Hamm se ateve à unidade de ação entre o crime de arma e os atos de homicídio. Esse julgado encontra-se em conexão com a decisão do Supremo Tribunal Federal alemão registrada no tomo 29, página 288, de sua coleção oficial, ao reconhecer uma exceção ao princípio que determina que a unidade de ação para o direito material conduz à indivisibilidade processual do objeto de julgamento. O recurso à exceção é um método questionável, ou melhor, carece de todo método. Isso salta aos olhos na fundamentação que o Tribunal Regional Superior de Hamm aduz em favor dessa exceção: “a conexão do delito de homicídio com um ato parcial do

30.. BGHSt, vide notas 22 e 23. 31.. NJW, 1986, p. 2842. 32.. StV, 1986, p. 241-242.

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crime permanente de posse não permitida de arma é circunstancial”; “não se vislumbra uma conexão real que, segundo uma concepção natural, possa constituir um acontecimento único da vida”. Adiante, o Tribunal de Hamm dispôs que “ampliando o conceito de ação no presente caso, também o crime de homicídio”, que se apresenta casualmente, quase circunstancialmente, no âmbito do crime permanente, manifestar-se-ia claramente como uma contradição aos interesses da vítima.33

Levando-se em conta tudo o que a jurisprudência e a doutrina vêm entendendo sobre a posse de armas, a afirmação de que o uso da arma (para matar) coincide “circunstancialmente”, “quase circunstancialmente” ou “casualmente” com o crime continuado de posse não autorizada de armas põe as coisas de cabeça para baixo. A prática de um crime de homicídio com o emprego da arma, que o autor tem e porta de modo não permitido, é uma conduta que, ao mesmo tempo e inevitavelmente, realiza o delito de posse de arma. Ressalte-se que fica em aberto o porquê de, nos casos de unidade de ação para o Direito Penal material, a coincidência “circunstancial” ou “casual” de crimes constituir um critério definidor de pluralidade fático-processual. Isso, literalmente, “é retirado do nada”, e, inclusive, decidiria se o acusado deve sofrer uma pena de prisão perpétua ou se a persecução penal contra esse sujeito será descartada. Também no âmbito processual, é intolerável uma área cinzenta dessa monta.

Tal como o Tribunal Regional Superior de Zweibrücken teve de enfrentar essa questão, o Supremo Tribunal Federal alemão também se deparou com o problema34 e teve de “tomar partido” e resolver se acolhia ou não o princípio da indivisibilidade da conduta,35

que tanto – e de modo veemente – acentuara. Nas consequências, o Supremo Tribunal Federal alemão seguiu o Tribunal Regional Superior de Zweibrücken. Assim, apoiou, em duvidosas premissas de caráter psicológico (o uso da arma pressupõe normalmente uma “nova decisão” do autor) e jurídico (uma nova decisão fundamenta uma nova ação), a conclusão de que existia uma pluralidade de ações no sentido do Direito Penal material e, consequentemente, uma pluralidade fático-processual.

Intencionalmente apresentei em forma de periódico ou – como diria Jakobs – folhetinescamente esse recente desenvolvimento dogmático, uma vez que a argumentação da jurisprudência também se enquadra nessa moldura. Não posso me estender aqui sobre outros detalhes dessa discussão, em particular, sobre as numerosas opiniões que, com seus diferentes matizes, vêm sendo formuladas na doutrina.

33.. olg, Hamm, StV, 1986, p. 241-242.

34.. BGHSt, t. 36, p. 151. 35.. BGH, NStZ, t. 857, p. 515.

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Para concluir, gostaria, mais uma vez, de ressaltar dois pontos nevrálgicos dessa problemática. Com acerto, Grünwald escreveu que “o cerne do problema é o tipo de posse não autorizada de armas”.36 Essa afirmação somente procede caso levemos em conta que

as expressões “possuir” e “ter” não descrevem absolutamente qualquer forma de conduta humana. No entanto, essa assertiva constitui tão só metade da verdade. A outra metade reside no lacunoso conceito de crime permanente, que lamentavelmente Grünwald aceita de modo acrítico. Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que o crime permanente é uma figura que não está determinada e nem é reconhecida pela Lei. Em segundo lugar, cumpre observar que o crime permanente não encontrou até hoje uma determinação suficiente nem na jurisprudência e nem na Ciência. Por essa razão, esse conceito vem sendo empregado de maneira completamente heterogênea. Não se deve legitimar e permitir que um conceito extralegal e mal aclarado como o do crime permanente supere a proibição de que haja múltiplas persecuções penais para um mesmo fato.

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Direito penal dos marginalizados