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Direito penal dos marginalizados linhas da política criminal argentina*

8. Encurtamento do processo e julgamento

Os crimes de posse e o de receptação levam a uma persecução penal originada a partir do olfato policial. A prisão de quem é encontrado em situação de flagrância e a manutenção dessa medida cautelar em virtude dos antecedentes penais do imputado somadas ao elevado patamar da pena mínima abstratamente fixada ou à ausência de residência fixa são resolvidas com uma inovadora construção no Direito Processual Penal, que se destina a encurtar o processo e julgamento do acusado.

Essa solução se trata de uma alternativa procedimental substitutiva do procedimento ordinário e demanda a realização de um acordo entre o Ministério Público e o imputado a ser homologado judicialmente. Contudo, esse acordo ocorre mediante prévia confissão, circunstanciada e manifesta da culpabilidade do submetido ao processo penal. Com isso, prolata-se uma sentença condenatória fundada em provas coligidas no curso da investigação penal, cuja pena não poderá ser mais gravosa que a pedida pelo órgão de persecução (ne est iudex ultra petita partium).77

Em razão do sistema federal de processo penal adotado (um digesto e uma estrutura de administração de justiça própria para a jurisdição federal e para cada jurisdição provincial) muitas Províncias argentinas acabaram acatando esse procedimento. Há aquelas que limitaram os crimes a serem submetidos a esse rito abreviado de processo e julgamento, enquanto há outras, como Córdoba, que permitiram sua aplicação de modo indiscriminado.

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A implantação desse produto de “eficiência” trouxe várias consequências. Uma primeira seria o aumento das penas que se impõem na justiça ordinária como uma forma de “vingança pública” pelo fato de o indivíduo não ter aceitado se submeter aos trâmites céleres e econômicos desse novo rito. Como uma segunda consequência, tem-se a transformação da garantia do juízo prévio em uma memória arqueológica. Mais de 75% das causas penais se resolvem por essa via. Esse procedimento abreviado de processo e julgamento terminou convertendo-se na regra, levando o rito comum a se tornar uma exceção e, o que é pior, tende a acarretar o seu paulatino desaparecimento na prática judiciária. Já a terceira consequência trata da confissão, tal como no sistema inquisitivo, esse meio de prova se converte na “rainha das provas”.

Pela modificação do Direito Penal material, põe-se em segundo plano o Direito Processual Penal. Nesse sentido, verifique-se o aumento das penas mínimas pelo legislador nacional com o fim de evitar a aplicação das normas processuais das províncias relativas aos institutos de isenção de prisão ou descarcerizadores. Já por via dos acordos, em maior ou menor medida, maltrata-se o Direito Penal material. As engrenagens não são postas em marcha78 (falácia processualista). Assim, nasce um Direito Processual Penal simbólico. O

juízo comum torna-se pura aparência.

“Los acuerdos…se orientan, para todos los participantes, en primera medida por las consecuencias: si ya se alcanzó un acuerdo sobre ellas, ya podrán crearse y expresarse los presupuestos necesarios. Esa es la primera razón por la cual la dogmática, en los acuerdos, sólo desempeña un papel insignificante. No se requiere de la funcionalidad de la dogmática en el campo de los acuerdos, sino que ella es justamente, contraproducente”.79

Por fim, para o imputado, é uma maneira rápida de saber qual é a moeda a ser paga ao Estado pelo delito cometido e por quanto tempo terá que pagar. Os prazos são variáveis. O rito abreviado ocorre em um lapso temporal relativamente curto.80 O procedimento

78.. volk, KlausN La dogmática clásica de la Parte General ¿Amenazada de extinción? cit., p. 163.

79.. Idem, ibidem.

80.. Por disposição legal (CPP de Córdoba, art. 34 bis), as Câmaras Criminais se dividem em três Salas Unipessoais, que procederão de acordo com as normas do juízo comum, assumindo a jurisdição, respectivamente, cada um dos vogais, para exercer as atribuições próprias do Presidente e do Tribunal respectivo. Na atualidade, o exercício da jurisdição em colegiado é uma exceção (CPP de Córdoba, art. 34 ter).

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comum requer uma espera relativamente longa. Aqui, nem se fala da hipótese de o imputado optar pelo tribunal escabinado (integração do tribunal – três juízes técnicos e dois juízes leigos para crimes com pena máxima superior a 15 anos de prisão), cujos lapsos temporais podem ser muito mais extensos.

Em síntese, o Estado, por meio do rito abreviado, renegociou duas obrigações que tradicionalmente lhe incumbiam no Direito Penal conhecido como liberal: a primeira, refere-se ao seu dever de dar ao imputado, em um tempo razoável,81 uma resposta jurisdicional acerca

de sua responsabilidade pelo crime, enquanto que a segunda trata de só exigir – órgão de persecução – e impor – órgão jurisdicional – uma pena proporcional ao delito praticado (princípio da culpabilidade). Em contrapartida a essa risível segurança, que seria de cumprimento obrigatório se estivéssemos em um Estado de Direito pleno, solicita-se a confissão direta e clara do envolvido. Esse fator somado à relativização que nosso tempo faz da presunção de inocência, obrigando o cidadão a permanecer atrás das grades enquanto aguarda a resolução do caso, leva-nos a concluir que a tortura, na contemporaneidade, tem o rosto sutil do rito processual abreviado.

Há de se recordar que a: “abolición de la tortura no obedeció a que dejó de creerse en el deber del sospechoso de decir la verdad, sino parcialmente por razones humanitarias sumadas al predominio de un punto de vista pragmático que consideraba escasa su utilidad comparada con el fin pretendido”.82