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Daniel R Pastor

3. Uma redução desejada desta suspeita categoria

É proverbial a moda legislativa de “huir a lo penal” ou, dito com mais propriedade, “huir a lo peor de lo penal”, o que se manifesta também na expansão que, a médio e curto prazo, os delitos de posse, que antigamente eram inexistentes ou mínimos, vêm experimentando.20 Desse modo, apareceram no horizonte, sobretudo, a posse de instrumentos para falsificação de moeda, selos e

marcas21 e a posse ilegítima de armas e explosivos.22 Em seguida, chegou a hora das substâncias entorpecentes.23 Recentemente, no

exemplo europeu, alcançou-se a punição da posse de substâncias destinadas ao doping esportivo24 e até a posse de um cachorro perigoso

19.. coSacov, op. cit., p. 785 e ss., depois de resenhar a origem do tipo penal no corpus delicti, expressa – ainda que não o faça com vistas à ideia do texto, mas sim para evitar

que a relação entre ambos os conceitos seja conectada a uma determinada visão de tipicidade dependente de uma teoria do delito já dada – que o tipo penal pode se tornar independente do corpo de delito. Aqui nos referimos ao tipo em sentido amplo (garantia). Desse modo, trata-se da figura legal e não da função que cada perspectiva da teoria do delito designa à tipicidade estrita. Sobre as noções de tipo de garantia e tipo em sentido estrito, ver com mais detalhes: Stratenwerth, Günter. Derecho penal. Parte general

I. El hecho punible. Trad. de Manuel Cancio Meliá y Marcelo A. Sancinetti, Buenos Aires, 2005. p. 126 e ss.

20.. Em realidade, todos os delitos similares vivem uma fase áurea: “Los delitos de ‘peligro’ y de ‘preparación’, en general, conceden al Estado enormes ventajas en la persecución

penal, y de allí que tales figuras tiendan a convertirse en la herramienta predilecta, y casi exclusiva, del legislador” (Ziffer, Patricia S. Cuestiones fundamentales del delito de

asociación ilícita, no prelo: paStor, Daniel R. (Dir.). Problemas actuales de la Parte Especial del Derecho Penal. Buenos Aires).

21.. Por exemplo: art. 299 do Código Penal argentino, cujo texto é original desde sua sanção em 1921. 22.. Na Argentina, pune-se desde 1950 (Lei 13.945).

23.. Lei argentina 20.771 de 1974.

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ou de um programa de computador destinado à fraude informática.25 O mundo voltou-se, com intensidade e de modo extensivo, à

punição da posse de material contendo pornografia infantil. Por outro lado, na Argentina, constitui crime a posse de documento nacional de identidade de outrem.26

É público e notório que a criminalização da mera posse não se encontra livre de objeções materiais. Essa conclusão é resultado do tratamento que o tema tem recebido, principalmente, em trabalhos que se aprofundaram na reflexão entorno dessa questão. Struensee

fulmina essa modalidade punitiva de um modo absoluto: os crimes de posse são um “traspié legislativo”, “la expresión ‘tener’, en contra de su forma gramatical, no describe ninguna conducta”,27 os crimes de posse “no conciernen ni remotamente a una conducta

en el sentido de la ejecución u omisión de un movimiento corporal voluntario”.28 Pastor Muñoz fundamenta a legitimidade de certas

posses puníveis, construindo um critério dotado de caráter altamente redutor do âmbito de incidência punitiva. Essa redução surge da exigência da presença de uma manifestação inequívoca de periculosidade subjetiva que, por afetar bens jurídicos individuais ou supraindividuais (a segurança), constitua um equivalente funcional da periculosidade objetiva, ressalvando-se que essa manifestação precisa ser compreendida, em termos normativos, como socialmente perturbadora, no sentido de uma disposição do autor contrária ao Direito.29 Por outro lado, com vistas a limitar a crítica geral da punibilidade dos crimes de posse, mas definitivamente restringindo

a operabilidade dessa modalidade típica à posse de objetos de alta e inquestionável periculosidade, Roxin, a partir de fundamentos político-criminais, estabeleceu um interessante debate com Struensee.30

Nesse tocante, pretende-se acrescentar algumas considerações que, partindo das funções do Direito probatório de um Estado Constitucional e Democrático de Direito, levam a justificar uma marcada desconfiança na comprovação dos delitos de posse, em níveis tais, que nos fazem ver que esses crimes deveriam ser suprimidos das legislações ou, então, consideravelmente reduzidos a um quantitativo dotado de mínima expressão.

25.. Respectivamente, na Alemanha, o revogado § 143, 2, StGB e o § 263a, 3, StGB, (vide com mais detalhes, ibidem). 26.. Art. 33, c, da Lei 20.974.

27.. StruenSee, Los delitos de tenencia, cit., p. 107, e nessa edição de Liberdades.

28 Idem, p. 110.

29.. paStor muñoZ, op. cit., p. 45 e ss.

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Para abordar de modo frutífero o problema em questão, importa recordar certas premissas relativas ao funcionamento prático do poder penal do Estado e que estão onipresentes em sua história mais antiga e na mais recente até o ponto em que, hoje, as assumimos como postulados correntes que não requerem maiores explicações. Integram esse conjunto as afirmações a seguir.

O poder punitivo, quando está nas mãos daqueles que usam a ação penal para alcançar seus fins políticos e sociais, é o instrumento mais violento e desafortunado. Tal como toda manifestação de poder, o exercício do poder penal, inclusive com mais razão, já que é dotado de uma especial agressividade, tende a ser executado de modo abusivo. A própria história do Direito punitivo pode ser lida como um ciclo de sequências de uma mesma arbitrariedade judicial. Não há nada mais destrutivo para as pessoas do que as acusações penais. A ordem jurídica está organizada para tentar prevenir o uso desviado do poder penal ou, pelo menos, neutralizar seus efeitos. Em todo caso, os fins legítimos da pena estatal não podem ser alcançados a qualquer preço.31

Se tudo isso for levado a sério, torna-se muito razoável que se tratem os delitos de posse com reservas não apenas materiais, mas também processuais, em particular no que se refere ao modo em que as afirmações acusatórias são probatoriamente comprovadas nessa espécie típica.32 Ante o temor de possíveis imputações penais serem construídas de modo apócrifo, deve-se reconhecer que os crimes

de posse integram um âmbito particularmente apto à manipulação da prova.

Para que haja uma fraude em termos probatórios, basta imaginar a possibilidade de que um servidor público desleal, de qualquer das agências de persecução penal, disponha, além do dolo, de todos os meios necessários para montar uma cena com rastros “criminosos”, o que será corroborado pelo surgimento de testemunhas “idôneas” e pela implantação, na cena delitiva, de instrumentos ou substâncias de grande mobilidade, cuja mera posse já constitua um delito de per si, como, por exemplo, armas de fogo, drogas, objetos aptos à falsificação de moeda, documentos, coisas roubadas etc.

Pode-se argumentar que essa forma de ver a realidade está demasiadamente inclinada a perceber atuações de má-fé. No entanto, a história do Direito Penal e a doutrina penal sustentam a necessidade de se lidar com o poder punitivo do modo mais prudente e cuidadoso possível. Essa extrema cautela justifica-se pela existência da violência intrínseca ao poder punitivo e pela tendência de que

31.. Ver: roxin, Claus. Derecho procesal penal. 25. ed. Trad. de Gabriela E. Córdoba y Daniel R. Pastor. Buenos Aires, 2000. p. 4.

32.. Ziffer destacou que, junto ao delito de associação ilícita, todos os crimes de perigo, em especial, os de posse, tendem a produzir “el efecto de ‘simplificación de la prueba’ y de reducción de las posibilidades de defensa” (Ziffer, Cuestiones fundamentales del delito de asociación ilícita, cit.).

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seu exercício seja eivado de abuso e opressão. Com esse pano de fundo, torna-se muito difícil resolver os problemas de nossa disciplina fora de um quadrante que não seja o da desconfiança.

Não se trata de uma questão de boa ou má-fé duvidar da retidão irrenunciável de todos os agentes estatais responsáveis pela persecução penal. Entre as soluções possíveis, é evidente que não se pode outorgar uma credibilidade absoluta aos encarregados de levar a cabo o Direito Penal. Isso é algo que vai além da comprovação dos múltiplos desvios que a experiência cotidiana nos ensina, ou seja, antes de qualquer coisa, é uma concepção dominante a existência de desvios, tanto que centenas de incisos dos Códigos Penais de diversos países se dedicam obsessivamente a reprimir as graves irregularidades cometidas pelas autoridades públicas, justamente na realização do poder punitivo estatal.

Na Argentina, Daniel Rafecas analisou, em detalhes, tanto sob a perspectiva judicial, quanto sob a ótica acadêmica, a prática policial patológica da manipulação probatória. Essa corajosa investigação originou um relatório, que contabilizou a ocorrência de 42 incriminações policiais falsas, todas a partir da colocação de objetos de posse proibida na esfera de custódia dos suspeitos.

Nos termos do relatório: “Esta historia comenzó hace unos años, a raíz de haber participado de un juicio oral – como Secretario del Fiscal –, en el cual quedó demostrado que un hombre, presentado ante la justicia por la policía federal como un ‘peligroso narcotraficante’, no era más que un albañil desocupado que había sido captado por un sujeto de buena presencia, en la puerta de la Iglesia San Cayetano de Liniers (donde funciona una bolsa de trabajo), y trasladado, con la promesa de una ‘changa’, hasta el interior de la Estación Constitución. Una vez allí, el ‘patrón’ lo dejó solo con la excusa de ir a comprar los boletos, hecho al cual sucedió un ‘operativo de rutina’ por policías de civil, que se dirigió directamente al hombre. Claro, al lado del desocupado había un bolso dejado por el ‘patrón’, en el cual había drogas, una balanza y otros elementos comprometedores”.33

Defronte a uma situação como essa, impende voltar para a velha relação entre prova e proibição, entre corpus delicti e tipo penal.

33.. rafecaS, Daniel E. Procedimientos policiales fraguados. Una seria disfunción en el sistema penal argentino. Disponível em: <http://www.catedrahendler.org/doctrina_

in.php?id=106#_ftn1>. No texto em comento, informa-se que nesses processos “los patrones eran similares: víctimas con escasas posibilidades de reaccionar frente al sistema

penal (mendigos, inmigrantes ilegales, sujetos con altísimo nivel de deterioro psicosocial por abuso de drogas o de alcohol, cartoneros, chicos de la calle, inimputables, etc.); carnadas que con diversas excusas los trasladan hasta el sitio donde luego tendrá lugar el procedimiento; hallazgo casual pero exitoso de material comprometedor (drogas, armas, etc.) que permite hablar de un transporte de drogas o de un intento de asalto frustrado por la policía; y la aparición casi inmediata de los medios televisivos y de prensa en el lugar del hecho”.

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Como já se viu, o corpo de delito fornece ao processo o thema probandum que guia a atividade probatória.34 Portanto, se a tipicidade,

como quadro circunstancial constitutivo do proibido, se construiu em reflexo ao que deve ser provado em juízo, então um arquétipo do processo penal como um projeto liberal-iluminista não é compatível com tipos penais falsificáveis probatoriamente. Aceitar essa espécie típica seria negar que dito modelo político-jurídico, consciente do extraordinário abuso que se cometia, veio para reduzir e limitar o aparato repressivo público, em especial, na fase pré-processual. Diante das amplas oportunidades de que a prova seja manipulada, a ideologia democrática do campo penal cumpre fazer um esforço para retirar essas proibições do campo criminal e tratá-las de modo inteligente, ou seja, com meios de baixa ou nula violência.

É certo que a mera invocação de um suposto perigo, inclusive, abstrato, é corriqueiramente apta a fundamentar a intervenção do violento e desafortunado aparato repressivo estatal,35 logo, com muito mais razão, a possibilidade de que ocorra uma manipulação

probatória deve servir para que se descarte o uso dessa modalidade de intervenção repressiva.