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José Danilo Tavares Lobato

3. Modalidades de crimes de posse

Os crimes de posse podem assumir diferentes matizes, conforme os objetivos almejados pelo legislador.14 Schroeder percebe

cinco espécies: mera posse, posse com intenção de uso, posse como preparação, posse como estímulo à produção e incriminação da posse para facilitar a prova.15 Por outro lado, em sua tese sobre o tema, Eckstein expõe criticamente a existência de quatro modalidades.

Com base na descrição quadripartite, a primeira modalidade dos crimes de posse encontrada na legislação penal surge quando se

14.. Sete modalidades de crimes de posse e de status são apresentadas por: paStor muñoZ, Nuria. Besitz- und Statusdelikte: eine kriminalpolitische und dogmatische Annäherung.

Goltdammer’s Archiv für Strafrecht . Heidelberg, 2006. p. 797-799; paStor muñoZ, Nuria. Los delitos de posesión y los delitos de estatus: una aproximación político-criminal y

dogmática. Barcelona: Atelier Libros Jurídicos, 2005. p. 48 e ss. 15.. Schroeder, Friedrich-Christian. Op. cit., p. 445-446.

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incrimina a posse com o objetivo de impedir a produção ou a obtenção da coisa, que, para Eckstein, teria como principal exemplo a proibição de se possuir publicações com pornografia infantil.16

Dentro do modelo quadripartite, a segunda modalidade dos crimes de posse é formada por tipos penais dotados da finalidade de impedir que determinados objetos estejam em certos lugares. Essa modalidade subdivide-se em posse de objetos intrinsecamente perigosos, como, por exemplo, o armazenamento não autorizado de material radioativo previsto no § 328 do Código Penal alemão, posse de objetos perigosos em virtude de mediação psíquica e, por fim, posse como lesão ao bem jurídico.17 A segunda subespécie se

destina a proibir a posse de objetos que tragam perigo por mediarem uma relação psíquica de estímulo à lesão de bens jurídicos; um de seus melhores exemplos seria a proibição prevista no § 17a e no § 27, II, da Lei alemã, que regula o direito constitucional de reunião, de possuir armas em reuniões públicas em locais a céu aberto, isso porque se acredita, a partir dos estudos da psicologia das massas, que armamentos tendem a exercer um efeito estimulante-agressivo em coletivos humanos reunidos.18 No que se refere à terceira subespécie,

Eckstein acerta em afirmar que esse seria o modelo típico ideal dos crimes de posse, eis que a posse, em si mesma, já deveria configurar uma lesão ao bem jurídico, contudo, faticamente, inexistem crimes de posse que possam ser classificados como crimes de dano; nem mesmo o crime de lavagem de dinheiro em sua modalidade de posse poderia servir como um exemplo, posto que a própria lavagem de dinheiro não prejudica qualquer bem jurídico.19

Como uma terceira modalidade, Eckstein trata dos crimes de posse em que o legislador busca impedir o uso e não propriamente a aquisição ou que o objeto esteja em determinado lugar sem capacidade efetiva de uso. Nas palavras de Eckstein, como exemplo eloquente dessa categoria, tem-se a histórica proibição prussiana de deixar arma carregada em casa quando crianças ou outras pessoas inexperientes possam pegá-la.20 Para Eckstein, essa espécie prepondera numericamente e se subdivide em uso do objeto por

terceiros para autolesão, na linha da Lei de Drogas, e emprego do objeto para lesionar terceiros, no sentido das proibições previstas na

16.. eckStein, Ken. Besitz als Straftat. Berlin: Duncker & Humblot, 2001. p. 67.

17.. Idem, p. 70-73.

18.. eckStein, Ken. Op. cit., p. 72.

19.. Idem, p. 73-74. 20.. Idem, p. 75.

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Lei de Armas.21 Por fim, como quarta modalidade, o legislador se vale dos tipos de posse com o fim de facilitar a persecução penal,

a exemplo do que ocorre na transformação da posse de entorpecente desacompanhada da respectiva autorização escrita em crime de tráfico do § 29, I, 3, da BtMG.22

Importa salientar que essas classificações não são precisas e que muitos exemplos dados pela doutrina alemã apontam mais de uma modalidade. Assim, é possível constatar uma radical divergência entre Schroeder e Eckstein; por exemplo, quando se confronta a afirmativa de Schroeder de que a posse de drogas, prevista no § 29, I, 3, da BtMG, classifica-se como delito de mera posse, eis que de maneira duvidosa pune, inclusive, a posse para consumo próprio.23 Em realidade, há duas zonas entre essas modulações típicas, uma de

interseção e outra cinzenta. Esse fato denota a insegurança de adotar rigidamente quaisquer dessas classificações. Até mesmo Eckstein, que expõe as espécies típicas dentro de uma moldura quadripartite, assevera que apenas as modalidades em que o legislador quer evitar o uso e a aquisição do objeto aparentam ser adequadas, o que esclarece que nem mesmo ele concorda com a divisão exposta em sua tese.24

Não há razão para se criar classificações e subclassificações quando um mesmo tipo penal pode conter várias intencionalidades. Em grande parte das espécies dos crimes de posse, é perceptível que o legislador combina o propósito de facilitar a obtenção da prova aos mais diversos interesses político-administrativos. A incriminação da posse permite que os órgãos de persecução penal trasladem sua atuação do momento consumativo do crime para o ante factum ou o post-factum e, consequentemente, trechos do iter criminis, em princípio, impuníveis, passam, por conveniência administrativa, a serem puníveis. O uso dos crimes de posse com o objetivo de facilitar a colheita da prova e, por conseguinte, a persecução penal, não traz qualquer característica típico-penal diferenciada, salvo se lidarmos com uma total falta de qualidade no exercício da técnica legislativa, como houve ocorrer na disposição do art. 334, § 1.º, c, do CP, que em sua literalidade equipara, ao contrabandista e ao descaminhador do caput, o mesmo indivíduo que, no exercício de atividade comercial, mantém em depósito a mercadoria objeto de seu próprio crime de contrabando ou descaminho. É certo que a norma penal só encontra sentido técnico-dogmático, quando equipara terceiro ao contrabandista e ao descaminhador e não a própria pessoa a si mesma; contudo, trabalhando-se com a concepção de tipo penal incriminador destinado a facilitar a colheita da prova, é

21.. Idem, p. 74-77. 22.. Idem, p. 79.

23.. Schroeder, Friedrich-Christian. Op. cit., p. 445.

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possível encontrar a presença dessa espécie típica no art. 334, § 1.º, c, do CP. No entanto, isso é um erro. Nesse tocante, a doutrina e a jurisprudência brasileiras vêm se limitando a uma análise superficial da questão e à concessão de ênfase ao que faz sentido nessa alínea c do § 1.º do art. 334 do CP, de modo a fechar os olhos para suas incongruências, tal como uma criança que fecha os olhos ao avistar um carro vindo em sua direção no momento em que atravessa a rua correndo. A criança cerra os olhos com a esperança de que, com os olhos fechados, o carro desapareça, enquanto que a doutrina penal e a jurisprudência brasileira fecham os olhos para o que não tem sentido e centra seu foco no que possui alguma congruência nesse malsinado e plurissignificativo art. 334, § 1.º, c, do CP. Nesse sentido, salvo em hipóteses de crasso erro legislativo, não há falar em uma modalidade típica própria com fins de facilitar a persecução penal. Se esse é o objetivo, que não se seja ingênuo e que não se dê guarida dogmático-penal a todo e qualquer interesse do legislador.

Entre as modalidades apresentadas, é perceptível que os crimes de posse com intenção de uso se constituem por tipos penais dotados de um especial fim de agir; assim, por exemplo, o crime do art. 270, § 1.º, do CP, que pune a posse de água envenenada com o fim de distribuí-la. Perceba-se, inclusive, que essa modalidade típica denota uma incriminação de menor alcance, posto que não será toda e qualquer posse punida, mas apenas aquela qualificada pela presença de determinado elemento anímico previsto pelo legislador.25

Por outro lado, a modalidade denominada posse como preparação se constitui também de características que permitem sua identificação. Nessa, o legislador antecipa a punição para o momento dos atos preparatórios, equiparando a posse de determinados objetos ao próprio resultado lesivo, tal como ocorre no crime de petrechos para falsificação de moeda previsto no art. 291 do CP. Certamente, a autonomia dessa modalidade pode ser contestada. Essa espécie não deixa de ter, mesmo que implicitamente, um especial fim de agir, isso porque somente se pode trabalhar com a ideia de preparação, se o que se prepara é um meio destinado à obtenção de certo fim. A preparação em Direito Penal é um conceito relacional, ou seja, constitui uma ação que exige um complemento, um objeto, sem o qual não possui sentido. A preparação criminal não é um conceito absoluto. Ela não basta por si mesma. O Direito Penal confere emprego semântico ao verbo preparar que não o permite ser intransitivo, mas transitivo.

25.. Em sentido contrário: Jakobs recusa a punição especialmente baseada no elemento subjetivo e exige a prática de um comportamento externo perturbador da esfera de organização de terceiros, posto que a concepção mental do indivíduo se compreende em seu âmbito privado. Assim, entende que os crimes de perigo abstrato só são compatíveis com o Direito Penal do fato, quando se basearem em perigos gerais oriundos do comportamento e não em perigos advindos de um contexto especial de planificação do autor. JakoBS, Günther. Kriminalisierung im Vorfeld einer Rechtsgutsverletzung. ZStW – Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft. Berlin: Walter de

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Em contrapartida, existem especificidades entre as modalidades de posse com intenção de uso e posse como preparação. Na primeira, o elemento subjetivo especial é expresso no tipo, apesar de esse elemento anímico não se conectar a um uso que antecipadamente explicite o bem jurídico protegido e nem à lesão que se quer evitar. Por exemplo, a distribuição de água potável envenenada é o uso que, no art. 270, § 1.º, se quis impedir no momento em que se tipificou sua reserva em depósito. Entretanto, se essa distribuição constituirá uma agressão ao bem jurídico vida, lesão corporal ou dano, caso consumido por animais, o tipo penal não esclarece. A inserção desse crime, pelo legislador, no capítulo dos crimes contra a saúde pública, não esclarece a questão. A saúde pública funciona como um grande guarda-chuva, um pseudo bem jurídico coletivo.26 Por outro lado, na tipificação da posse como preparação, o legislador

presume um vínculo típico penal objetivo, no qual o crime de posse, como antecedente, liga-se ao crime subsequente, em razão do iter criminis que se presume necessário até o advento de sua consumação, isso a partir de uma análise lógica da concatenação dos atos que compõem as fases de preparação e consumação do crime subsequente. Ao legislador é indiferente se o possuidor tem ou não algum elemento anímico para além do dolo de posse. Ele se antecipa e, desde já, pune a posse do objeto, presumindo que a detenção do objeto se constitui em ato preparatório de determinado crime, que ele entende não poder esperar até o início de sua execução. Nesse tocante, é possível perceber a semelhança dessa modalidade com a dos crimes de mera posse. Nos crimes de mera posse, o legislador também não se importa com nenhum especial fim de agir, posto que, para a incriminação, basta a simples posse do objeto. Contudo, diferentemente do que ocorre com a estrutura típica dos crimes de posse como preparação, nos crime de mera posse, o legislador não precisa nem se preocupar em traçar um paralelo com o crime a ser realizado pelo emprego do objeto, numa relação de meio e fim, uma vez que presume certa periculosidade oriunda do objeto e, com isso, entende justificada a incriminação de sua simples posse. Não restam dúvidas de que essa modalidade é a que deve voltar as maiores preocupações da dogmática penal, sob pena de o legislador se sentir livre para impor criminalizações desarrazoadas e fundadas em falsos perigos. Dentro dessa categoria, devem ser trabalhados os crimes de posse como estímulo a produção, como, por exemplo, o tipo penal do art. 241-B do ECA, que proíbe a guarda de material pornográfico infantil.27

Esse artigo pode até ter sido elaborado com o propósito de evitar que publicações contendo pornografia infanto-juvenil estimule

26.. Breve crítica aos bens jurídicos coletivos, em especial, ao Meio Ambiente Cultural: loBato, José Danilo Tavares. O meio ambiente como bem jurídico e as dificuldades de sua

tutela pelo direito penal. Revista Liberdades, São Paulo, n. 5, set.-dez. 2010, p. 62-63; loBato, José Danilo Tavares. Direito penal ambiental… cit., p. 75-76. Para uma análise

mais detalhada, conferir: Silveira, Renato de Mello Jorge. Direito penal supra-individual – Interesses difusos. São Paulo: RT, 2003.

27.. Sobre a compatibilidade da criminalização da pornografia com o Estado de Direito Liberal, conferir: greco, Luís. Strafbare Pornografie im liberalen Staat –

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negativamente a sexualidade de seu público. Contudo, se essa foi a intencionalidade do legislador, além de questionável,28 não vem

expressa no tipo penal. Jäger percebe essa forma de incriminação como uma nova figura jurídica construída como um modo retroativo de incitamento.29 Para Jäger esse delito é um claro exemplo de política criminal irracional.30 Schroeder ratifica a crítica de que essa

espécie de punição retroativa representa um equívoco, eis que não cabe ao legislador fixar responsabilidade por fatos já cometidos, mas e tão somente por atos, ainda a serem cometidos, prejudiciais à formação das crianças.31 Em realidade, o legislador pune a mera posse

e justifica a punição na crença de que a posse do objeto produz certo perigo para o bem jurídico.