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O problema da possibilidade estrutural dos crimes de posse na doutrina e na jurisprudência constitucional

Mariângela Gama de Magalhães Gomes

2. O problema da possibilidade estrutural dos crimes de posse na doutrina e na jurisprudência constitucional

Lagodny foi o primeiro a afirmar a existência de uma inadequação normativa nos crimes de posse, ou seja, a perceber as dificuldades de se ter a posse como objeto dos preceitos penais. Essa percepção decorre da própria estrutura da posse. “Toda intervenção penal pressupõe um comportamento humano, seja como um fazer positivo ou uma omissão (...) a mera posse constitui, em alguns casos, um fazer ativo (...) somente interessa a omissão (...) no entanto, como os crimes de posse não podem ser interpretados como delitos omissivos, eles são inconstitucionais”.10Lagodny ilustra a questão recorrendo à Lei de Drogas alemã.11 Em sua visão, a posse não seria

um fazer ativo, no sentido de uma facilitação da posse. Em realidade, a posse, em si mesma, já está sujeita à repressão penal (§ 29, I, 1,

9.... Detalhadamente: eckStein, Ken. Grundlagen und aktuelle Probleme der Besitzdelikte. In: ZStW, n. 117, 2005. p. 108-109.

10.. lagodny, Otto. Op. cit., p. 322.

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da Lei de Drogas alemã). Tampouco seria uma omissão pelo não abandono da posse. Lagodny pontua que essa leitura é equivocada, já que inexiste uma regulação normativa sobre como deve ser praticado o abandono daquilo que se possui, isto é, “se o abandono deve ocorrer pela entrega do objeto à autoridade competente, por um mero ato abandono ou através da destruição da coisa”. Assim, conclui que:

“São inconstitucionais todos os crimes em que se penaliza uma posse sem qualquer finalidade típica, uma vez que esses crimes tratam de simples relação com coisas. Dessa feita, não pressupõem a prática de qualquer comportamento, por consequência, são inadequados para cumprir os fins da pena. Independentemente do perigo abstrato que possa surgir de cada objeto, este quadro não se altera”.12

À mesma solução chega Struensee, que, apesar de não partir do problema da adequação constitucional, do mesmo modo, descarta a ideia de haver uma posse punível. “Atuar é realizar, omitir é não realizar... movimentos corporais voluntários... conduta é uma expressão que abarca ambas formas de comportamento... tertium non datur”.13

Não há dúvidas de que Struensee reconhece a manutenção da posse e a utilização como comportamentos ativos. Contudo, admite que para alguém se manter na posse é necessário que se “pressuponha um prévio ter” desse objeto por esse alguém; por outro lado, Struensee verifica que essa manutenção da posse possibilitará “apenas um posterior ter”14 desse mesmo objeto por esse mesmo

alguém. Tampouco o exercício da posse, por meio do emprego, utilização ou consumo do objeto, seria uma posse, eis que, da mesma forma, o uso pressupõe “a possibilidade de uma posse sem exercício”.15 Em acréscimo, pontua que seria ainda menos pertinente o

enquadramento da posse na categoria dos crimes omissivos, já que seria um absurdo e, por consequência, linguisticamente inconcebível, entender o exercício do poder de fato sobre determinada coisa como o não abandono desse poder de fato.16

12.. Idem, p. 335.

13.. StruenSee, Eberhard. Grundlagenprobleme des Strafrechts, 2005, p. 125 e nesta edição de Liberdades.

14.. Idem, p. 127. 15.. Idem, p. 128. 16.. Idem, p. 129.

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Curiosamente, Lagodny e Struensee não observam que o Tribunal Constitucional Federal alemão (Bundesverfassungsgericht – BverfG) já se ocupou dessa questão e decidiu pela admissibilidade dos crimes de posse, especificamente, em um caso de posse não permitida de haxixe.17 Essa decisão se deu no julgamento de um recurso de amparo constitucional no qual fora sustentado que “a mera posse de

entorpecentes não representa uma ação em sentido jurídico penal e, por isso, não pode levar a que o possuidor fique sujeito a uma sanção penal, posto que não se trata de um fato no sentido do art.103, II, da Lei Fundamental alemã”.18*

Apesar da existência do conceito de fato, para o Tribunal Constitucional Federal alemão, o termo empregado pelo art. 103, II, da Lei Fundamental alemã “não impõe que o comportamento punível seja correspondente a um determinado conceito de ação jurídico-penal”. O Tribunal Constitucional Federal alemão pontuou também que: “não é algo que possa ser extraído da Lei, já no nível do mero Direito Penal, que o conceito jurídico-penal de ação exija um movimento corporal causado por ato voluntário e, consequentemente, a posse venha a ser considerada como um estado vazio de ação. Se trata, portanto, da elaboração, pela dogmática jurídica, de um conceito que, por sua parte, é debatido há muito tempo na Teoria do Direito Penal, que dispõe de outros conceitos de ação. (...) Nada induz a crer que o constituinte, com a formulação do art.103, II, quis assumir um conceito de ação tão discutível (...)” Por essa razão, não se impede que o legislador “ameace com uma pena um estado não vinculado a movimentos corporais e nem à manutenção de uma situação proibida..., como por exemplo, a posse indevida ou o armazém de objetos perigosos”.

Entretanto, falta à decisão do Tribunal Constitucional a definição do que deva existir para que se impute um processo ou estado como “fato” ou “ação” a um indivíduo.

Posteriormente à publicação dos estudos de Lagodny e Struensee, alguns autores buscaram fundamentar a possibilidade de ter uma posse como um fato punível sem que, contudo, fosse necessário fornecer um conceito adequado de ação ou de fato. Segundo

Eckstein,19 “a posse, como estado punível, se distingue pelo domínio real, pela vontade de domínio e pelo dolo de ter”. É certo que essas

circunstâncias não fundamentam a ação, mas sim “a dominabilidade subjetiva que justifica a reprovação da culpabilidade”. Esse “desvio

17.. NJW 1994, p. 2412 e p. 2413. No mesmo sentido, BVerfG, NJW 1995, p. 248 e ss.

18..* (N.T.) Art. 103, II, da Lei Fundamental alemã: “Um fato só pode ser punido se sua punibilidade tiver sido estabelecida em momento anterior ao seu cometimento”.

19.. eckStein, Ken. Besitz als Straftat. Berlin: Duncker & Humblot, 2001. p. 97 e ss., 103 e ss., 239-240; eckStein, Ken. Grundlagen und aktuelle Probleme der Besitzdelikte. In:

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do dogma da ação” pertence à corrente da dogmática penal que entende que a punibilidade “pode ser construída independentemente do comportamento, ou seja, punibilidade como responsabilidade para áreas determinadas”.20 Na essência, Schroeder assume essa

concepção quando afirma que “há compatibilidade com o princípio da culpabilidade”.21

Lampe pretende que, ao lado das proibições e mandatos, cujos objetos se constituem por processos sociais, sejam também reconhecidos mandatos e proibições dotados de um “objeto constituído por estados socialmente determinados” em que “o destinatário da norma é responsável pelos estados que estejam sob seu domínio”.22Deiters entende que a punibilidade dos crimes de posse pode se

sustentar em uma “omissão do abandono do domínio sobre a coisa”, contudo, considera legítima “somente uma punibilidade no âmbito normativo de materiais perigosos”.23 Por outro lado, Pastor Muñoz pretende trabalhar a posse “paralelamente a uma responsabilidade

pela omissão e, por certo, como competência do possuidor pela posse”.24

3. Posse (detenção do poder de fato) como uma manifestação da personalidade