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Posse (detenção do poder de fato) como uma manifestação da personalidade suficiente para o conceito jurídico penal de comportamento

Mariângela Gama de Magalhães Gomes

3. Posse (detenção do poder de fato) como uma manifestação da personalidade suficiente para o conceito jurídico penal de comportamento

Independentemente da discussão ainda em aberto sobre a legitimidade político-criminal dos crimes de posse, deve-se aceitar a admissibilidade dessa espécie delitiva sob a perspectiva constitucional e a do Direito Penal. Inclusive, não se pode dizer que só se possa punir unicamente a ação e a omissão se elas forem lidas como determinado movimento corporal realizado ou não realizado. Apesar disso, Struensee busca extrair essa conexão de regras de direito positivo, tais como, por exemplo, as previstas nos §§ 8 e 9 do Código Penal alemão, que designam a comissão de um fato como ação ou omissão, ainda que essas disposições tenham, em um conflito de normas, “a prevalência de lei especial ou posterior”.25 Por outro lado, nenhuma Lei limitou o conceito de “atuar” da forma pretendida

20.. eckStein, Ken. Grundlagen und aktuelle Probleme der Besitzdelikte. In: ZStW, n. 117, 2005, p. 141.

21.. Schroeder, Friedrich-Christian. Besitz als Straftat. Festschrift für Kaczmarek, 2006, p. 570.

22.. lampe, Ernst-Joachim; kahlo, Michael. Die Handlungsform der Unterlassung als Kriminaldelikt, Frankfurt a.M.: Klostermann, 2001; eckStein, Ken: Besitz als Straftat, Berlin:

Duncker & Humblot, 2001. ZStW – Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft. Berlin: Walter de Gruyter, Caderno 4, n. 113, 2001, p. 885 e ss. Em especial, p. 896. 23.. deiterS, Mark. Eckstein, Ken: Besitz als Straftat, Berlin: Duncker & Humblot, 2001. In: GA, Heidelberg, 2004. p. 58 e ss. Em especial, p. 6-61.

24.. paStor muñoZ, Nuria. Besitz- und Statusdelikte: eine kriminalpolitische und dogmatische Annäherung. GA. Heidelberg, 2006. p. 793 e ss. Em especial, p. 797.

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por Struensee, ou seja, inexiste qualquer disposição legal que disponha que “atuar” seja sinônimo de “realizar... movimentos corporais voluntários”.26

O Tribunal Constitucional Federal alemão já decidiu, e com razão, que uma ampla gama de distintas definições do conceito jurídico-penal de ação disputam reconhecimento. Assim, desenvolvi um conceito em que a ação passa a ser entendida como manifestação da personalidade.27Schroeder, contudo, contesta e afirma que nem essa e tampouco outras ampliações do conceito de ação poderiam

abarcar a posse como um “estado de domínio”.28 Não obstante, essa é uma visão equivocada. A detenção voluntária do domínio de fato

sobre uma coisa é uma manifestação da personalidade do detentor. A propósito, isto não é algo que seja facilmente refutável. Se alguém tem muitos livros ou quadros, nesse ato de colecionar reside uma manifestação característica da personalidade. Esse exemplo tampouco difere da situação do indivíduo que conserva, para si, armas, explosivos, drogas ou publicações de pornografia infantil.

Ao lado da compreensão do atuar e do omitir como realizações ou não de um movimento corporal, há, também, a detenção e o exercício do domínio da coisa como formas independentes de ação exteriorizadoras da personalidade. Recentemente, Sinn buscou desenvolver uma teoria do delito combinada a uma teoria do poder. Segundo essa proposta, todas as formas de aparição de um comportamento punível devem ser caracterizadas como abuso de poder.29 Contudo, essa construção permite ir longe demais.30 De

qualquer modo, uma forma de apresentação de um comportamento passível de reprovação pode se dar, indiscutivelmente, pela detenção do poder de pôr em perigo bens jurídicos, entendido esse poder como a posse de objetos determinados.

O domínio corporificado na posse se expressa, de um modo geral, na realização ou não de determinadas atividades. Presente a relevância jurídico-penal da posse, torna-se claro que o possuidor não apenas conservará, cuidará e utilizará a coisa, mas também omitirá seu descarte ou sua destruição. Contudo, esses são unicamente momentos parciais do exercício da posse como manifestação autônoma da personalidade, que não se reduz a realizar ou não determinados movimentos corporais.

26.. StruenSee, Eberhard. Op. cit., p. 125.

27.. roxin, Claus. Strafrecht – Allgemeiner Teil. 4. ed., 2006. t. I, § 8, n. 44.

28.. Schroeder, Friedrich-Christian. Op. cit., p. 56-57.

29.. Sinn, Arndt. Straffreistellung aufgrund von Drittverhalten. Zurechnung und Freistellung durch Macht. Tübingen: Mohr Siebeck, 2007. p. VIII.

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Se Struensee acredita que a “posse ulterior”, que é aquela que surge da manutenção da posse, não seria uma posse porque já pressuporia uma posse prévia, então, não posso concordar com seu pensamento. Como a própria literalidade do termo denota, a posse ulterior é uma posse. O exercício do domínio de fato não é uma manifestação pontual da personalidade, mas, sim, uma manifestação temporalmente prolongada. Desse modo, não são muito claras as razões que impediriam a posse de continuar sendo objeto do Direito Penal. Tampouco, convence a assertiva de que o exercício da posse não é uma posse, tal como o não exercício da posse. O domínio de fato sobre uma coisa é, em si mesmo, sempre um exercício da posse, ainda que esta consista tão somente na conservação da posse. Quem não exerce a posse, faz uma renúncia e, por isso, deixa de ser um possuidor.

Além do mais, existem também outras formas de aparição do comportamento delitivo que não podem ser atribuídas a movimentos corporais realizados ou omitidos. A esse grupo, pertencem os delitos de status,31 como os de ser membro de uma associação criminal ou

terrorista (§§ 129 e 129A do StGB). Também integram esse conjunto os seguintes exemplos: “estar pronto” à espera de comando para o cometimento de uma ação de sabotagem (§ 87, I, 1, do StGB), manter relações perigosas para a paz (§ 100, I, do StGB) e rufianismo (§ 181.ª, I, do StGB).32 Uma compreensão da ação como manifestação da personalidade abarca, sem esforço, essas e outras formas de

aparição de comportamentos puníveis – e também não puníveis – e é apta, por isso, a servir como conceito básico para tudo o que possa ser jurídico penalmente relevante. A construção dos delitos de posse se torna mais viável se for trabalhada dessa maneira do que a partir de uma conexão com a omissão.

É certo que, em alguns delitos de posse, contanto que tenham um momento omissivo, espera-se que o possuidor omita a entrega, a notícia ou a destruição do objeto que está, de boa-fé ou sem sua intervenção, em sua esfera de domínio. No entanto, deve-se observar primeiro que a posse no seu sentido de domínio fático é algo distinto e que está além do mero não abandono da relação de posse. Como uma segunda observação, ressalte-se que, na eventualidade de haver o ingresso ativo de objetos proibidos no estado de posse, esse momento omissivo também não advirá, posto que a punibilidade da posse estará configurada antes mesmo de surgir qualquer possibilidade de o indivíduo se desvincular da coisa.

31.. Sobre isso, ver: lampe, Ernst-Joachim. Op. cit., p. 896; paStor muñoZ, Nuria. Op. cit., p. 793 e ss. Em especial, p. 797.

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Muito menos será necessário, como faz Eckstein, partir exclusivamente do “domínio subjetivo fundamentador do juízo de reprovação da culpabilidade”. Ainda que essa construção satisfaça os parâmetros do Tribunal Constitucional Federal alemão, aprofundando-se a questão, torna-se claro que se trata apenas de saber se uma ameaça penal é compatível com o princípio da culpabilidade. Esclareça-se que a detenção voluntária do poder do fato criminoso é um injusto objetivo que unicamente justifica um juízo de reproche da culpabilidade caso estejam presentes todos os pressupostos gerais vigentes.

Por outro lado, é absolutamente compatível com a perspectiva por mim defendida a interpretação de Lampe sobre a responsabilização do destinatário da norma por estados socialmente determinados de coisas que estão sob sua responsabilidade. Apenas, não me parece que seja necessário abandonar o dogma da ação como um conceito básico de Direito Penal.33 Para tanto, é importante que se supere

a antiquada definição de ação como movimento corporal voluntário e se assuma a compreensão de que a ação é uma manifestação da personalidade.34*