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José Danilo Tavares Lobato

4. Objeções aos crimes de posse

4.3 Mera posse como não ação comissiva

Para Lagodny, a disposição do § 29, I, 3, da BtMG, que pune a posse de entorpecente desacompanhada da devida autorização escrita para sua aquisição, não passa de uma incriminação da mera posse do objeto, o que importa a não descrição de um comportamento ativo, pois a comissão se situa no estabelecimento da posse e não em sua simples existência.59 O estabelecimento da posse do entorpecente

é punido pela disposição do § 29, I, 1, da BtMG, que compreende todas as formas de obtenção ilegal de seu efetivo domínio.60 As

nucleares típicas da citada norma são cultivar, fabricar, comerciar, importar, exportar, alienar, ceder, pôr em circulação, adquirir e obter de qualquer outra maneira. Lagodny situa o problema e pontua que os crimes de mera posse acabam, então, funcionando como uma estrutura típica de captação dos modos de comportamento punidos pelo § 29, I, 1, da BtMG, quando a ação comissiva que leva à posse já é punida e sem lacunas.61 Desse modo, caso não se encontre uma base no modelo dos crimes omissivos – em virtude da não renúncia

da posse –, o sancionamento penal incidirá tão somente no mero estado de posse.62 No entanto, a jurisprudência vem entendendo que

não há punição de um estado, mas, sim, de um comportamento causal, mais propriamente, a produção ou a manutenção desse estado, o que denota que o cerne da reprovação está no estabelecimento da posse.63 Para Lagodny, esse pensamento trabalha com a figura

do crime permanente, que é uma subespécie dos crimes de dano, uma vez que se sanciona a criação de uma situação antijurídica.64

Eckstein, que defende a construção de uma nova estrutura delitiva adequada aos valores constitucionais, concorda que, enquanto os crimes de posse estiverem ligados apenas a um estado, que tradicionalmente se interpreta como delito de resultado, necessariamente, ter-se-á de recorrer à “posse” como resultado oriundo de um comportamento humano, não se podendo olvidar que a ação humana e o estado, que estão vinculados nessa relação de causa e efeito, tratam-se de fenômenos completamente distintos.65 No caso, a produção do

59.. Idem, p. 325. 60.. Idem, ibidem. 61.. Idem. 62.. Idem. 63.. Idem. 64.. Idem, p. 325-326.

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estado de posse está vinculada à ação de obter a droga, nos termos da redação típica do § 29, I, 1, da BtMG.66Lagodny acredita que a

dogmática está acostumada a trabalhar com os delitos de resultado como um modelo absolutamente livre de problemas na configuração do injusto penal, contudo, essa visão representa um equívoco, que o Supremo Tribunal Federal alemão e a doutrina, até agora, não viram ou não querem ver.67 Assim, Lagodny conclui que, a partir desses pressupostos, somente se pode trabalhar com a ideia de uma

manutenção autônoma do estado de posse ou de não abdicação da posse, caso se maneje com a estrutura típica dos crimes omissivos.68

No entanto, para que se trabalhe com os tipos omissivos, na legislação vigente, será necessário recorrer à figura do garantidor, ou seja, aos crimes omissivos impróprios, mas tal recurso acarreta problemas de diversas ordens, como, por exemplo, a definição da norma de conduta esperada, o que, em última medida, conduz a um desajustamento da incriminação.69 Essa visão não é aceita por Pastor Muñoz,

que opta justamente pelo modelo dos crimes omissivos impróprios, apesar de aceitar como satisfatória a tese dos crimes omissivos próprios defendida por Lagodny.70 Em realidade, a facilitação da colheita da prova é o único fim esperado dessas incriminações da posse e, por isso, essa espécie de tipificação criminal se torna inadmissível em termos constitucionais.71 No mesmo sentido, encontra-se

Daniel Pastor, que também é crítico desse expediente para aliviar o ônus probatório da acusação.72

No entanto, cumpre ressaltar que esse pensamento foi expressamente rechaçado pela 2.ª Turma da 2.ª Câmara do Tribunal Constitucional Federal alemão. Essa concepção foi rejeitada tanto no julgamento da Reclamação Constitucional 855/94, que tratou da constitucionalidade da decisão do órgão judiciário de Limburg e do acórdão do Tribunal Regional Superior de Frankfurt a.M., que, respectivamente, condenou e confirmou a condenação do reclamante pela guarda, sem autorização, de uma arma semiautomática na gaveta da escrivaninha de sua casa,73 quanto no julgamento da Reclamação Constitucional 1.157/94, que tratou da constitucionalidade

66.. lagodny, Otto. Op. cit., p. 326.

67.. Idem, ibidem. 68.. Idem. 69.. Idem, p. 327.

70.. paStor muñoZ, Nuria. Op. cit., p. 43.

71.. lagodny, Otto. Op. cit., p. 327.

72.. paStor, Daniel R. Op. cit., p. 458; loc.cit.

73.. BundeSverfaSSungSgericht. BVerfG (2. Kammer des Zweiten Senats), Beschl. v.6.7.1994 – 3 BvR 855/94. NJW – Neue Juristische Wochenschrift. München: Verlag C. H. Beck,

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da condenação por porte não autorizado de haxixe.74 A fundamentação de ambos os julgamentos é bastante próxima. A decisão da

Reclamação Constitucional 855/94 rejeitou expressamente a ideia de que as teorias dogmático-penais formem os critérios de definição dos limites constitucionais da punibilidade, posto que tal tarefa cumpre apenas ao conteúdo da Lei Fundamental.75 Ressaltou a 2.ª Turma

que o constituinte não baseou a fórmula do art. 103, II, da Lei Fundamental no conceito de ação, que, aliás, é altamente controverso na dogmática penal.76 Nesse sentido, entendeu que a lesão e o perigo aos bens jurídicos poderiam ser realizados por qualquer comportamento

humano dominável pela vontade, o que, contudo, não implica que o conceito “Tat”, previsto no art. 103, II, da Constituição alemã, esteja limitado a um movimento corporal voluntário.77-78 Assim, na visão da 2.ª Turma, o legislador infraconstitucional poderia punir a posse ou a

custódia de objetos perigosos, mesmo se não houvesse um elo entre o que se pune e o movimento corporal ou a manutenção de um estado ou relacionamento proibido; para tanto, basta que tal proceder não implique em violação de direitos fundamentais, do princípio do Estado de Direito e nem infração a outras limitações da principiologia constitucional.79 Não há dúvidas de que essas decisões não trouxeram novos

argumentos ao debate e serviram apenas à manutenção do status quo. Ninguém, que tenha estudado um pouco Direito Penal, desconhece que atualmente a conduta é entendida para além do movimento corporal. Por outro lado, sabe-se também ser necessário dispor de critérios que definam o que são condutas puníveis. Nesse ponto, as citadas decisões falham, principalmente, ao expressarem a possibilidade de uma punição sem que haja “um estado ou relacionamento proibido”, o que, em si mesmo, é uma expressão semanticamente muito obscura. No que toca às limitações oriundas dos direitos fundamentais e dos princípios constitucionais, essas são arguidas pelo Tribunal

74.. BundeSverfaSSungSgericht. BVerfG (2. Kammer des Zweiten Senats), Beschl. v. 16.6.1994 – 2 BvR 1157/94. NJW – Neue Juristische Wochenschrift. München: Verlag C. H.

Beck, Caderno 37, 1994. p. 2412-2413.

75.. BundeSverfaSSungSgericht. BVerfG (2. Kammer des Zweiten Senats), Beschl. v. 6.7.1994 – 3 BvR 855/94. NJW – Neue Juristische Wochenschrift. München: Verlag C. H. Beck,

Caderno 4, 1995. p. 249. 76.. Idem, ibidem.

77.. Idem.

78.. A crítica do Tribunal Constitucional Federal alemão parece centrar foco no conceito mecanicista de ação, esquecendo-se de toda evolução que lhe seguiu. Assim, é elucidativo o conceito naturalista de Max Ernst Mayer – “ações são atos de vontade que se expressam e se acabam em movimentos corporais positivos e negativos”: mayer, Max Ernst.

Die schuldhafte Handlung und ihre Arten im Strafrecht. Leipzig: Verlag Von C. L. Hirschfeld, 1901. p. 18. Interessante panorama do desenvolvimento do conceito de ação até a

teoria social da ação, em: maihofer, Werner. Der Handlungsbegriff im Verbrechenssystem. Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1953. Ver também Wolff que defende um

conceito social da ação e nega categoricamente a possibilidade de se chegar a uma univocidade por meio do emprego do conceito individual de ação: wolff, Ernst Amadeus.

Der Handlungsbegriff in der Lehre vom Verbrechen. Heidelberg: Carl Winter – Universitätsverlag, 1964. p. 39.

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Constitucional Federal alemão basicamente como um ato de retórica, ou seja, com o fim de legitimar argumentativamente uma prévia escolha política-jurídica.