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José Danilo Tavares Lobato

5. Crime de posse como omissão própria

Lagodny busca definir qual seria o comportamento devido, caso se trabalhem os crimes de posse dentro da estrutura típica dos crimes omissivos próprios. Em verdade, a concretização de suas reflexões afasta-se da lege lata. Seu pensamento pode ser lido como uma proposta de lege ferenda. Inicialmente, raciocina o comportamento devido como o dever de destruir a coisa possuída. Lagodny, então, conclui que o proprietário possuidor pode ser legalmente obrigado a destruir o objeto. Contudo, esse dever não poderia ser imposto ao possuidor não proprietário. Se houver a exigência de que o mero detentor destrua a coisa, ter-se-á que lidar com um sério problema de colisão de deveres.80 O conflito de deveres surgiria em virtude da norma do § 303 do Código Penal alemão, que regula o crime de

dano. No Brasil, seu paralelo seria o art. 163 do Código Penal. Lagodny exemplifica a questão a partir de uma hipotética subtração de substâncias entorpecentes armazenadas numa drogaria. Então, se, com base na Lei de Drogas, o detentor está hipoteticamente obrigado a destruir o objeto e se, com base no crime de dano do Código Penal, o detentor está simultaneamente obrigado a não destruir a coisa alheia, a colisão de deveres precisará ser resolvida recorrendo-se ao estado de necessidade justificante, que, contudo, não soluciona satisfatoriamente a questão. Há de perceber que não se está diante de qualquer situação de salvaguarda de direito do possuidor e, muito menos, trate-se de uma hipótese em que o Estado não disponha de meios para intervir.81 O ponto central do problema é justamente o

inverso. O indivíduo, que possui o objeto proibido, não quer que o Estado intervenha. Em realidade, o que ele busca salvaguardar é sua liberdade, deixando-a fora da ação estatal de persecução criminal. Por outro lado, Lagodny levanta a possibilidade de o possuidor estar obrigado a delatar à polícia a posse, o que nos levaria ao problema de descobrir a existência de uma eventual obrigação de entrega da coisa às autoridades públicas82 e, por consequência, terminaria modificando a problemática em foco. Pode-se dizer que a falha dessas

soluções reside na garantia constitucional de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. O princípio nemo tenetur se detegere não pode ser violado por soluções de ordem dogmático-penal. Outra tentativa que não resolve a questão seria o descarte do

80.. lagodny, Otto. Op. cit., p. 328-329.

81.. Idem, ibidem. 82.. Idem, p. 328.

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objeto. O descarte do objeto não resolve a questão porque, mesmo que o possuidor não destrua a coisa, o proprietário deixará de ter acesso ao objeto, o que, segundo Lagodny, seria contraproducente, já que, além de configurar uma contradição do próprio legislador, abriria espaço para que outras pessoas encontrassem esse mesmo objeto.83

Como uma última tentativa de adequar os crimes de posse à estrutura dos crimes omissivos, Lagodny analisa a obrigação de entrega do objeto, mas centrando esforços para encontrar uma via em que não se viole o princípio nemo tenetur se detegere. Assim, retoma o exemplo das substâncias entorpecentes furtadas da farmácia. Inicialmente, afirma que a simples entrega das mesmas para uma farmácia, pelo possuidor ilegal, somente seria penalmente atípica – conforme a exigência da obrigação de garantidor – se o possuidor, com sua ação, não cedesse ou não colocasse em circulação as substâncias entorpecentes, na forma do tipo penal do § 29, I, 1, da BtMG, o que, contudo, não deixaria de configurar uma infração contraordenacional, segundo as normas de controle de cessão e aquisição previstas no § 32, I, 7, da BtMG.84 Quanto à entrega das substâncias entorpecentes para os órgãos estatais competentes nos

termos da BtMG, reconhece Lagodny que não se tem como assegurar que o nemo tenetur se detegere vá ser respeitado, ainda que, em princípio, esses órgãos não tenham a obrigação de comunicar o fato às autoridades responsáveis pela persecução penal.85 Mesmo que a

entrega fosse feita por meio de remessa anônima, não se impediria uma eventual autoincriminação do sujeito, posto que remanesceria o risco de uma possível identificação do remetente, o que, em última medida, terminaria anulando a razão de ser da entrega das substâncias entorpecentes.86 Por outro lado, Lagodny resigna-se e expõe que, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

alemão, a proibição do uso, no processo penal, de conhecimentos oriundos do cumprimento da obrigação administrativa de entrega do objeto seria um contrassenso, uma vez que se suprimiria processualmente, nos crimes de posse, a facilitação da prova almejada pelo legislador.87 No entanto, o problema mais difícil de ser solucionado ocorrerá quando a entrega do objeto ainda não estiver consumada.

Lagodny esclarece que o comportamento devido deve ser possível de ser realizado sem que o indivíduo esteja, desde já, sob o jugo de um sancionamento criminal. Em outros termos, a entrega do objeto não pode ser simultaneamente um comportamento exigido e

83.. lagodny, Otto. Op. cit., p. 329.

84.. Idem, p. 330. 85.. Idem, ibidem. 86.. Idem. 87.. Idem.

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proibido. Contudo, o critério da entrega, como o comportamento devido, resulta que só a entrega efetivada estará abarcada dentro de seu âmbito e, com isso, mesmo os indivíduos tementes à lei estarão sujeitos a uma reprovação penal, enquanto o comportamento devido não se consumar, vide aquele que está a caminho dos correios com a substância entorpecente envelopada, a fim de remetê-la para as autoridades competentes definidas na Lei de Drogas.88 A dificuldade, que surge da entrega incompleta, nasce do fato de que a entrega

pressupõe a prévia posse do objeto, ou seja, haverá necessariamente uma efetiva posse da coisa antes da realização da entrega. Não é possível entregar sem que se tenha a posse daquilo que se entrega, o que, por si só, basta para a consumação do crime de posse, do que decorre que, enquanto a conduta devida não se estiver efetivada, a punição será inevitável. De forma mais clara, encontrado o indivíduo na posse da coisa, os pressupostos para a aplicação da pena criminal estarão, de plano, demonstrados. Desse modo, a punição recairá no que se trata de uma mera relação com a coisa – de um estado – e não de um comportamento anteriormente praticado.89 Acerta Lagodny

em sua crítica ao afirmar que não basta conceder uma mera possibilidade teórica de entrega do objeto sem punição. Outro aspecto que merece ser destacado de sua análise reside em sua defesa de que é impossível interpretar o tipo penal do § 29, I, 3, da BtMG conforme a Constituição alemã, pois qualquer interpretação que venha a transformar o citado tipo penal em crime omissivo próprio demanda necessariamente um novo texto legal.90 Acentue-se que a postura de Lagodny sinaliza uma clara oposição à vontade do legislador de

levar a cabo o propósito de facilitar a colheita da prova.91