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A proteção da intimidade em relação a terceiros

No documento Governo eletrônico e direito administrativo (páginas 172-178)

CAPÍTULO 2 – BASES JURÍDICAS DO GOVERNO ELETRÔNICO

2.4. A equivalência de garantias

2.4.5. As novas tecnologias e o respeito à intimidade e à vida privada

2.4.5.2. A proteção da intimidade em relação a terceiros

Outro problema são os chamados excessos de transparência809, verifica- dos em razão do incremento da publicidade de dados pessoais e de seu tratamento por ter- ceiros, inclusive de modo automatizado810, que podem levar, com alguma facilidade, à ela- boração de um perfil completo a respeito de uma pessoa – a chamada radiografia do indi-

víduo811 –, sem seu conhecimento. Isso pode ocorrer tanto em razão da informação privada revelada de modo involuntário e inadvertido por ocasião da utilização da internet812, quan- to a partir das informações constantes de bases de dados públicas, caso estas estejam inde- fesas no âmbito do sistema informático público ou sejam oferecidas pela própria Adminis- tração813.

Fosse aplicado de modo literal o disposto no art. 31 da Lei n. 12.527/11, caso não houvesse expressa previsão legal para tanto, a Administração não poderia publi- car informação alguma que fizesse referência aos nomes daqueles que com ela se relacio-

808 Nos Estados Unidos da América, o Freedom of Information Act permite a difusão comercial da infor- mação pública (cf.CERRILLO I MARTINEZ, Agustí, La información del sector público, cit., p. 9).

809 Cf. F

ERNÁNDEZ SALMERÓN, Manuel, PARRA SÁEZ, Samuel, VALERO TORRIJOS, Julián, Crónica del año 2009, cit., p. 151.

810 Cf. F

ERNÁNDEZ SALMERÓN, Manuel, VALERO TORRIJOS, Julián, Protección de datos personales y Admi- nistración electrónica, cit., p. 119.

811 Cf. D

UNI, Giovanni, L'amministrazione digitale, cit., p. 80. Ainda sobre o tema, cf. PALOMAR OLMEDA, Alberto, La utilización de las nuevas tecnologías en la actuación administrativa, cit., p. 369. Fala-se, neste caso, na chamada teoria do mosaico, pela qual os dados irrelevantes, a partir da interconexão de arquivos e da livre utilização dos dados, podem servir a uma finalidade diferente e, portanto, proporcionar referências completas sobre uma determinada pessoa (cf. CASTELLS ARTECHE, José Manuel, La limitación informática, cit., p. 924).

812 Cf. V

ALERO TORRIJOS, Julián, LÓPEZ PELLICER, José Antonio, Algunas consideraciones sobre el derecho a la protección de los datos personales en la actividad administrativa, cit., p. 258.

813 Cf. D

nam, apenas pelo fato de se tratar de um dado de caráter pessoal (art. 4º, IV), que estaria protegido pelo sigilo estabelecido (art. 31), pois não há, como visto, uma distinção legal entre os diversos tipos de informação pessoal e suas diferentes necessidades de tutela. To- davia, não constitui entendimento equilibrado vedar a publicidade de qualquer dado que possa ser relacionado a uma pessoa, pois há muitas hipóteses em que a divulgação de in- formações de interesse coletivo envolve alguma menção aos nomes dos envolvidos. Tam- pouco seria apropriado que uma lei estabelecesse a publicação indiscriminada de dados de caráter pessoal, sem atenção para os mecanismos necessários para diminuir o potencial lesivo à intimidade e à vida privada.

Na verdade, uma boa compreensão dessa problemática envolve a consi- deração de vários aspectos sutis relativos à publicidade das informações pessoais, sobretu- do aquelas que não devem excluir, de modo absoluto, o conhecimento por terceiros. A chave é ter em mente, diante do contexto tecnológico contemporâneo, que a publicidade administrativa deve servir para finalidades de interesse público, e não para a divulgação indireta de informações que possam ser usadas para satisfazer meros interesses privados.

Com efeito, nos mecanismos de acesso tradicionais, as informações são fornecidas pontualmente aos interessados, quando estes se dirigem à Administração para consultar expedientes e obter certidões, ou são oferecidas de modo amplo, mediante publi- cações oficiais. Embora seja possível, em tese, a utilização de tais informações para finali- dades ilegítimas, isso só pode ser feito com muito custo, pois há a necessidade de um tra- balho humano para a extração das informações a partir de documentos em papel. O forne- cimento de informações por meios eletrônicos elimina esses impedimentos e traz novos contornos para o assunto. De fato, a publicação de dados pessoais pela internet não se mos- tra tão inofensiva: estando em suporte eletrônico, eles podem ser objeto das referidas ope- rações de processamento, colocando em perigo a intimidade e a esfera privada das pessoas envolvidas.

A problemática é perceptível, por exemplo, na publicação de atos admi- nistrativos. Sem dúvida, o direito ao conhecimento das decisões da Administração deve ser considerado fundamental em qualquer Estado democrático e não há dúvida de que esse

direito pode ser satisfeito por meio do uso das novas tecnologias814. No entanto, na realida- de atual, mesmo a difusão do conteúdo de atos administrativos por meio da internet pode trazer alguns inconvenientes sob a perspectiva da proteção de dados pessoais815, pois, com a ajuda de potentes e gratuitos motores de pesquisa hoje disponíveis, é fácil localizar in- formações associadas a pessoas determinadas – v.g., atos restritivos de direitos ou puniti- vos816.

No contexto das novas tecnologias, não se pode presumir que o acesso à informação tenha sempre uma finalidade legítima, relacionada aos direitos inerentes à ci- dadania. Com a possibilidade de tratamento automático de dados por particulares, a baixo custo, é bastante provável que o acesso a uma informação pública não decorra de um inte- resse em exercer direitos de cidadania, mas do propósito de cometer verdadeiros atos ilíci- tos que afrontam a privacidade e a intimidade. Também não é possível deixar de considerar a situação, frequente nos dias atuais, de que o acesso seja feito por mera curiosidade, mui- tas vezes dirigida justamente sobre a esfera privada alheia, e não em razão de objetivos mais nobres. Em qualquer dos casos, os desvios associados à difusão de informação por meios informáticos têm repercussões muito mais amplas do que aqueles verificados quan- do usados os meios tradicionais.

Para evitar tais desvios, é necessário avaliar não somente se uma infor- mação deve ser publicada, mas em que condições e em que suporte817. A publicidade de dados detidos pelo Poder Público oferece alguma complexidade, pois há diferentes meca- nismos para tal, com características diversas. Com efeito, mesmo tendo em conta apenas a informação publicada com o uso da internet, há diversas situações, que não podem ser con- sideradas juridicamente equivalentes. De fato, existe uma grande diferença entre a infor- mação divulgada de modo indiscriminado, sem limitação alguma de acesso, e a informação oferecida mediante solicitação pontual ou com algum mecanismo de controle. No primeiro caso, a informação está sujeita a captura mediante os motores de busca disponíveis na pró-

814

Cf. CAMMARATA, Manlio, E-content e accesso: le libertà fondamentali nel Codice dell'amministrazione digitale, in Informatica e diritto, n. 1/2, Napoli, Edizioni Scientifiche Italiane, 2005, p. 99.

815 Cf. V

ALERO TORRIJOS, Julián, El régimen jurídico de la e-Administración, cit., p. 150. 816 Cf. V

ALERO TORRIJOS, Julián, Las garantías jurídicas en la Administración electrónica, cit., p. 25. 817 Cf. P

pria internet, sendo possível considerar a existência de uma publicidade de segundo grau, que torna a informação muito mais fácil de localizar e facilita, por outro lado, que ela seja utilizada para fins abusivos818.

É necessário garantir a difusão da informação e, ao mesmo tempo, impe- dir ou ao menos dificultar o recolhimento automatizado de dados pessoais819. Ainda que utilizados meios eletrônicos, o acesso pontual, referido a uma informação determinada, em especial quando dotado de mecanismos de segurança informática, não difere daquele efe- tuado sem o uso da tecnologia. Já o acesso automatizado, que proporciona a replicação completa de bases de dados públicas, deve ser visto com cuidado. Caso contrário, corre-se o risco de ter em mãos de particulares bases de dados pessoais copiadas daquelas construí- das pelo Estado mediante o exercício dos poderes que lhe são inerentes820.

Nessa perspectiva, devem ser consideradas relevantes, sob o prisma jurí- dico, realidades aparentemente restritas à informática, como os mecanismos de controle de consultas automatizadas, a possibilidade de utilização de motores de busca dentro de por- tais eletrônicos da Administração Pública e o oferecimento de informações apenas median- te consulta pontual, e não por publicação ampla no portal. A correta utilização de tais me- canismos é fundamental para impedir que as informações detidas pelo Poder Público sejam utilizadas de modo indevido por particulares. Por outro lado, é preciso ver com cautela os

818

É possível afirmar que a informação oferecida na internet, capturável por meio dos motores de pesquisa, oferece um nível de publicidade até agora desconhecido. Esse forma de divulgação facilita bastante a locali- zação de informações relevantes e pode ser considerada até mesmo superior ao que seria necessário para a defesa de direitos. Ao mesmo tempo, traz riscos muito maiores. Em circunstâncias tecnológicas tão diferen- tes, simplesmente não é possível aproveitar as conclusões alcançadas no confronto entre publicidade adminis- trativa e privacidade no âmbito da administração em papel. É preciso fazer uma nova avaliação, que leve em conta a realidade contemporânea, para identificar precisamente em que medida é possível veicular informa- ções pela internet, sobretudo informações atribuíveis a pessoas determinadas que possam ser encontradas por meio de motores de pesquisa.

819 Cf. F

ERNÁNDEZ SALMERÓN, Manuel, VALERO TORRIJOS, Julián, La publicidad de la información adminis- trativa en internet, cit., p. 82.

820

Por essa razão, o paradigma dos dados abertos, que defende a difusão pública de informação apta ao tra- tamento automatizado, não alcança os dados pessoais, mas apenas as informações de acesso indiscriminado (cf. supra, nota 741). Nesse sentido, os formatos e exigências técnicas prescritas para os dados de interesse coletivo e geral (art. 8º, § 3º da Lei n. 12.527/11) não se aplicam aos dados pessoais, que gozam de um nível diferente de proteção.

pedidos que tenham por objeto não um acesso a uma informação específica, mas um con- junto de informações, tal como uma consulta ampla às bases de dados da Administração821.

A identificação de pessoas concretas nas informações administrativas objeto de publicidade não deve ser algo generalizado, cabendo restringi-la às situações em que o conhecimento dessa identidade seja necessário para o exercício de um direito ou in- teresse legítimo822. Se o conhecimento da informação não é determinante para a defesa dos direitos ou interesses legítimos de quem pretende conhecê-la, não é justificado sacrificar a privacidade823. Ressalte-se, a propósito, que a veiculação de informações pessoais pela internet – ou mediante publicações oficiais acessíveis por ela – deve ser evitada tanto quan- to possível, em especial se a informação for passível de pesquisa tendo como critério de busca o próprio nome da pessoa824. Caso possível tal pesquisa, a tendência natural é que a publicidade administrativa constitua um modo de proporcionar a indevida interferência sobre a esfera privada da pessoa referida pela informação publicada. Sempre que a divul- gação dos nomes das pessoas envolvidas não for necessária para dar transparência à atua- ção da Administração e para o exercício de direitos825, sua divulgação por meio da internet

821 Neste caso, é importante considerar qual seria o objetivo concreto da solicitação, de forma a identificar se o requerente ostenta de fato algum propósito relacionado à defesa do interesse público ou se pretende, sim- plesmente, apropriar-se do patrimônio informativo público. Cf., tratando de dados pessoais, FERNÁNDEZ

SALMERÓN, Manuel, VALERO TORRIJOS, Julián, La publicidad de la información administrativa en internet: implicaciones para el derecho a la protección de los datos personales, cit., p. 89. Os mesmos autores trazem um exemplo enfrentado pela Justiça espanhola, em que foi denegado o acesso aos números das matrículas e cargas de todos os veículos que constavam dos registros da autoridade de tráfego em nome de uma determi- nada pessoa jurídica (cf.ibidem, p. 90).

822 Cf. F

ERNÁNDEZ SALMERÓN, Manuel, VALERO TORRIJOS, Julián, La publicidad de la información adminis- trativa en internet, cit., p. 121 e, dos mesmos autores, La difusión de información administrativa en Internet y la protección de los datos personales, cit., p. 329.

823 Cf. V

ALERO TORRIJOS, Julián, El acceso telemático a la información administrativa, cit., p. 40. No orde- namento brasileiro, em função do princípio da impessoalidade, a publicidade deve ser feita, tanto quanto possível, sem alusão a pessoas específicas. Do mesmo princípio deve decorrer uma espécie de presunção de que a informação referente a pessoas determinadas não é a mais relevante, quando se trata da difusão infor- mativa. Pode surgir a necessidade de divulgação de nomes, conforme as características de cada caso, porém isso não deve ser visto como aspecto essencial do direito de informação.

824 Trata-se de uma situação muito frequente, na prática, no caso de publicação de ato administrativo por meio da internet ou por publicação oficial disponível on line. A respeito da publicação de atos administrati- vos como meio para veiculação de dados de caráter pessoal, cf.FERNÁNDEZ SALMERÓN, Manuel, VALERO

TORRIJOS, Julián, La publicidad de la información administrativa en internet, cit., p. 115. 825

Existem situações em que é indispensável oferecer informação específica ao cidadão a respeito de servido- res, como é o caso de quando é preciso contatar uma pessoa específica(cf.FERNÁNDEZ SALMERÓN, Manuel, VALERO TORRIJOS, Julián, La publicidad de la información administrativa en internet: implicaciones para el derecho a la protección de los datos personales, cit., p. 122 e La difusión de información administrativa en Internet y la protección de los datos personales, cit., p. 329).

não pode ser admitida826, porque o risco de prejuízos à intimidade não seria acompanhado de benefício significativo para a transparência, levando a uma violação do princípio da proporcionalidade827. Observe-se que as tecnologias oferecem alternativas bastante interes- santes em tais casos, como, por exemplo, a publicação das informações na internet com nomes fictícios e aleatórios, sem prejuízo de que a revelação das verdadeiras identidades ocorra mediante uma solicitação pontual de acesso por parte de eventual interessado.

O regime jurídico relativo à difusão de informações inclui também a de- finição de responsabilidades por eventuais abusos. Observe-se, a propósito, que a simples possibilidade de utilização indevida da informação não justifica um tratamento apenas pre- ventivo da matéria, sendo necessário organizar mecanismos eficazes de sanção a tais abu- sos828. A responsabilidade última pelas condições e pressupostos jurídicos que habilitam o acesso cabe exclusivamente a quem o permite829. No entanto, o simples fato de os dados terem sido publicados pela Administração Pública por meio de uma fonte acessível ao pú- blico não autoriza que eles possam ser empregados para qualquer finalidade, sem maiores

826

No exercício de tal tarefa, as agências de proteção de dados europeias criaram uma doutrina que exige a aplicação de técnicas compatibilizadoras, entre as quais sobressai a “anonimização”, muito frequente em países como Itália e França (cf. FERNÁNDEZ SALMERÓN, Manuel, PARRA SÁEZ, Samuel, VALERO TORRIJOS, Julián, Crónica del año 2009, cit., p. 154).

827

Uma situação interessante diz respeito à possibilidade de que informações relacionadas a uma pessoa sejam publicadas na internet, na condição de parte integrante de um ato administrativo – por exemplo, um ato sancionador referente a uma conduta que possa causar algum constrangimento moral à pessoa considerada. Caso a informação veiculada pela internet esteja sujeita a ser encontrada por um motor de pesquisa, em fun- ção do nome da pessoa, a publicidade acaba por extrapolar seus propósitos legítimos, relacionados ao contro- le da regularidade dos atos administrativos, servindo apenas para levar ao conhecimento de terceiros, a título de curiosidade, dados relacionados à vida privada de uma pessoa específica, o que motivaria um eventual pedido de reparação desses danos. Neste caso, três seriam, em tese, os possíveis responsáveis pelo dano: a Administração, a imprensa oficial e o titular do motor de pesquisa. Não seria propriamente absurdo conside- rar que o dano só ocorreu em função da existência do motor de pesquisa, que permitiu localizar a informação danosa em função do nome do envolvido. Todavia, esse entendimento não parece adequado em vista do contexto em que vivemos, no qual os motores de busca se tornaram uma realidade inafastável, ferramenta que é usada, de forma neutra, por quem está à procura de uma determinada informação. Nesse sentido, a publicação de qualquer informação deve ser feita com os cuidados próprios desse contexto tecnológico: sen- do possível a pesquisa por nomes ou palavras, ela provavelmente ocorrerá. A publicação de atos vinculados a nomes pode ser entendida como necessária e lícita, mas é preciso que a entidade incumbida da publicação na internet utilize as práticas tecnológicas adequadas para evitar a utilização de motores de busca para localiza- ção de informações em função dos nomes das pessoas envolvidas. Sobre a questão, com entendimento se- melhante, cf. VALERO TORRIJOS, Julián, Implicaciones de la protección de datos de carácter personal para la Administración electrónica, in VVAA, La protección de datos en la Administración Electrónica. Pamplo- na, Aranzadi, 2009, p. 183.

828 Cf. T

RUDEL, Pierre, op. cit., p. 49. 829 Cf. V

ALERO TORRIJOS, Julián, Acceso a los servicios y difusión de la información por medios electróni- cos, cit., p. 274.

exigências e limitações830. Assim, a inclusão de dados pessoais em diários oficiais não permite, de modo generalizado, que essa informação possa ser tratada para qualquer finali- dade, muito menos se esta se mostrar incompatível com o propósito que justificou sua in- clusão em tal publicação831.

No documento Governo eletrônico e direito administrativo (páginas 172-178)

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