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Uma posição adequada frente à realidade informática

A premente adaptação do direito administrativo às novas tecnologias normalmente não ocorre no tempo devido287. Em geral, há uma proverbial defasagem entre normas e as transformações sociais a serem reguladas288, ou, mais especificamente, uma assincronia nas relações entre direito e tecnologia, de maneira que a absorção jurídica dos avanços da ciência e da técnica costuma ser lenta289. No caso do governo eletrônico, esse caráter conservador do direito é acompanhado pelo apego à sacralidade das formas – que sempre representou uma causa de atraso na aceitação do novo290 –, bem como pela aliena- ção, muito comum entre os juristas, em relação às tecnologias da informação e da comuni-

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As particularidades dos meios informáticos provocaram, há alguns anos, uma tendência à defesa de um novo ramo do direito, que seria o direito da informática. Entretanto, a posterior e maciça utilização das tec- nologias da informação nos vários ramos jurídicos tradicionais acabou por revelar que o direito da informáti- ca poderia ser apenas uma linha de pesquisa ou de especialização, mas não um ramo do direito. De fato, assim como nunca houve um “direito do papel”, não há necessidade de reconhecer a existência de um direito da informática, como ramo autônomo. A tendência é a incorporação profunda dos temas relativos às tecnolo- gias da informação e da comunicação nos ramos do direito já conhecidos, levando o chamado direito da in- formática a confundir-se com o direito comum dos processos administrativos e das relações comerciais(cf., a respeito desse último ponto,BRAIBANT,Guy, Données personnelles et société de l'information: rapport au Premier ministre sur la transposition en droit français de la directive numéro 95-46, Paris, La Documentati- on française, 1998, disponível em: http://lesrapports.ladocumentationfrancaise.fr/cgi- bin/brp/telestats.cgi?brp_ref=984000836&brp_file=0000.pdf, acesso em 30.12.2010, p. 13).

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Entendendo que o direito administrativo não tem acompanhado a evolução tecnológica, cf.FILGUEIRAS

JÚNIOR, Marcus Vinicius, Ato administrativo eletrônico e teleadministração, cit., p. 244. 288 Cf. F

ERNÁNDEZ SALMERÓN, Manuel,VALERO TORRIJOS, Julián, La difusión de información administrati- va en Internet y la protección de los datos personales: análisis de un proceso de armonización jurídica, in Nuevas Politicas Públicas: Anuario multidisciplinar para la modernización de las Administraciones Públi- cas, n. 1, Sevilla, Instituto Andaluz de Administración Pública, 2005, p. 309, disponível em

http://www.juntadeandalucia.es/institutodeadministracionpublica/servlet/descarga?up=16514, acesso em

24.10.2010. 289 Cf. P

ÉREZ GÁLVEZ, Juan Francisco, op. cit., p. 570 e OCHOA MONZÓ, Josep, MARTÍNEZ GUTIÉRREZ, Rubén, La permeabilidad de la actividad administrativa al uso de tecnologías de la información y de la co- municación, cit., p. 78.

290 Cf. D

cação291. Com isso, os reflexos jurídicos da difusão da tecnologia ainda não foram adequa- damente avaliados, sendo a disciplina jurídica da matéria quase inexistente entre nós, sen- do também poucos os estudos a respeito do tema292.

A omissão do direito em regular de modo amplo e consistente a utiliza- ção das novas tecnologias no âmbito da Administração Pública traz sérias consequências negativas. De maneira apenas ilustrativa, pode-se identificar três atitudes diversas em rela- ção ao tema, em vista da falta de uma regulação adequada da utilização das novas tecnolo- gias: a) não reconhecer a possibilidade de utilizar as novas tecnologias, sob o argumento de elas se encontrarem previstas normativamente; b) aceitar somente a utilização dos meios que puderem ser compatibilizados com os limites do ordenamento vigente, após uma crite- riosa avaliação; c) admitir sempre a utilização das novas tecnologias sem restrições subs- tanciais, por se tratar apenas de meios para a atividade administrativa, que não trazem, em si, questões jurídicas significativas.

A primeira atitude parte do pressuposto de que leis e regulamentos, ao exigir assinaturas, timbres e registros, devem ser considerados dados imodificáveis e in- contornáveis do problema293, pois leis formais não poderiam ser simplesmente derrogadas em vista de um melhor funcionamento da Administração294. Nessa linha, seria admissível

291

Cf. COTINO HUESO, Lorenzo, Derechos del ciudadano administrado e igualdad ante la implantación de la Administración electrónica, cit., p. 125, com a ressalva de que esse problema vem sendo superado. A questão já foi objeto de críticas mais contundentes em tempos passados: “É precisamente ao jurista que se costuma imputar e não sem certa parte de razão um atraso de atitude mental dada sua tradicional formação, quando contempla a utilização destas técnicas do computador. Todos os demais ramos [do conhecimento] participam deste desejo pela utilização do computador e da telemática e são escassos os juristas que se sentem com au- têntica inquietude esta preocupação” (VILLAR PALASÍ, José Luis, op. cit., p. 503). Para MARÇAL JUSTEN FI- LHO, haveria uma espécie de impermeabilidade do direito às novas tecnologias, provocada pela dissociação entre conhecimento técnico e conhecimento jurídico. O autor observa que grande parte dos atuais juristas desenvolveu sua formação no contexto da primeira metade do século XX, tendo assim domínio dos aspectos jurídicos, mas não das questões tecnológicas, ao passo que as novas gerações estão produzindo a revolução tecnológica (cf. Pregão: comentários à legislação do pregão comum e eletrônico, 5.ª ed., São Paulo, Dialéti- ca, 2009, pp. 277-278). O problema, contudo, não foi exclusivo dos juristas: estudos de tecnologia e organi- zação durante muito tempo foram considerados exclusivos para especialistas em sistemas de informação, tendo sido ignorados pelos cientistas sociais e políticos, exceto aqueles com um interesse explícito em tecno- logia(cf.FOUNTAIN, Jane E., op. cit., p. 9 e GROSS,Thomas, op. cit., p. 65).

292

Cf. JUSTEN FILHO, Marçal, Pregão, cit., p. 277. Segundo o autor, “verifica-se uma significativa dissocia- ção entre a realidade econômica e a disciplina jurídica, eis que esta última ainda não formulou os princípios e as regras pertinentes à utilização da nova tecnologia” (op. e loc. cit.).

293 Cf. D

UNI, Giovanni, Teleamministrazione, cit., item 2.2. 294 Cf. I

somente um modo de atuação em que os processos administrativos não fossem substanci- almente alterados, podendo o computador apenas memorizar os dados provenientes de atos produzidos no modo tradicional, em papel295. Essa atitude enfrenta hoje um difícil confron- to com a realidade: com efeito, grande parte da atividade administrativa formal já é desem- penhada diretamente por meios informatizados, os quais não servem apenas como meio de armazenamento de atos praticados em papel. Nesse sentido, o uso das tecnologias não é mais apenas uma realidade social; é uma realidade administrativa e jurídica, presente na atividade administrativa formalizada. Não admitir a possibilidade jurídica de utilizar as tecnologias da informação e da comunicação implicaria reconhecer a invalidade de mi- lhões de atos administrativos já praticados. Isso traria não somente problemas de ordem prática, mas um rompimento da própria segurança jurídica, decorrente da invalidade maci- ça de tantos atos administrativos hoje plenamente eficazes.

A segunda atitude é uma variação da primeira, pois valoriza apenas al- guns obstáculos normativos, tidos como incontornáveis. Admitidos esses impedimentos, a única saída é selecionar, entre as atividades a serem informatizadas, aquelas que são facil- mente enquadráveis no esquema tradicional da atividade burocrática, procurando assim evitar vícios formais296. Embora pareça equilibrada, e muitas vezes seja a melhor solução possível, essa alternativa não traz somente aspectos positivos. Na verdade, ela tende a gerar formas de atuação excessivamente semelhantes às que existiam antes da era dos computa- dores e da informática297, ao aceitar uma limitação na utilização de meios que poderiam, caso bem regulados, trazer melhorias concretas para a atividade administrativa. Em outras palavras, a subserviência a determinados impedimentos normativos pode significar um desperdício para o aperfeiçoamento da atividade administrativa, objetivo que não pode ser ignorado pelo operador do direito.

A terceira atitude tampouco merece encômios. Com efeito, procurar re- conhecer a validade da atividade administrativa formal realizada por meios informatizados,

295

Segundo DUNI, este sempre foi um problema prático verificado pelos profissionais da informática em suas atividades no âmbito da Administração Pública (cf. La teleamministrazione come terza fase dell’informatica amministrativa, cit., item 2).

296 Cf. B

OMBARDELLI, Marco, op. cit., pp. 996-997. 297 Cf. D

rejeitando a importância jurídica dos meios e suportes, pode até ser a posição mais atraente do ponto de vista pragmático, mas enfrenta dois problemas fundamentais: primeiro, essa solução despreza o fato de que os meios para as atividades administrativas tornaram-se complexos e suscetíveis de questões jurídicas substanciais; segundo, menospreza o papel fundamental do direito na regulação da Administração Pública. O governo eletrônico passa a ser uma iniciativa dos profissionais da informática e da ciência da administração, pare- cendo ser mais bem compreendido por essas outras ciências298. Ao direito é reservada uma função passiva e marginal, a reboque da realidade e dos estudos dessas outras discipli- nas299. Essa situação é bastante frequente na prática, pois vários documentos sobre governo eletrônico simplesmente não fazem referência ao direito administrativo300.

Nenhuma dessas atitudes, assim, parece apropriada. O direito não pode ser simplesmente contrário às novas tecnologias, não deve desperdiçar sua utilidade e não comporta a simples adesão às linhas traçadas pelas demais áreas do conhecimento. Na ver- dade, ele precisa estar devidamente adaptado para dar conta, de maneira ampla, da introdu- ção das tecnologias da informação no setor público, com uma postura ativa, de lideran- ça301, que garanta a supremacia das exigências normativas em vista da submissão constitu- cional da Administração Pública ao ordenamento jurídico302. As novas tecnologias não

298

Segundo tal entendimento, essas outras perspectivas (ciência política, ciência da administração, econômi- cas, etc.) seriam mais adequadas à investigação do governo eletrônico, por suas menores dificuldades de trabalhar sobre a realidade atual e sua maior flexibilidade metodológica para atuar sobre ela (cf. COTINO

HUESO, Lorenzo, Derechos del ciudadano administrado e igualdad ante la implantación de la Administraci- ón electrónica, cit., p. 127).

299

Cf. COTINO HUESO, Lorenzo, Derechos del ciudadano administrado e igualdad ante la implantación de la Administración electrónica, cit., p. 126.

300 Cf. V

ALERO TORRIJOS,Julián, Administrative Law and eGovernment, in EUROPEAN COMMISSION, DG INFORMATION SOCIETY, EGOVERNMENT UNIT, Breaking Barriers to eGovernment - Overcoming obstacles to

improving European public services, 2006, disponível em

http://www.egovbarriers.org/downloads/deliverables/Deliverable_1b_Aug_16_2006.pdf, acesso em

30.01.2011, p. 42.

301 Em sentido contrário, entendendo que o direito “aguardará os movimentos políticos e sociais para a eles se adequar”, cf. ALMEIDA, André de, Aspectos jurídicos do e-government no Brasil, in FERRER, Florencia, SAN- TOS, Paula, E-government: o governo eletrônico no Brasil, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 54.

302 Cf. V

ALERO TORRIJOS, Julián, Administración pública, ciudadanos y nuevas tecnologías, cit., p. 2944 e Las garantías jurídicas en la Administración electrónica ¿avance o retroceso?, in Cuenta con IGAE, Madrid, IGAE, n. 22, 2009, p. 28. Assim, a questão principal já não diz respeito a se é ou não possível a aplicação das novas tecnologias no âmbito da Administração Pública, devendo ser discutido como tornar possível a compa- tibilidade entre as novas tecnologias e os princípios garantistas da atividade administrativa (cf. PALOMAR

constituem um fim em si mesmas, mas um meio real para atingir muitos dos fins a serem buscados pela Administração, por força da Constituição303.

Para tanto, é preciso ter em mente que, mesmo no governo eletrônico, a estrutura normativa deve provir de mecanismos alinhados ao ordenamento constitucional. Como os sistemas de informação funcionam com base em regras, apesar de invisíveis304, é indispensável reconhecer que várias dessas regras também fazem parte do ordenamento jurídico. Somente desse modo é possível trazer também para o governo eletrônico a noção de Estado de Direito, somando as conquistas da tecnologia aos avanços consolidados no curso de vários séculos, sobretudo no tocante à garantia e efetivação dos direitos funda- mentais. As regras contidas em sistemas informatizados não devem ser mais importantes que o ordenamento jurídico, muito menos alheias a este: devem, na verdade, integrar-se ao sistema normativo estatal305.

Assumindo sua missão, o direito pode ter três diferentes funções em rela- ção à incorporação das tecnologias da informação na Administração Pública. Uma é limitar o emprego indevido de meios informáticos e telemáticos, preservando o ordenamento jurí- dico306 e observando as fronteiras legais307, pois nem todas as possibilidades oferecidas pela tecnologia são admissíveis juridicamente, em vista das finalidades peculiares buscadas pela atividade administrativa308. Outra é conformar o uso das novas tecnologias, servindo

303 Cf. M

ARTÍN DELGADO, Isaac, La administración electrónica como reto del derecho administrativo en el siglo XXI, cit., p. 327 e FILGUEIRAS JÚNIOR, Marcus Vinicius, Ato administrativo eletrônico e teleadministra- ção, cit., p. 247.

304

Cf. FOUNTAIN, Jane E., op. cit., p. 61.

305 Assim, os debates e as análises destinadas à elaboração e implantação de sistemas eletrônicos devem estar abertos à participação da sociedade. Os efeitos normativos e sociais são fruto das decisões e das escolhas da arquitetura dos sistemas, que não são neutras. Ao contrário, elas pressupõem valores e representações que devem ser objeto de uma discussão pública prévia (cf. BENYEKHLEF, Karim, op. cit., p. 277).

306 Ainda tratando da mecanização, na década de 1960, Z

EIDLER questionava: “Quanto antes assimile o juris- ta este novo estilo de administração, e quanto antes tente influir sobre sua evolução, tanto menores serão os perigos que possam derivar-se para nosso ordenamento jurídico. Quem senão o jurista está chamado a pre- servar o direito de uma degradação pela lei da máquina?” (op. cit., p. 72).

307 Cf. G

ARCÍA MARCO, Francisco Javier, Ontologías y documentación electrónica en las actividades públi- cas, cit., p. 180.

308 Cf. V

para dar melhor rumo a tais iniciativas309, definindo critérios de acordo com o sistema legal e enquadrando os avanços tecnológicos para preservar a dignidade e as liberdades indivi- duais310. A última função é impulsionar os projetos de modernização tecnológica311, parti- cipando de modo ativo do desenvolvimento da administração eletrônica312, por meio de reformas legais313 que criem condições normativas para que a Administração possa extrair o máximo das tecnologias informáticas e telemáticas, mantido o respeito às exigências e garantias jurídicas pertinentes314.

309 Cf. C

ASTELLS ARTECHE, José Manuel, Aproximación a la problemática de la informática y administra- ción pública, in Jornadas Internacionales sobre Informática y Administración Pública, Oñati, Instituto Vas- co de Administración Pública, 1986, p. 28.

310

Cf. DE ROY, David, DE TERWANGNE, Cécile, POULLET, Yves, op. cit., p. 356. 311 Cf. V

ALERO TORRIJOS, Julián, El régimen jurídico de la e-Administración, cit., p. XVIII. 312 Cf. S

ÁNCHEZ RODRÍGUEZ, Francisco, op. cit., p. 46. 313 Cf. P

ETRAUSKAS,Rimantas, KISKIS, Mindaugas, Teaching on E-government: aspects of legal environ-

ment, in GALINDO, Fernando, TRAUNMÜLLER, Roland (ed.), E-Government: Legal, Technical and Pedagogi-

cal Aspects, Zaragoza, Seminario de Informatica y Derecho, 2003, p. 339. 314 Cf. V

ALERO TORRIJOS, Julián, Las garantías jurídicas en la Administración electrónica, cit., p. 21. Esse marco normativo deve observar as peculiaridades e fins próprios do setor público, de forma que não pode ser simplesmente inspirado em formas correntes no setor privado, como é o caso do comércio eletrônico (cf. GUILLÉN CARAMÉS, Javier, op. cit., p. 253; MARTÍN DELGADO, Isaac, La administración electrónica como reto del derecho administrativo en el siglo XXI, cit., p. 330;VALERO TORRIJOS,Julián, Administrative Law and eGovernment, cit., p. 42).

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