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Desafios à isonomia na criação de serviços digitais

No documento Governo eletrônico e direito administrativo (páginas 132-137)

CAPÍTULO 2 – BASES JURÍDICAS DO GOVERNO ELETRÔNICO

2.4. A equivalência de garantias

2.4.2. A igualdade na utilização das tecnologias

2.4.2.1. Desafios à isonomia na criação de serviços digitais

Do ponto de vista prático, devem ser citadas duas complexas questões, que constituem desafios em relação a possíveis discriminações decorrentes do relaciona- mento eletrônico entre a Administração Pública e usuários.

A primeira delas diz respeito à viabilidade jurídica da imposição do rela- cionamento com a Administração exclusivamente por meios eletrônicos. Mesmo conside-

622

Cf. GROSS,Thomas, op. cit., p. 71. Sobre o tema, cf. também a nota 703, infra.

623 Em tese, haveria também a possibilidade de que o funcionário realizasse as operações pelo interessado, por solicitação deste, mas isso pode levar a situações de discrepância entre a vontade do interessado e a que foi processada pelo funcionário(cf.VALERO TORRIJOS, Julián, Administración pública, ciudadanos y nuevas tecnologías, cit., pp. 2957-2958).

624 Cf. A

RENA, Gregorio, op. cit., pp. 429-430.

625 Foi o que ocorreu, no Brasil, com as declarações de imposto de renda, em que os meios eletrônicos foram oferecidos de modo facultativo e depois vieram a ser tornados obrigatórios. Em 1991, a Receita Federal ad- mitiu a elaboração da declaração em programa de computador e, em 1997, aceitou a transmissão pela inter- net, sempre de forma facultativa. Em 2011, foi abolido o formulário em papel, pela Instrução Normativa RFB n. 1095/2010. O histórico da utilização da tecnologia pela Receita Federal pode ser consultado em:

rado o potencial discriminador das tecnologias da informação626, não é possível afirmar, desde logo, a existência de um indiscutível direito ao papel, ou seja, um direito de relacio- namento com a Administração Pública por meios convencionais ou físicos627. De fato, em vista da natureza de sua interação com o usuário, a Administração não pode simplesmente fechar canais de relacionamento, como muitas vezes ocorreu no setor privado628. No âmbi- to da atividade administrativa, o atendimento exclusivo por meio digital constitui uma questão a ser analisada com bastante cuidado, de maneira a encontrar uma solução juridi- camente equilibrada e aceitável.

A forma da prestação do serviço não tem, em si, tanta repercussão jurídi- ca, devendo ser avaliado, concretamente, se ela oferece vantagens efetivas para a atividade administrativa e se causa algum prejuízo para os usuários ou parte deles, sobretudo no to-

626 Cf. L

EMAITRE, Marie-Françoise, Téléprocédure administrative: le pari de la confiance, in Actualité juri- dique - Droit administratif, n.20, jul.-ago. 2001, p. 630.

627 Defendendo esse entendimento,G

ÓMEZ PUENTE indica um princípio da voluntariedade e uso alternativo, com o seguinte conteúdo: “Somente por causas justificadas e legalmente determinadas pode-se exigir o uso de serviços ou meios de administração eletrônica” (op. cit., p. 123). O ponto central, contudo, não é a volun- tariedade, pois não é razoável atribuir ao cidadão o poder de definir a forma da prestação de serviços, mas a necessidade de evitar a discriminação, exigindo-se sempre que o serviço seja acessível. Reconhecendo um direito de opção entre o atendimento digital e o tradicional, porém sem caráter absoluto, em razão da possibi- lidade de ser imposto o atendimento eletrônico, cf. COTINO HUESO, Lorenzo, Derechos del ciudadano admi- nistrado e igualdad ante la implantación de la Administración electrónica, cit., p. 142. Considerando todos os procedimentos eletrônicos como facultativos e coexistentes com os de papel, cabendo aos usuários a liber- dade de escolha, cf.BELOULOU, Véronique, op. cit., p. 625; CANTERO, Anne, op. cit., p. 114 e JINESTA LOBO, Ernesto, op. cit., p. 8. No sentido de que a utilização exclusiva de meios eletrônicos somente será possível quando reduzida a um mínimo o analfabetismo digital, cf. RIVERO ORTEGA, Ricardo, El expediente adminis- trativo, cit., p. 201. Entendendo que se trata de uma questão política, relacionada à definição de políticas públicas, por não haver um direito fundamental à escolha da mídia, cf. GROSS,Thomas, op. cit., p. 71. Na verdade, o direito fundamental é ao acesso razoável e isonômico aos serviços da Administração Pública, que pode ser violado conforme a situação concreta, quando se restringem os meios para tanto. É importante res- salvar, também, que esse “direito ao papel”, que pode ser considerado existente em determinadas situações, deve ter um âmbito de aplicação bem delimitado: o do relacionamento entre o usuário e o Poder Público, ou seja, o front office. A tramitação de expedientes em papel não poderia ser entendida como um direito do cidadão, porque ocorre dentro dos órgãos públicos, de acordo com a estrutura definida como a mais adequada pela Administração. Quando o cidadão tem o “direito ao papel”, o expediente pode ser eletrônico, mas o cidadão deve ter acesso a uma cópia, em papel, do conteúdo desse expediente e dos elementos em meio digi- tal que possam ser úteis à defesa de seus direitos. Sobre o expediente administrativo eletrônico, cf. infra, item 4.8.

628 Cf. C

cante à isonomia629. Assim, é necessário manter os dois meios de interação com o adminis- trado quando a utilização exclusiva de meios eletrônicos puder criar discriminação ou in- justiça, afastando os usuários da prestação do serviço, ao passo que, não havendo esse ris- co, tais meios poderão constituir o único canal de relacionamento630. A vedação à discri- minação pode impor a manutenção do suporte papel em relação a pessoas ou grupos priva- dos da cultura e dos recursos digitais, mas é aceitável eliminá-lo nas atividades cujos usuá- rios tenham condições de utilizar os meios eletrônicos e estejam familiarizados com a in- formática631. Quando presentes razões de eficácia administrativa e de eficiência para a im- posição do uso dos meios telemáticos632 deve haver uma justificativa concreta para a ma- nutenção do relacionamento pela via tradicional.

Isso repercute em relação ao instrumento normativo adequado para a imposição do uso de meios informáticos. Quando ela não restringe as possibilidades de atuação dos usuários, deve ser entendida apenas como um condicionamento, que pode ser estabelecido por norma infralegal da própria Administração633. Havendo algum potencial restritivo ou discriminatório, a exclusividade do atendimento informático deve ser estabe- lecida por lei formal, por meio de uma ponderação que tenha em vista da realização de outro princípio constitucional – por exemplo, a eficiência administrativa. Todavia, caso não seja demonstrada a necessidade, a adequação e a proporcionalidade da restrição à iso- nomia, nem mesmo a lei poderá impor o uso exclusivo de meios eletrônicos, pois a tecno- logia e as possíveis vantagens por ela trazidas não se sobrepõem, sem maiores cuidados, a outros bens e valores constitucionais.

629 A exigência de apresentação de formulários preenchidos e carimbos, por exemplo, não é tida como uma questão juridicamente complexa, sendo aceitos, em geral, os requisitos formais estabelecidos pela Adminis- tração, como um mero condicionamento ao exercício de direitos, que não impede o acesso a eles. A utiliza- ção de formas complexas, como é o caso dos meios informáticos, é que traz possíveis repercussões negativas sobre o exercício de direitos, sobretudo em razão de possíveis discriminações. Sobre o uso de formulários, cf. infra, item 4.9.1.

630 Cf. P

RINS, J.E.J. (ed.) et al., E-Government and its Implications for Administrative Law, cit., p. 32. 631 Cf. B

ERNADÍ GIL, Xavier, op. cit., p. 230 e VALERO TORRIJOS, Julián, El régimen jurídico de la e- Administración, cit., p. 52.

632 Cf. G

ÓMEZ PUENTE, Marcos, op. cit., p. 124.

633 Entendendo que a imposição dos meios informáticos somente poderia ocorrer mediante lei, cf. M

ARCOU, Gérard, Le régime de l’acte administratif face à l’électronique, in CHATILLON, Georges, MARAIS, Bertrand du (org.), L’administration électronique au service des citoyens, Bruxelles, Bruylant, 2003, p. 87.

Uma imensa casuística634 está associada a um contexto cultural heterogê- neo e em constante mutação, no qual as situações concretas precisam ser cuidadosamente analisadas. Todavia, é possível indicar alguns critérios passíveis de serem utilizados para avaliação da questão635. Quanto mais geral é o grupo de destinatários de um serviço, mais difícil é justificar o emprego exclusivo das novas tecnologias, de sorte que as relações ge- rais da Administração com os cidadãos comportam menos a obrigatoriedade do uso dos meios informáticos e telemáticos que as relações com servidores públicos e empresas636. Mesmo assim, o uso das tecnologias pode ser inadequado conforme as particularidades do grupo de pessoas a ser atendido, sendo difícil fundamentar, no contexto atual, por exemplo, que a inscrição em programas de assistência social seja feita exclusivamente por meio da internet637.

A segunda questão, relativa aos casos em que há a prestação de serviços por meios informáticos e pelos meios tradicionais, diz respeito à admissibilidade de dife- renças de tratamento entre os usuários, ou seja, à eventual necessidade de observância de uma paridade de tratamento em relação aos processos que se utilizam da via eletrônica e os que se valem da via tradicional. Em princípio, não há razão para um tratamento diferencia- do entre eles638, de maneira que, não havendo uma justificativa material para a desigualda- de, resta caracterizado seu caráter discriminatório639. Certamente não seria admissível que existissem duas administrações, com velocidades distintas: uma, moderna, eficaz e rápida, destinada aos usuários dotados de melhores conhecimentos tecnológicos, e outra, lenta, trabalhosa e tradicional para os excluídos do uso das novas tecnologias640, tampouco seria

634

Cf. COTINO HUESO, Lorenzo, Derechos del ciudadano administrado e igualdad ante la implantación de la Administración electrónica, cit., p. 147.

635 Entendendo haver na realidade da sociedade brasileira uma desconfiança quanto ao uso das novas tecno- logias e certa resistência quanto ao uso da tecnologia de forma impositiva, mais nítida entre a parcela da população atingida pela exclusão digital, cf. RAMOS JÚNIOR, Hélio Santiago, Democracia e direitos funda- mentais na sociedade da informação, cit., p. 67.

636 Cf. C

OTINO HUESO, Lorenzo, Derechos del ciudadano administrado e igualdad ante la implantación de la Administración electrónica, cit., p. 146. Segundo o autor, conviria criar um procedimento para estabelecer as diferenciações, de forma a evitar as decisões impetuosas e precipitadas por parte de administrações ansiosas por eliminar custos ou diminuir os demandantes por serviços (ibidem, p. 145).

637 Seria difícil adotar a obrigatoriedade também em serviços como educação, saúde e seguridade social (cf. ibidem, p. 147).

638 Cf. B

LASCO DÍAZ, José Luis, Los derechos de los ciudadanos en su relación electrónica con la Adminis- tración, cit., p. 811.

639 Cf. V

ALERO TORRIJOS, Julián, El régimen jurídico de la e-Administración, cit., p. 56. 640 Cf. O

juridicamente aceitável adotar medidas punitivas contra aqueles que não utilizassem os meios eletrônicos641.

Todavia, devem ser entendidas como admissíveis as diferenças de trata- mento fundadas em outros valores constitucionais, que atendam à proporcionalidade, le- vando em conta fatores sociológicos e valorativos para alcançar uma interpretação ajustada ao contexto social642. A maior agilidade na atuação administrativa decorre dos instrumen- tos técnicos empregados, o que pode constituir uma circunstância objetiva para justificar um tratamento diferenciado643. Assim, algumas decorrências práticas do emprego dos mei- os informáticos devem ser entendidas como inevitáveis. O pedido enviado pelo correio convencional será apreciado depois do pedido enviado por via telemática, pois este será recebido antes pela Administração. Também será analisado de modo mais ágil o requeri- mento acompanhado de documentação e informações em meio digital, que facilite sua in- clusão nas bases de dados públicas, não exigindo uma anterior digitalização por parte da Administração644. De fato, estando informatizados os dados remetidos pelo usuário, já não é preciso realizar manualmente as tarefas necessárias para sua obtenção, armazenamento e sistematização, possibilitando ao órgão competente atuar de imediato a partir da informa- ção disponível645. Segundo o mesmo critério, é aceitável que sejam cobradas taxas e preços públicos diferenciados entre serviços prestados em papel ou por meios informáticos, desde que justificada a diferença646.

641

Cf. VALERO TORRIJOS, Julián, Administración pública, ciudadanos y nuevas tecnologías, cit., p. 2956. 642 Cf. C

OTINO HUESO, Lorenzo, Derechos del ciudadano administrado e igualdad ante la implantación de la Administración electrónica, cit., pp. 143-145.

643 Cf. V

ALERO TORRIJOS, Julián, El régimen jurídico de la e-Administración, cit., p. 186. 644

Nesse sentido, “se a demora na tramitação é determinada pela opção do cidadão pela utilização do suporte papel, ele deve suportar as consequências derivadas dessa escolha, já que poderia tê-las evitado se tivesse usado os meios de comunicação telemáticos” (ibidem, p. 56, tradução livre).

645

Cf. ibidem, p. 185. É importante notar que as atividades desempenhadas não são as mesmas: em um caso, a Administração apenas decide a respeito do pedido; no outro, prepara a informação e depois pratica a deci- são. Sendo diferentes as atividades, não seria exigível que elas fossem realizadas em tempos iguais.

646 Em sentido contrário, entendendo razoável a ideia de não existirem diferenças entre os meios tradicionais e eletrônicos no tocante aos custos a serem cobrados, cf. GÓMEZ PUENTE, Marcos, op. cit., p. 122.

No documento Governo eletrônico e direito administrativo (páginas 132-137)

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