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PRIMEIRA PARTE

1.5 A Shari’ah Al Islamia e a escravidão

A Shari’ah Al Islamia nunca ordenou a escravidão de qualquer grupo de pessoas. Na verdade, não há nenhuma declaração no Al Qu’ran e na Sunna, exigindo que os muçulmanos escravizem seus prisioneiros. Por época da revelação do Islã, “a escravidão era um sistema internacional baseado na economia mundial. Os prisioneiros de guerra eram escravizados de acordo com a tradição internacional comum, seguida por todas as nações em guerra. Portanto, era imperativo que a Shari’ah seguisse um tratamento gradual do sistema social e da prática internacional existentes”(42).

A Shari’ah Al Islamia preferiu esgotar as principais fontes de escravidão, de maneira a que, com o tempo, todo o sistema chegasse a seu fim natural, sem causar perturbações sociais que pudessem ficar fora de controle. Ao mesmo tempo forneceu importantes salvaguardas para os escravos, as quais asseguravam para eles vida decente, tratamento gentil e a preservação da dignidade.

Nesse ponto, a Shari’ah começa por colocar fim a todas as fontes de escravidão, que eram numerosas. Assim, os escravos que se juntavam às hostes muçulmanas eram comprados dos incrédulos. “Dali por diante, podiam fazer contrato com seu proprietário ficando livres para trabalhar, ganhar pelo seu trabalho e ter direito a uma porção do Zakat, além dos seus companheiros muçulmanos o ajudarem a reaver a liberdade”(43). Fez, da libertação do escravo, uma compensação para diversos atos e práticas que devem ser reparados, como o assassinato acidental, falso juramento, a antiga prática de considerar-se a esposa de alguém como mãe de alguém e até para perdoar pecado. Com todas essas compensações, visava-se ao fim da escravidão.

Compreendemos que o estado de escravatura constitui uma transgressão ou negação de todos os direitos do próximo, inerentes à sua pessoa. Tais como o direito de viver em liberdade, de constituir família onde puder, de professar livremente uma religião, de trabalhar e receber salário digno etc. A escravidão não foi considerada, na Shari’ah Al Islamia, uma instituição jurídica como em outras civilizações. Nesse aspecto, proíbe-a e combate-a e, em nome da igualdade humana, tenta edificar uma sociedade que sirva a todos os seres humanos, indistintamente.

“Todos os que ingressam nesta comunidade terão os mesmos direitos e o mesmo estatuto social, e não estarão sujeitos a nenhuma espécie de discriminação racial, nacional ou de classe”(44).

A Shari’ah Al Islamia não tem guarida para a escravidão, pois considera todos os homens iguais e livres. Mas, não esmagou de imediato a servidão, nem poderia fazê-lo, porque necessitava, como os demais sistemas, de um novo padrão de economia. Daí,

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(42) Sayyd Qutb: O método Qur’anico de educação. Brasília: CIB. 1984, p. 6. (43) Idem, p. 7.

(44) Aliman Abdul A’la Maududi: O Islam código de vida para os muçulmanos. São Paulo: CDIAL, 1989, p. 59.

trazer “consigo leis e crenças e disciplinas de vida concordantes com a circunstância prevalecente da existência econômica”(45).

No momento quando nos deparamos, diante da História, com o problema da escravidão, ficamos abalados pela exploração de um ser humano por outro, pelo tratamento subumano e o cometimento de torturas e crimes brutais. Como os depoimentos assentados nos diários de bordo dos navios negreiros: “Um condenado foi estrangulado e arrancamos- lhe o fígado, o coração e os instestinos. Seu corpo foi cortado em pedaços. Obrigamos alguns escravos a comerem esses pedaços”. “Uma negra foi suspensa a um mastro e flagelada. Depois, com tesouras, arrancamos cem filetes de carne até os ossos aparecerem”. “Hoje, para fugirmos da fiscalização, jogamos toda a carga no mar. Mais de trezentos escravos morreram afogados”(46). Fica mais difícil ainda entender como o Islã aprovou tal ilicitude!

Ora, todo sistema tem necessariamente uma relação de entendimento e afirmação de vida. Esta valorização, na lei islâmica, traz como conseqüência um juízo completamente distanciado da realidade dos demais sistemas escravocratas, a exemplo de como foi admitida na sociedade grega e defendida pelos gênios da antigüidade, Platão e Aristóteles, como imprescindível. Os proprietários de escravos, orgulhosos, ostentavam poderes sobre os mesmos.

Sob o ponto de vista romano, o escravo era uma simples mercadoria, explorado em todo sentido. Além de trabalhar nos campos, era jogado nas arenas para combates sangrentos, divertindo os imperadores. Os senhores tinham o direito de castigar, explorar e matá-los, sem sofrer quaisquer punições.

Sem dúvida, entre os romanos, a escravidão era grande e tal condição também se espelhava em outros lugares, como na Índia, onde os sudras nasceram dos pés de Alá e assumiram a posição de escravos. Na China, os eunucos, escravos castrados e sem língua, cuidavam das mulheres dos mandarins. Na Pérsia, a situação não era diferente. O escravo não tinha a posse de suas faculdades mentais. Dessa maneira, o escravo não possuía dignidade humana.

Com o advento do Islamismo, os padrões se modificaram, prescrevendo-se a respeitabilidade do escravo e sua proteção física, a exemplo do hadit, narrado por Al Bukhari, Musslem, Abu Daoud, At Tirmidhi e Nassá’i: “Aquele que matar seu escravo, matá-lo-emos; quem mutilar-lhe o nariz, cortaremos o nariz do seu mutilador; quem castrar um escravo, castrá-lo-emos”(47).

Acentuava a lei islâmica a benevolência para com o escravo nas Suratas Almujádala, versículo 3 do Al Qu’ran, quando prescreve: “En cuanto a quienes repudiar a sus mujeres por el dhar, y luego se retractan de lo dicho, deberán manumitir un esclavo antes de volver a cohabitar”(48); e Annissá, versículo 92: “No le es dado a un creyente matar a outro creyente, salvo que sea involuntariamente; mas quien por error

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(45) Mohammad Qutub: Islam a religião mal compreendida. Trad. Samir El Hayek. São Paulo: CDIAL 1990, p. 42.

(46) Georges Bourdoukan: A incrivel e fascinante história do capitão mouro . São Paulo: Casa Amarela. 4ª edição. 1999, p. 29.

(47) Mohammad Qutub (nota 45), p. 46.

(48) Ahmed Abboud (et Allii): El sagrado Coran. Valencia: Centro Islámico de Venezuela. 1ª edição. 1990, p. 655.

matase a un creyente, deberá manumitir a um esclavo creyente y entregar una indemnización a su familia, salvo que esta disponga condonársela”(49).

Da tradição profética foram descritos inúmeros ensinamentos com os quais Mohammad, (S.A.A.W.S.), mostrava a importância da fraternidade, dizendo: “Vossos escravos são vossos irmãos. Quem possuir um irmão que alimente com o mesmo alimento com que se alimenta e que vista as mesmas vestes que ele usa”. “Aquele que, possuindo uma escrava, a sustenta, a trata bem, lhe concede depois alforria, e a desposa, receberá dupla recompensa divina”. “O escravo cuja alforria se torna mais meritória é o que mais caro custou, e o mais preferido”(50).

Mas, este respeito aos sentimentos do escravo sobrepujava todos os outros sistemas, a ponto de nada ter em comum com outros povos, tal como existiu entre ingleses e americanos.

No sistema islâmico, a escravidão não foi imediatamente extinta. Portanto, não houve o abandono do trabalho nos campos, nas caravanas. “uma ab-rogação imediata da escravidão corria o risco de causar um choque desnecessário e levar a um declínio da moralidade social. O método islamita lidou de maneira a prevenir tudo isso”(51). Mas, pouco a pouco, a benevolência, o respeito humano foram dando lugar ao princípio de igualdade de direitos, até a sua completa extinção, a ponto de o escritor francês Gustave Le Bon fazer averiguações sobre a escravidão ali permitida, comparando-a à da Europa e reconhecer, ao final, que a posição de um escravo no Oriente assemelha-se à do seu amo. Praticamente, não existia distinção entre eles: “Todos os viajantes que tiveram oportunidade de estudar seriamente a escravatura no Oriente, foram obrigados a reconhecer quão pouco eram fundadas as ruidosas reclamações dos europeus contra essa instituição, e a melhor prova que se pode alegar em favor dela é que no Egito os escravos desejosos de liberdade podem tê-la, declarando-o simplesmente diante de um juiz – o que aliás quase nunca fazem”(52).

Este relacionamento era tão evidente que, entre o escravo e o senhor, operava-se um grau de parentesco ou um vínculo mais forte, pois nada impedia o casamento dos senhores com suas escravas. A escravatura, diz Gustave Le Bon: “É tão desprezada nos países muçulmanos, que os sultões de Constantinopla, chefes supremos do Islã, nascem todos de mulheres escravas, e não só não se envergonham disso como muito pelo contrário”(53).

A Shari’ah realmente assegurou a liberdade dos homens que passaram a aspirar a ela, formando, em alguns casos, grupos rebeldes, como aflorou no Brasil a preponderância islâmica, trazida pelos negros escravos. Suas revoltas eram influências das guerras santas, impostas pelas tribos em terras africanas. A história do escravo muçulmano é um dos mais importantes registros da história social brasileira, não divulgada como merece, nem estudada com a profundidade que o assunto requer.

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(49) Idem, p. 240.

(50) Hadits (nota 28), p. 53. (51) Sayyd Qutb (nota 42), p. 8.

(52) Gustave Le Bon: A civilização árabe. Trad. Augusto Sousa. Paraná: Paraná Cultural. Volume I, 1950, p. 460.

Islamizados e arabizados, os negros sudaneses aportaram na Bahia. Conhecidos por Malés, foram responsáveis pelas revoltas de escravos de 1807, 1809, 1813, 1816, 1827, 1828, 1830 e 1835. Daí, provém a necessidade de mostrar-se que, no Islã, ou em qualquer lugar, a escravidão não se fazia qualidade inata ao homem. A liberdade, sim; tendo caráter permanente, não podia ser suprimida por imposição de outra pessoa.

A liberdade sempre se constituiu numa conquista que o homem tentou desenvolver, considerando-a também uma regra moral a seguir. Apesar de o Cristianismo ter proclamado a igualdade de todos os homens, a Igreja permitia a escravidão em todos os seus matizes em suas próprias hostes. No Islã, quem a reconhecia violava todos os deveres para com a Shari’ah. Assim, não podia ser reconhecido como muçulmano. Isto pode ser ainda observado atualmente.

A comunidade islâmica mundial reconhece que há pessoas que discordam, acentuando que não há fraternidade na Shari’ah. O que é um desconhecimento, pois, segundo At-Tabari: “Não há superioridade do árabe sobre o não árabe, nem do negro sobre o vermelho, nem do vermelho sobre o negro, a não ser em piedade”(54).

Os que querem denegrir a imagem do Islamismo, fazendo julgamentos de assuntos que verdadeiramente desconhecem, deviam tomar conhecimento de uma observação de Gustave Le Bon, quando afirmou: “Os europeus que intervêm no Oriente com o intuito de impedir pela força o comércio de escravos, são indubitavelmente filantropos virtuosos animados de puríssimas intenções. Contudo, os orientais não se mostram convencidos de semelhante pureza, e observam que esses mesmos virtuosíssimos filantropos obrigam os chineses, a tiros de canhão, a receberem importações de ópio que causam mais mortes num ano que o tráfico de negros num período dez vezes mais longo”(55). Sobre o problema das drogas com que hoje se deparam o Iêmen, o Afeganistão e o Marrocos em menor escala, falaremos no sétimo capítulo.

Assim, a lei islâmica, em seu primeiro estágio, garantiu ao escravo a igualdade com o senhorio. Mas esta garantia não era suficiente. Foi proibido qualquer tipo de tortura, não podendo o amo dar-lhe bofetadas e a repreensão seria proporcional a uma formulada ao próprio filho.

Além do status similar ao do patrão, foi-lhe dada a emancipação espiritual e logo em seguida permitiu que participasse da vida social. Para Mohammad Qutub, a Shari’ah promoveu a liberdade geral dos escravos por dois importantes meios: “ 1. Emancipação voluntária pelo amor (I’tak). 2. A escrita de sua libertação ( Mukátaba). I’tak, era um ato voluntário da parte do amo para dar liberdade a um escravo. A prática era muito en- corajada pelo Islã e o próprio Profeta proporcionou o melhor exemplo para seus seguidores. Ele libertou todos os escravos que possuía. O Al Qu’ran estipulou que a expiação de alguns pecados consistia em libertar escravos, como também encorajou-o para a reparação de qualquer outro pecado que alguém cometa. O mukátaba era a escritura de liberdade do escravo. O amo não podia, em tal caso, recusar ou demorar a dar a liberdade a um escravo disposto a adquirir sua liberdade. Ele devia libertá-lo ao receber a alforria. Senão o escravo poderia recorrer à Corte para decretar a sua libertação”(56).

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(54) At-Tabari: Tradição narrada por At-Tabari. São Paulo: CDIAL, 1990, p. 46. (55) Gustave Le Bon (nota 52), p. 463.

No momento em que o escravo oferecia certa quantia para adquirir sua liberdade, o senhorio não podia recusá-la, podendo continuar a trabalhar com a garantia de um pagamento pré-fixado, como empregado, até arrecadar o dinheiro para sua libertação.

“Isto é o que aconteceu na Europa depois do século XIV, ou seja, sete séculos depois que o Islã o tinha estipulado em seus domínios. A grande distinção do Islã que é difícil de encontrar em outro lugar, era a ajuda financeira que o governo islâmico adiantava para os escravos poderem pedir o resgate de sua liberdade com a utilização do erário público, sem esperar qualquer retribuição material”(57).

A Shari’ah Al Islamia incentivou a redenção dos cativos com a utilização de donativos, permitindo o Zakat para resgatar a liberdade dos escravos que não possuíam condições de fazê-lo por conta própria. Este mesmo incentivo encontram os grupos atuais de jovens muçulmanos, que lutam pela independência de suas terras ou de seus governos que estão atrelados aos grupos internacionais exploradores. Assim, tentamos justificar a extensão da lei islâmica, cujo domínio da “idéia de predestinação, tão fortemente acentuada, não elimina a idéia de liberdade. O homem está sujeito à predestinação porque não é Deus, mas é livre porque é “feito à imagem de Deus”. “Somente Deus é liberdade absoluta”- não é outra coisa que não liberdade”(58).