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PRIMEIRA PARTE

7.3 O direito de herança

Entre os inúmeros fundamentos jurídicos islâmicos, um dos pontos mais discutidos é a herança. São limites estabelecidos por Alá, mas no entendimento dos não muçulmanos, a matéria islâmica permite um tratamento preferencial ao homem, em detrimento da mulher.

Eles desconhecem que a distribuição da herança, no Islã, faz parte do seu sistema social, de maneira que seja estabelecido a cada pessoa o direito à parte que lhe é merecida. Para tanto, deve o muçulmano obedecer aos limites prescritos na legislação.

Na linguagem árabe, a sucessão tem a mesma significação técnica das demais legislações. Em sentido mais claro: “é a transmissão de bens e de direitos a uma, ou mais pessoas vivas, integrantes de um patrimônio deixado por uma pessoa falecida”(188).

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Exprime um conjunto de regras que define a transmissão do patrimônio de uma pessoa, em decorrência da morte, para outra viva. A sucessão islâmica subordina-se a disposições próprias, cujo caráter não encontra similar. A legitimidade é mantida na Surata 4, versículos 11, 12 e 176 do Al Qu’ran. O dispositivo acolhido compreende o aperfeiçoamento das várias formas de “sucessões” pré-islâmicas que apresentavam injustas desigualdades, compreendendo uma situação que mantinha o direito hereditário apenas à pessoa que se julgasse na representação de suceder.

A mulher não tinha o direito à herança: “era tratada como uma menor, o que quer dizer que não lhe era reconhecida a independência nem o estatuto de pessoa com direitos. Ao abrigo das leis do mundo antigo se, ocasionalmente, era concedida herança às filhas, os bens herdados nunca passavam para os filhos das filhas, ao passo que um filho herdava e os seus filhos cresciam como herdeiros, também dos bens do pai”(189). De fato, consta que, em razão da descendência, o filho mais velho não repartia entre os irmãos os bens deixados pelo pai, ocupando o lugar deste em tudo que competia. O Islã colocou-se contra esta impropriedade e estabeleceu regras e destruiu as dessemelhanças, pondo direitos iguais de parentesco na linha sucessória. Em linhas gerais, compreende a herança: “o patrimônio, o acervo e seus ônus, deixados pelo de cujus”(190).

Face ao fundamento jurídico da matéria, os doutrinadores muçulmanos fixaram regras que são aplicadas, dada a importância das diversas classificações de herança que norteiam os dispositivos legais. Inicialmente, deve haver a preocupação de se pagar, com os bens deixados, as despesas do funeral e, no respeito à pessoa do falecido, empregam-se todas as práticas religiosas. Como se vê, a ocorrência de óbito foi zelada pela lei islâmica e os parentes assumem o compromisso de se encarregar dos atos, regularmente, na responsabilidade de conferir que tudo esteja de acordo com a Shari’ah. Desta forma, não basta acompanhar o féretro (só os homens), mas envolvê-lo nos preceitos indispensáveis à lei. Impreterivelmente, rico ou pobre, o muçulmano deve ser enterrado com simplicidade. Se o muçulmano é pobre, o governo encarrega-se do sepultamento como a lei prescreve.

Cumpre notar que, de imediato, a família deve saldar os compromissos com o dinheiro deixado pelo falecido, certificando a autenticidade de seus atos. Isto é de relevância, em virtude de que o não pagamento da dívida, como preconiza a moral islâmica, desfigura a imagem que, em vida, foi transmitida pelo morto que, espiritualmente, fica limpo para o dia do juízo final. Radicalmente, o credor se sobrepõe ao herdeiro e, só depois, com a efetuação dos pagamentos, o que sobrar será designado aos herdeiros. Logicamente, que não haverá abertura de sucessão, se a herança foi totalmente consumida pelos credores. Na sucessão islâmica, há pessoas que, mesmo sendo parentes próximas, não são chamadas para habilitar-se como herdeiras.

Este conceito decorre de a situação jurídica propiciar medidas conservatórias para que a herança não esteja à disposição dos não muçulmanos. Esta assimilação vem da ordem objetiva que expressa o parente pela religião. Exclui, também, da herança o beneficiário homicida do titular do espólio. A preocupação social islâmica não ampara satisfazer, na condição de herdeiro, a pessoa que esteja sob a guarda e proteção do falecido, em detrimento do legítimo herdeiro “As’hab Al Froud”, que é aquele que é obrigado ao direito de suceder.

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(189) Murtadã Mutahhari (nota 187), p. 229

(190) Antônio Macedo Campos: Inventário e partilhas. São Paulo: Sugestões Literárias S/A. 2ª edição.

Ocorrido o reconhecimento dos legítimos herdeiros, poderá o Assabat requerer o que sobrou. Compete este procedimento ao tio (irmão de pai morto), filho do tio e ao filho do morto. Adverte o texto legal que devem ser pagas em dinheiro as doações que, em vida, foram prometidas pelo “de cujus”, no valor de um terço do saldo, após o pagamento das dívidas. Como a doação não é obrigatória, para que seja concretizada, é preciso ser registrada em vida pelo doador, destituindo-se perante a lei do bem doado, seja para propósitos religiosos ou não. O saldo líqüido será dividido entre os herdeiros. Mas, se o falecido não deixou doação, o patrimônio pertencerá aos herdeiros.

“A lei islâmica da sucessão é um sistema magnífico de parar a concentração de riqueza. Proporciona leis detalhadíssimas quanto aos direitos dos dependentes sobre a propriedade do falecido”(191). A regra geral demonstra que a sucessão legítima islâmica tem um caráter restritivo, atribuindo precedência do filho sobre o neto (filho do filho), na herança do pai. Após a morte do pai, o herdeiro se capacitará como tal. Assim, o mais próximo do falecido receberá a herança. Todos os bens são passíveis de transmissão, podendo ser a sucessão legítima ou testamentária. Na sucessão testamentária, discute-se a liberdade do testador não ser absoluta. Ele só poderá dispor de pouco mais de um terço da herança, enquanto a sucessão legítima vai estar relacionada aos graus de parentesco, que é um dos requisitos indispensáveis para que se possa investir na função de herdeiro.

É de relevância jurídica saber se a morte do herdeiro foi antes ou depois da do “de cujus”. Esta apreciação determina a legalidade da sucessão na abertura do inventário. Pela lei substantiva alcorânica, o herdeiro, morrendo após o titular, perderá o quinhão cabível na herança. Observe-se que, para efeito da ordem sucessória, é necessário apresentar o quadro sucessório na seguinte ordem: descendentes, cônjuge sobrevivente, ascendente e colateral. Na relação do parentesco, os descendentes procedem diretamente da linha reta do “de cujus”, ou seja, seus filhos, que trazem os vínculos da progenitura, são os primeiros a ser contemplados, porque apresentam laços íntimos de afetividade e estão unidos pela ordem natural biológica. Assim, o filho ou a filha são os descendentes em primeiro grau. Não admite a Shari’ah os descendentes civis que resultam da ficção legal da lei por adoção, legitimação e os ilegítimos.

Portanto, a linha reta compreende a série de pessoas que descendem da mesma linha e grau ou comum ao mesmo tronco. Nesse entendimento, apreciamos que o quadro da sucessão islâmica é prático. Admitamos que o falecido deixe dois filhos (Ahmad e Fátima). A meação entre os filhos (vivos) será da seguinte forma: dois terços para Ahmad, um terço para Fátima, um oitavo para a esposa, um sexto para o pai e um sexto para a mãe do falecido.

Diversos autores criticam a distinção, no tocante ao que herdou a filha, qualificando de injusto o processamento da sucessão pelo Islamismo, relegando à mulher um plano inferior, dada a desvantagem da partilha.

É preciso explicar que as formalidades prescritas nos códigos civis gerais não facilitam quaisquer vantagens às mulheres. Mas o Islã oferece grande vantagem. Observando-se o percentual que medeia as duas sucessões, o limite imposto à filha torna possível contemplar só para si a herança, podendo usá-la como lhe convier. No entanto, o

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(191) Redatores: O sistema econômico do Islam. Alvorada. São Paulo: Makka. Ano IV, número 37, janei- ro, 2000, pp. 25-26.

homem, por ser cabeça, recebe a percentagem maior e, rigorosamente, arcará com as despesas gerais da família, inclusive, dispondo sempre sua herança para cobrir os infortúnios dos parentes. A inseparabilidade da norma com a religião permite que o muçulmano, participe ativamente dos problemas familiares em qualquer grau de parentesco.

Examinamos que não desaparece o direito sucessório da mulher. Sendo ela esposa e não havendo descendente nem ascendente, a norma islâmica requer que se habilite como legítima herdeira, desde que a sociedade conjugal não esteja dissolvida à época da morte do cônjuge.

Permite, ainda, consolidar um quadro afetivo. Quando a mulher morre, a exemplo do que sucede aos pais paternos, os maternos são chamados à sucessão legítima, recebendo a mesma proporção anteriormente citada.

Na verdade, a ordem de vocação hereditária feminina nem sempre foi reconhecida nas outras legislações. Assim, a mulher, no “Direito Romano, herdava a posse dos bens do de cujus, desde que não houvesse outros parentes que pudessem herdar”(192).

No Direito Civil Brasileiro, a matéria foi inserida “em virtude da conservação do

artigo 1º do Decreto número 1839 de 31 de dezembro de mil novecentos e sete, que colocou

o cônjuge sobrevivo em terceiro lugar, depois dos descendentes e ascendentes”(193).

O direito sucessório islâmico remonta aos tempos do Profeta, determinando que se respeitasse o destino dos bens do morto, assistindo-lhe a liberdade de não contemplar com herança a quem cometesse injustiça dentro do Estado Islâmico.

A nosso ver, o direito sucessório islâmico deu sentido humano às relações familiares, respeitando-se a identidade dos componentes da família, comprometendo todos a uma política religiosa, cujo poder político real não se perdeu no tempo do califado, mas permitiu se estabelecer da forma como até hoje se apresenta.

Mesmo quando as ordenações islâmicas foram desconsideradas pelos colonizadores europeus, procurando o mais possível embargar as transmissões da cultura muçulmana, prevaleceu a educação dentro das prescrições da Shari’ah.