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PRIMEIRA PARTE

2.7 As Escolas de Direito Islâmico

Para se conceber o equilíbrio dos direitos coexistentes, os julgamentos já eram realizados no tempo do Profeta. Além dele, destacaram-se como juízes Ali Ibn Abi Taleb, Omar Ibn Al Khattab, A’isha, esposa do Profeta, além de Ibn Abbas e Ibn Omar. “As decisões eram tomadas de acordo com o seu julgamento, e as leis eram promulgadas, com a única condição de não contrariarem, nem o Al Qu’ran, nem a Sunna. As decisões desses primeiros juristas foram seguidas pelos juristas posteriores”(121). Então, a visão universalista da doutrina jurídica européia, não pode ser acompanhada pela Shari’ah Al Islamia, cujas diretrizes legais e de padrões hermenêuticos por ela estabelecidos, apresentam características próprias, indispensável a manutenção e legitimidade do seu direito.

Por divergência de interpretação alcorânica e de método mantido entre os principais mestres muçulmanos, apareceram as quatro principais escolas de direito, determinando a codificação da lei islâmica, levando em consideração os deveres de justiça e os direitos essenciais do homem.

Portanto, a formação intelectual jurídica, nas várias formas de direito, aparece como força pública no Estado Omawiyta, indicando perante a lei o dano, o desrespeito e o crime.

O primeiro desses doutos foi Abu Hanifa Annuman Ibn Sabet, nascido em Basr, no Iraque. Seu centro de produção intelectual foi Kufa, e a base substancial do seu raciocínio foi o Al Qu’ran, constituindo a analogia Al Qiyaas, o termo que desenvolvia as principais teorias com que identificava a matéria.

O Al Qiyaas corresponde à aplicação da relação jurídica pela semelhança e identi- ______

(120) Comissão Autoral da Fundação Al-Balágh: Protegei-vos e às vossas famílias. Trad. Aidah Rumi. Cu- ritiba: Editoração Fundação Al Balágh. 1997, p. 7.

(121) Redatores: Jurisprudência e teologia islâmicas. Alvorada. São Paulo: Makka. Ano I, número 16, setem- bro, 1991, pp.18-19.

dade de casos ou fatos, se a lei não lhe prescrever regra própria (Al Qu’ran, Sunna e Al Ijma’a). O Al Qiyaas é usado para buscar resposta definitiva através de uma comparação análoga do fato. É a interpretação que “foge à lógica restritiva e gramatical do dispositivo legal, e é promovida em face de outros dispositivos que regulam casos idênticos da controvércia”(122).

Compreende o meio usado pelo operador jurídico para tratar as lacunas da lei verificadas em certos fatos subordinados ao domínio do Direito Islâmico. Na relação interpretativa, admite-se o Al Qiyaas, também, na aplicação da lei penal islâmica. Portanto, difere da lei brasileira que não admite analogia para os casos penais.

Decorre do Al Qiyaas a prova Dali Aql (do raciocínio). Isto porque as regras do Al Qu’ran possuem conteúdo geral. Desse modo, é o primeiro caminho que os sheicks usam para verificar as questões e litígios dos novos problemas dentro da sociedade islâmica, podendo o juiz fundamentar suas decisões.

De regra, os primeiros jurisprudentes islâmicos já faziam a interpretação através do Al Aql, mas não tinham uma formação jurídica tão expressa quanto Abu Hanifa. Eles escreveram de maneira plena como Ibn Mas’ud (contemporâneo do Profeta), Hassan Al Basri, professor, filósofo, mestre religioso da mesquita de Basr, no Iraque e Ibrahim Naja’i, entre muitos. Foram homens livres e inteligentes em suas concepções jurídicas e admitiam a razão como fonte do Direito Islâmico.

Outro método interpretativo usado pela escola hanafita é o Istehsan. Ele vem sanear os problemas causados pelo uso demasiado do Al Qiyaas, significando reformar a interpretação ou sentença por outra, colhendo o que é melhor para o povo e a justiça. Este método é usado só para a segunda instância.

Pode ser dividido em: Istehsan Al Sarrir – quando traz regras do Al Qu’ran, da Sunna e do Al Ijma’a. Istehsan Al Qiyaas – excepcionalmente, quando um problema se apresenta revestido de Istehsan e Al Qiyaas, sendo aconselhável deixar o Al Qiyaas e usar o Istehsan. Istehsan Adarruha – expressamente prevê o interesse público sem, contudo, sair da importância da responsabilidade com a relação jurídica. Por exemplo, se uma lavadeira perder todas as roupas, o Istehsan ordena que pague o prejuízo ao cliente.

Meticuloso, Abu Hanifa aceitava os hadits, quando tinha plena certeza de sua autenticidade, condenando todos os que lhe parecessem incompletos, desordenados ou perceptivelmente alterados.

Desenvolveu com propriedade argumentos que, na realidade, estavam longe de ser concluídos pelos grandes estudiosos dos hadits, que nem tinham iniciado o trabalho de coletá-los e, pioneiramente, admitia a substancial verdade dos atos praticados pelo Profeta, como um dos princípios fundadores do Direito Islâmico. Incansável, tratou de legitimar a importância do raciocínio analógico na legislação, definindo o direito de poder a sociedade reconhecer maior liberdade interpretativa e, em conseqüência, foi adotada pelos juristas muçulmanos como a quarta fonte da jurisprudência islâmica.

Forneceu Abu Hanifa inúmeras interpretações que puderam assentar o princípio da livre investigação das provas, trazendo como conseqüências fundamentos legais a

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que, ainda hoje, recorrem os tribunais islâmicos. A Escola Hanafita se encontra afirmada no Iraque, Irã, Egito, Síria, norte de África e Paquistão.

Malek Ibn Anaas é considerado o segundo maior douto da doutrina islâmica. Criador da Escola Malekita, nasceu em Medina, onde viveu toda a sua vida, até morrer no ano 713 d.C., aos 82 anos de idade. Dedicou-se inteiramente aos estudos dos hadits, colecionando um número incalculável que recolheu nas pesquisas, relacionando-os com a prática.

O sistema de Malek é baseado nas tradições do povo de Medina, buscando na Sunna (ou hadits) a solução de um problema que não estava previsto no Al Qu’ran. O caminho percorrido por Malek garantiu um método autêntico. Para tanto, empreendeu longos estudos de base para ampliações e refundições, trazendo a segurança absoluta da compilação. Daí, seu livro Muatáa ser um dos preferidos de muitos filósofos e estudiosos islâmicos, como Ibn Rush. A Escola Malekita se desenvolveu principalmente no norte de África, entrou em Andaluz (Espanha-Portugal) e sul de França. Muitos dos seus preceitos foram utilizados pela lei napoleônica. Para o professor egípcio Said Abdullah Hussein: “A Escola Malekita entrou na lei européia. Ninguém pode negar, só inimigo”(123).

Como exemplos, cita a bilateralidade contratual. A livre vontade dos contratantes, o ijab (vendedor) que transfere ao kabule, (comprador), o domínio do bem, recebendo pela transação o valor antecipadamente acordado. Esta execução contratual é afirmada através de requisitos sem os quais resulta nulo, projetando, ao final do contrato, a licitude com as assinaturas dos acordantes. Quem comprou passa a ser proprietário. A figura contratual (Direito das Obrigações) da Escola Malekita é distinta da doutrina romana, cuja classificação compõe a doutrina clássica ocidental.

Outro método malekita é a proibição de alguém praticar certos direitos em favor próprio ou de outro, em face da venda ou compra, sem condições legais de saúde. O prejudicado (herdeiro), pode alegar impedimento em juízo, abrindo processo de interdição. A interdição é instrumento perfeito, usado por Malek, que encontrou aproveitamento na forma do texto jurídico francês e nos textos legais de inúmeras legislações.

Malek, também, utilizou o consenso (Al Ijma’a), como qualificação de procedimento, aceitando a eqüidade e usou o Istehsan, com a designação de Al Maslahato Al Morsalato. Este método apareceu no tempo do Estado Abass. Os operadores jurídicos buscam nele a definição capaz de proporcionar a solução desejada, se a investigação não tem regra própria de procedimento, por não encontrar prova no Al Qu’ran nem na Sunna, sendo preciso: a) não seja contra o Al Qu’ran, Sunna e Al Ijma’a. b) Usar Al Aql (razão), utilizando-se o que é melhor para a vida do povo, pois é importante a proteção da justiça para a sociedade.

Na Justiça Islâmica, o Al Maslahato Al Morsalato é observado em três situações: 1ª.

Quando o Al Maslahato Al Morsalato é geral, ele protege a alma, a religião, a mente, o financeiro, a descendência etc., buscando o juiz o fundamento da sua decisão por ter prova

para ser usado. 2ª. Quando Al Maslahato Al Morsalato não é usado por ter prova de sua

proibição. Um exemplo é a proibição da vida monástica, a cobrança de juros imposta pelo

Al Qu’ran. 3ª. Quando Al Maslahato Al Morsalato prova, como o istehsan, ser a definição

do juiz uma defesa contra o ilícito. ______

Quando o operador jurídico encontrar dois ou mais Al Maslahato Al Morsalato num processo, deve olhar o interesse da sociedade geral e o particular. Mas deve usar sempre o que apreende à comprovação geral. Por exemplo, num ato em que se tem prova de que o acusado assaltou, o juiz pode determinar sua prisão para manter a paz na comunidade. Dessa forma, protegeu a população geral.

Entretanto, o imam Al Ghazalli discorda dos segmentos doutrinários de Malek. Afirma que se deve proteger a vida da pessoa acusada, não prendê-la. Pode não ser a verdadeira culpada. No entendimento de Malek, a decisão do juiz deve sempre proporcionar a proteção da população, que não pode ser prejudicada pela falta de um cidadão

Diante dessas duas primeiras escolas de direito apreciamos que a “origem divina da legislação islâmica não a torna despropositadamente inflexível. O que é mais impor-tante ainda é que esta qualidade de origem divina da lei inspira nos fiéis um respeito maior pela lei, tornando possível ser ela observada mais conscientemente e escrupulosamente”(124).

Quando o terceiro douto da jurisprudência islâmica apareceu, imame Mohammad Ibn Idris Ach-Chafi’i, os abassitas já tinham o poder do Estado Islâmico. Ach-Chafi’i nasceu na Palestina. Passou a juventude em Meca e trabalhou no Egito, onde faleceu. Sua escola tem base principal na Sunna, daí ter empreendido inúmeras viagens à procura de informações sobre os hadits, diferenciando do sistema de Malek, que coletou os hadits apenas entre os medinenses contemporâneos do Profeta.

A Sunna representa a primeira parte interpretativa do texto alcorânico, de onde os jurisconsultos buscam as diretrizes para a aplicação e execução das sentenças. Ach-Chafi’i descobriu uma visão de conjunto sobre o aspecto verdadeiro ou não de um hadit, constituindo uma questão de metodologia interessante.

Identificou, através do entendimento e em conformidade com os bens religiosos, a conciliação do texto entre a fé e a razão, investigando, em cada local, as recordações que foram conservadas pelos companheiros do Profeta.

Parece-nos que “antes de Ach-Chafi’i não se havia pensado numa ciência da lei, abstrata na existência e distinta das leis e dos códigos. A obra desse jurista, Al Omo (A Mãe), designa essa ciência pelo expressivo título “Raízes da Lei”, advindo daí os diversos ramos da regulamentação da conduta humana.

Essa ciência passou a ser reconhecida pelos muçulmanos como Usul-al Fiquih, e trata, simultaneamente, da filosofia da lei, da fonte das regras e dos princípios da legislação, interpretação e aplicação dos textos legais. Essas leis são regulamentos chamados de “ramos (Al Furouó) dessa árvore”(125).

Assim, o domínio dos conceitos fundamentais da Ciência do Direito foi uma contribuição dos muçulmanos à humanidade, não se deixando, é claro, de apontar o valioso conceito das ações humanas prolatado pelo Profeta, quando afirmou que os atos devem ser julgados de acordo com as intenções.

Encontramos em Ach-Chafi’i a Filosofia da lei, que vai trazer o duplo aspecto do lícito e do ilícito. Isto leva ao conhecimento das regras jurídicas e a distinção entre o que é certo e o que é errado. Definiu, portanto, a necessidade da observância máxima

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(124) Mohammad Hamidullah (nota 39), p. 180. (125) Idem, p. 168.

das leis na realização dos direitos e deveres dos cidadães, quando todos estão perante a lei, nas mesmas condições de igualdade.

Entre os muçulmanos atuais, a Escola Ach-Achafi’i se estabeleceu no Iraque (segunda maior depois da hanafita), no Irã (maioria depois da Ash’shiat), no Egito, Síria, Iêmen, Arábia Saudita e Afeganistão”(126).

O último dos famosos doutos foi Ahmad Ibn Hanbal. Nasceu em Bagdá. Fez extensivo estudo dos hadits, sendo sua obra conhecida por Musnad Ahmad Ibn Hanbal, contendo milhares de hadits, todos coletados por ele. Colecionou os hadits, de acordo com o nome do companheiro do Profeta, organizando-os pelo assunto. Ibn Hanbal contemplou, na linguagem expressa do Al Qu’ran, a primeira a ser invocada, o seu indispensável aspecto jurídico que conferiu indiscutível valor para a evolução islâmica, através das reflexões, condutas e sanções. Enquanto o sistema de Abu Hanifa aplica livremente o raciocínio, procurando deduzir, em primeiro lugar, todas as questões do Al Qu’ran, em segundo a Sunna e, em terceiro, as palavras dos companheiros do Profeta, o método de Ibn Hanbal reserva, primeiramente, o uso do Al Qu’ran e da Sunna, em segundo a Fatwa (sentença), dos companheiros do Profeta (ele não fala em Al Ijma’a, mas em Fatwa). Em terceiro, o pensamento do companheiro cuja Fatwa ficou mais perto do Al Qu’ran e da Sunna. Sem utilizar o raciocínio, apenas descreveu as inúmeras diferenças encontradas nos estudos, sem especificar qual a melhor. Assim, verificamos que, na Escola Hanbalita, o Al Qu’ran adquiriu um critério da verdade e da certeza.

Notemos, primeiramente, que Ibn Hanbal busca a universalidade do Al Qu’ran, que o distingue de todas as espécies de verdades, constituindo-se na última razão da certeza. Essa fidelidade coloca o Al Qu’ran inconfundível e atrativo à necessidade que sentimos de crer, em razão de a sua mensagem adaptada à realidade, aplicar-se a qualquer época. Para Hanbal, essa conformidade é a própria essência da verdade, é a faculdade de conhecer, que a nossa natureza pede.

Esclarece que os hadits devem ser estudados por serem úteis em todas as aplicações, indicando, na realidade, o verdadeiro aspecto universal do Al Qu’ran. Portanto, reconheceu a verdade da natureza divina do Al Qu’ran e da Sunna, atuando na inteligência humana. Ante todas essas definições, concebemos que o aspecto moral desenvolvido por ele proporciona uma consciência mais nítida desse sentimento que é inato a cada um dos seres humanos. Por outro lado, evidencia o livre arbítrio de fazer ou não, cujas conseqüências da inclinação ao bem e ao mal serão experimentadas, não se devendo esquecer o caráter moral do Al Qu’ran. Na observância da lei islâmica, a inclinação do homem estará sempre voltada ao bem.

É, de fato, fundamental revelar que os resultados das experiências desses homens estabeleceram a diferença entre o conhecimento adquirido pelo Al Qu’ran e o processo de transmissão dos hadits. Eles não se detiveram às causas secundárias, foram além. Mergulharam nas especulações e nas investigações, estudando as matérias, procurando uma por uma as influências dessas causas. As contradições surgiram junto aos ulemas, com o aparecimento da jurisprudência e da gramática. Aqui devemos chamar a atenção ao desafio que as Escolas de Direito marcaram e produzem, hoje, no espírito dos muçulmanos, ou seja, um caminho adequado às suas aspirações. Elas oferecem um

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material extraordinário a quem quer estudar a jurisprudência islâmica, sendo cada qual livre de praticar suas conclusões, pois todas reafirmam a pregação profética em vários matizes.

Desses dados, podemos concluir que os teólogos muçulmanos conduziram os seus pensamentos para o desenvolvimento da Ciência Jurídica Islâmica, procurando, na prática religiosa, o raciocínio revolucionário que, no decorrer dos movimentos políticos e sociais dos estados árabes, acarretaram a responsabilidade de buscar liberdade, através das interpretações dos textos divinos. Podemos considerar que a moderna sociedade muçulmana foi estabelecida dentro das diretrizes pelos povos. Infelizmente, nem todos os estados estão funcionando com os meios administrativos de acordo com os princípios nelas pautados. Por isso, é comum vermos um país muçulmano diferente do outro, apresentando maior ou menor liberdade, o que ocasionou as diversas formações políticas e sociais.

Capítulo Terceiro

A POLÍTICA ISLÂMICA

Sumário: 3.1. O aparecimento da política islâmica. 3.2. A Shari’ah Al Islamia e os partidos políticos. 3.3. As pretensões dos muçulmanos. 3.4. As diferenças partidárias.