• Nenhum resultado encontrado

PRIMEIRA PARTE

6.5 O trabalho humano e a remuneração

Em um dos milhares hadits, o Profeta Mohammad (S.A.A.W.S.) ensinou: “Todo aquele que deseja o mundo e suas riquezas, de uma maneira lícita, para refrear-se de pedir e manter uma vida decente para sua família, ser amável com seus vizinhos, comparecerá perante Alá com o rosto resplandecente, como a lua cheia na décima quarta noite do mês lunar”(199). No Islã, o valor do trabalho é grande e não pode ser menor do que se necessita para a manutenção da vida do homem.

É o trabalho a aplicação indispensável da força física e intelectual do homem, que o predispõe a viver na virtude. O homem tem a obrigação de se desenvolver por meio do trabalho, promovendo a sua vida e da família. Ele é de grande utilidade por tornar livres as faculdades do espírito e fortalecer a moral. A prova disso é o seu atrofiamento intelectual ao perder a atividade que exerce. Quando as forças estrangeiras entraram e dominaram grande parte do Oriente Médio (com exceção da Arábia Saudita, por ser desértica, imprestável), confundiram tudo. Destruíram os estados muçulmanos, que faziam parte do território Osmanita, forçando a dominação ocidental. A Turquia, o Irã e o Afeganistão, que não sofreram o domínio ocidental, “foram reduzidos a uma condição praticamente pior que a escravidão”(200). Submeteram os muçulmanos a péssimas condições de vida e propagaram aos jovens que “todo conhecimento, cultura e moralidade pertenciam ao Ocidente, e que o conceito de humanidade ideal era o dos ocidentais”(201). É vergonhoso apreciar, mas este conceito não foi praticado com os muçulmanos.

A forma de administrar foi outra. Fecharam as portas e tiraram o direito ao trabalho de homens e mulheres, por não concordarem com a estrutura implantada, que não representava verdadeiramente os costumes e os anseios do povo árabe, e por quem o

______

(199) Hadits (nota 28), p. 106.

(200) Aliman Abul A’la Maududi (nota 194), p. 43. (201) Idem, p.45.

elemento estrangeiro não demonstrava afinidade religiosa, política nem intelectual. “A maioria deles trata as tradições da nação muçulmana com desprezo e pensa que os muçulmanos são incapazes de progredir na vida ou de galgar posições de relevo na comunidade das nações, se adotarem o modo de viver islâmico e aderirem estritamente aos princípios e valores do Islã. Para estes, o único caminho da redenção e do progresso está na adoção global das idéias, teorias e valores do ocidente”(202).

Segundo Sheick Mabrouk El Sawy Said, (Representante da Liga Mundial Islâmica- Rabita e Diretor Espiritual do Centro Islâmico do Recife): “Forneceram empregos a quem promovesse a nova sociedade, facilitando aos favorecidos altos salários, sob o pretexto de que construiriam uma boa organização. Intelectuais, como Cassem Amin, Dr. Taha Hussein e Luis Auad foram influenciados e propagavam a política européia através de livros, colunas jornalísticas e programas de rádio, sem qualquer fidelidade cívica, a não ser o interesse do próprio bem-estar. As evidências mostraram que esse posicionamento político foi contrário à dignidade humana, porque acomodaram pessoas árabes e estrangeiras sem qualificações profissionais. As aptidões e os meios de que dispunham não eram suficientes para os cargos que ocuparam. Um exemplo dessa falta de harmonia pode ser aquilatada na proporção salarial de uma pessoa, que percebia mais com cargo inferior, unicamente por falar inglês. Pouco a pouco, a comunidade árabe, que conhecera o progresso e a cultura, através do lado religioso, passa por uma transformação intranqüilizante, um retrocesso que difundiu no espírito a insatisfação, pois tinha que se contentar com outras sub-atividades para manter a sobrevivência. Economicamente, os muçulmanos sucumbiram perante os poderes da Inglaterra, França, Itália e Espanha (até hoje ocupa, as cidades de Cepta e Mília ao norte do Marrocos), condenando a fecunda sociedade islâmica à ociosidade. Os aproveitados eram aqueles que interessavam ao colonizador que, de muitas maneiras, tentou abafar a religião islâmica, no Oriente Médio”(203). Na verdade, o ocidental dominador não forneceu o direito ao trabalhador, mas impôs um direito ao trabalho, proporcional à utilidade da sua política e, rigorosamente, exigiu, como qualificação técnica, que cada cidadão árabe aprendesse o seu idioma, desprezando a língua regional e o seu aprendizado.

A grande maioria árabe passou a viver de inúmeros serviços de terceira categoria ou concentrou forças no trabalho agrícola. Os estados muçulmanos, particularmente conquistados pelos ingleses, como o Egito, foram impossibilitados de se industrializar, porque a administração inglesa concluiu como imprestável a região para tal fim, mantendo a comunidade praticamente voltada aos plantios nos campos, com as safras dos produtos, principalmente do algodão, com a colheita totalmente sem ônus, transportada para Manchester, na Inglaterra, de onde voltava manufaturada para ser vendida a preços

elevadíssimos nos mercados de tecidos.

Mas um fato prometia desafiar o poderio econômico dos europeus. Quando o comerciante expunha os múltiplos produtos no comércio, a massa proletária não mostrava interesse de consumo pela grande dificuldade de compra. Se o preço não fosse baixo, a mercadoria não sairia das prateleiras. Foi esta, sem dúvida, a arma dos árabes contra o explorador, que utilizava as matérias primas alheias e as ofertava como produtos dos seus próprios campos agrícolas.

Entre 1920 e 1925, começaram a aparecer, no Egito, fábricas de porte, bancos, ______

(202) Idem, pp. 51-52.

tinturarias, o que motivou intensa propaganda contrária (inglesa) aos empresários árabes, especialmente Mohammad Talat Harb, que lutou contra a exploração do capitalismo estrangeiro, enfatizando: “O capitalismo não pode prosperar ou crescer sem a usura e o monopólio, ambos proibidos pelo Islã cerca de mil anos antes da existência do capital”(204).

Os europeus, também, desconheciam que os árabes muçulmanos aprenderam bem a mensagem do Profeta, que valorizou o trabalho, afirmando: “Pagai aos trabalhadores seus salários, antes que seque seu suor”(205). A determinação do salário que provém do trabalho, de maneira a sustentar o operário e sua família, não existiu. Com rigor, desconsideraram os valores e princípios trabalhistas, comprometendo a moral do esforço humano que, de regra, constitui a justa remuneração. Pagava-se arbitrariamente, sem combinar com o operário.

Na comunidade islâmica, o nível de vida decaiu, e a fecundidade do espírito muçulmano, que presenteou à Idade Média o progresso intelectual e industrial, exercendo grande influência na Europa, determinando, inclusive, o Renascimento, passou gradualmente de um estado de absoluto progresso para um nível decrescente.

Foi com recursos próprios que os muçulmanos como Mohammad Rachid Reda, Abess El Akad e o Sheick Mohammad Abdoh publicaram livros, reafirmando o valor da Shari’ah Al Islamia para a vida do povo, acusando os dominadores pela decadência estabelecida. Estes homens sofreram perseguições e, na Líbia, o chefe da resistência, Omar Mukhtar, travou duzentas e sessenta batalhas, entre as fortes e bem armadas forças italianas e as pobres milícias do beduíno, num período de vinte anos. “No dia 16 de setembro de 1931, foi enforcado pelo regime fascista italiano à vista de familiares e compatriotas, na região de Selum (Líbia), a despeito de sua deficiente saúde, uma vez que já tinha mais de noventa anos de idade”(206).

As circunstâncias econômicas levaram os árabes à condição desfavorável, sendo impedidos de reclamar ao patrão o pagamento do salário, sofrendo sérias humilhações. No Oriente Médio, os europeus não valorizaram o trabalho humano nem respeitaram sua lei, retirando-a de uso, operando com as próprias normas jurídicas.

Portanto, o conceito de humanidade que atualmente se atribui ao dominador europeu, não foi realizado, nem houve a dupla garantia de, pelo menos, beneficiá-lo com um bom salário.

A avaliação do trabalho árabe foi tão somente necessária à produção da riqueza européia e do seu progresso técnico, legando à região o problema social com que hoje se depara, cujas perdas irreparáveis a impossibilitam de mobilizar rapidamente e de forma ideal, forças econômicas capazes de gerar lucros, elevar o nível de vida e encontrar independência nas relações intermediárias que ainda se vê obrigada a manter com a Europa e os Estados Unidos.

Não pode passar em silêncio que a nociva política trabalhista européia, no Oriente Médio, gerou doença, desemprego e invalidez sem indenização, levando o trabalhador a uma situação incerta. Um exemplo é o Iêmen: “O verdadeiro denominador de

______

(204) Mohammad Qutub (nota 45), p. 98. (205) Hadits (nota 28), p. 106.

(206) Redatores: Omar Mukhtar - O legendário herói da Líbia. Alvorada. São Paulo: Makka. Ano I, nú- mero 6, novembro, 1991, p. 9.

identidade cultural no Iêmen é o qaat. Trata-se de uma planta de sabor amargo que contém substâncias anfetamínicas. Quando mascado ou fumado, produz um efeito de leve euforia. Para os iemenitas, o mundo não existe sem a planta, e sua proibição seria os suicídio político e a ruína econômica do país. Estima-se que ela seja responsável por 25% do produto nacional bruto”(207). “Comprovadamente, esta foi a única forma que a Inglaterra encontrou para extinguir a agricultura do país. Poderosamente, sem natureza essencialmente moral, destruiu as lavouras de Adam, porto do sudoeste do Iêmen,( melhor porto natural de toda a Arábia), e depois Perim, plantando qaat (erva de folhas grandes que, mastigadas, formam bolas como chicletes à boca), que tem poder alucinógeno. Ela era colhida e dada como presentes aos agricultores para mastigarem, manterem a saúde e ficarem alegres, motivando diariamente o consumo. Em pouco tempo, a economia cafeeira do Iêmen, considerada à época a melhor do mundo, diminuiu, aparecendo pobreza e vícios. No momento, está praticamente extinta.”(208).

O problema da droga no Marrocos apareceu com a chegada dos espanhóis e franceses, e no Afeganistão, sob o domínio da União Soviética que invadiu o país, em 1979, introduzindo plantio de ópio por meio de um grupo esquerdista que assumiu o poder e quis impor o comunismo às tribos. “O Afeganistão nunca foi rico e a guerra terminou por arruiná-lo. Sanções internacionais ajudam a piorar a situação. A população vive do contrabando, da esmola e da agricultura rudimentar. O Taliban socorre-se no narcotráfico, apesar do consumo de drogas ser proibido pela lei islâmica”(209).

Tendo cobrado da população uma rigorosa retidão, segundo a ONU: “O Taliban, a milícia fanática que controla o país, teve sucesso em erradicar as plantações de papoula – matéria prima do ópio e de seus derivados, como a heroína. Como o Afeganistão fornecia três quartos da produção mundial, está faltando ópio. Os preços dispararam, chegando a custar até sete vezes mais no mercado europeu, destino de 90% da produção de heroína afegã. Apesar de auxiliar o combate às drogas, a erradicação das culturas é um desastre doméstico. O ópio era a maior fonte de receita do país. Sem ela, o caos econômico fica ainda pior”(210).

Ora, a Shari’ah Al Islamia proíbe o cultivo de plantas de natureza danosa que criam dependência física, como o qaat, haxixe, tabaco, entre outras, e são classificadas como ilícitas. O cultivo implica ferir a Shari‘ah. Mas os europeus e os soviéticos claramente demonstraram que eles eram os senhores da situação, restringiram as atividades agrícolas e pastoris e comprometeram os muçulmanos perante a sua religião, tirando-lhes a pureza dos costumes, exercendo uma influência danosa à saúde, afrouxando a vontade e as energias de lutar contra a degenerescência. Tanto mais que a lei oficial do Iêmen é a inglesa, que tem uma tolerância razoável com o problema das drogas.

Que diremos, agora, dos efeitos morais, sociais, psicológicos e econômicos que perturbaram e perturbam ainda esse povo? As drogas são meios de fuga, e os muçulma-

nos do sul Iêmen não precisavam fugir da realidade íntima que tinham com a sua religião e lei. Apesar de enfraquecidos, o temperamento religioso está conseguindo vencer esse grande mal. O Iêmen está pobre, mas os religiosos esforçam-se na busca de manter

______

(207) El Arubat: A pobreza dos iemenitas: São Paulo: SBSP. 22 maio, 2001, p.4. (208) Sheick Mabrouk El Sawy Said ( nota 99).

(209) Jornal Makka: O sofrimento do Afeganistão. São Paulo: Makka. Ano VIII, número 98, maio, 2001, p. 15.

a dignidade humana, pressionando o governo contra o consumo da droga, e a capacitar, cada vez mais, o trabalho da agricultura, do comércio e da indústria, esta, até a presente data, inexistente.

Com baixos salários nos seus países, contingentes de árabes chegam à Europa, forçados pela necessidade. A Europa paga pelos próprios erros. Os europeus, também, estão sendo expulsos dos países de maioria muçulmana, abrindo-se espaço para os filhos da terra. Isto porque a Shari’ah Al Islamia não permite ao muçulmano viver na ociosidade ou simplesmente deixar de trabalhar para se dedicar à adoração a Alá. Pode trabalhar em qualquer atividade, desde que seja lícita, desenvolvendo a sua dignidade e bem-estar familiar. “Todo aquele que não trabalha nem para si, nem para os outros, não receberá recompensa de Deus”(211). Enfim, compreendemos a importância do atrelamento da norma jurídica à religião.

______

Capítulo Oitavo

A SHARIA’AH E O MUNDO MODERNO

Sumário: 8.1 O Islã na atualidade. 8.2 Al Jihad – o civismo muçulmano. 8.3 As massas pobres. 8.4 A mulher na sociedade islâmica. 8.5 A Shari’ah e a apostasia.