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PRIMEIRA PARTE

8.2 Al Jihad – o civismo muçulmano

O ideal cívico muçulmano é o Al Jihad. Ele é uma reverência à vida, uma congratulação à Shari’ah Al Islamia no cotidiano. Ele emana da ideologia profética, depende da religião, é ensinado nas mesquitas, enraizado no seio familiar e praticado para manter a segurança e a soberania do país.Al Jihad é o direito de legítima defesa e está sujeito a regras, quer dizer que antes de recorrer a ele, se devem esgotar todos os meios de conciliação.

É verdade que alguns países de maioria muçulmana impedem o poder cívico dos seus cidadãos de restabelecer o quadro governamental previsto na lei, dando lugar às forças de resistência que são repelidas nas tentativas de remontar um Estado Islâmico propriamente dito, onde possam ser estabelecidas as exigências do bem comum.

Para um Estado Muçulmano, a subordinação à Shari’ah Al Islamia é medida de interesse geral, constituindo dever resistir à lei injusta, combatendo o mal que causa um regime tirano.

Entendemos por dedicação cívica a ardente paixão dos muçulmanos, que se sacrificam ao interesse do próprio país, como os muçulmanos da Europa eslovaca (Bósnia- Herzegovina), que lutam contra as atrocidades em várias épocas, desde quando o Estado Osmanita perdeu os territórios da Lika, Slavonija, Dalmácia e Boka Kotorska. Os treze mil muçulmanos que não conseguiram fugir às perseguições cristãs, foram convertidos à força ao Cristianismo. “O massacre mais horripilante perpetrado contra os muçulmanos bósnios ocorreu em novembro de 1924, nas aldeias de Sahovic e Pavino Polje, no distrito de Bijelo Polje. Montenegrinos armados massacraram seiscentos homens, mulheres e crianças, numa só noite de carnificina. Os corpos de homens e mulheres vivos foram cortados em pedaços, tendo-lhes sido tirados os olhos, cortadas as orelhas, separados os órgãos, sobre os quais foi cravado o sinal da cruz” (218). Esses fatos não diminuíram nos muçulmanos as mostras da expressão da Shari’ah Al Islamia, porque, para eles a morte é uma bênção e a “melhor

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(218) M. Yossuf Adamgy (et Allii): Bósnia-genocídio à luz do dia, em plena Europa. Loures (Portugal): Al Furqan. 1993, p. 9.

morte é a de quem perece pelos seus direitos”(219).

Os que conseguiram fugir estabeleceram-se na Bósnia-Herzegovina, representando mais de duzentos anos de destruições premeditadas dentro da Europa, como o movimento nacionalista lançado em 20 de dezembro de 1941 pelo general Draza Mihailovic, comandante militar do exército iugoslavo, criando uma grande Sérvia, defendendo o extermínio de muçulmanos, albaneses, croatas e húngaros. Os objetivos são claros: “1. Criação de uma grande Iugoslávia e, dentro desta, uma grande Sérvia, éticamente pura, nos limites da Sérvia-Montenegro-Bósnia e Herzegovina-Banat. 2. Limpeza do território de todos os elementos não nacionais. 3. Criação imediata de uma fronteira comum entre a Sérvia e Montenegro, assim como entre a Sérvia e a Eslovênia, através da limpeza de Sanjak da população muçulmana e da limpeza da Bósnia das populações muçulmanas e croatas.”(220).

É evidente a demonstração de que os muçulmanos bósnios não representavam futuro para a região, ficando a Europa distante, longe do extremínio propalado pelos sérvios, pouco fazendo contra a investida do agressor. Tanto mais que a paranóia européia do terrorismo islâmico levou Michael Ignatieff a declarar no Observer que “muçulmano significa fundamentalista e fundamentalista significa fanático”(221). Segundo Sahih Muslim, muitos cientistas políticos ocidentais pensam que: “o fundamentalismo não é um traço acidental no Islã, mas algo inerente a ele. Quando se fala de fundamentalismo islâmico, está se usando uma expressão enganosa. Todo o Islã é fundamentalista na essência”(222). A despeito disso, sabe-se que esta sociedade é uma das mais civilizadas da Europa, cuja convivência pacífica permitiu ajudar aos judeus de Saray e de outras localidades, à custa de vidas de centenas de muçulmanos, a fugir do regime nazista. Mais recentemente, o governo sérvio de Milailovk (responde agora a um tribunal internacional) seguiu à risca os mandamentos nacionalistas de 1941, assassinando milhares de muçulmanos.

É precisamente esse aspecto do civismo islâmico, predominante na Bósnia- Herzegovina, Chechênia, Palestina, Afeganistão, Líbano, Argélia, Iraque, Turquia, que os europeus não entendem, quando há, segundo os muçulmanos, a preocupação de materializar a dedicação patriótica dentro dos limites concedidos pela justiça, prevista na Shari‘ah Al Islamia, através do Jihad. A Shari’ah Al Islamia prescreve dois tipos de Jihad. Al Jihad Acbar (maior): quando o muçulmano pratica todas as normas impostas pela Shari’ah, observando a espiritualidade da alma para não ceder aos impulsos contrários à moral e aos bons costumes. Al Jihad Asghar (menor): que é a legítima defesa contra o inimigo declarado, só deve ser utilizado por motivo justo, ou seja, impedir pela força a violação de um direito, ou reivindicar pela força um direito lesado. Neste caso, o Jihad é um instrumento de luta contra o opressor, o domínio do homem sobre o outro e o despotismo dos poderosos. O argelino é mais um exemplo desse civismo, lutou por mais de cento e trinta anos contra a colonização francesa. “A ocupação francesa encontrou a defesa mais dura jamais enfrentada por uma força imperialista neste século. O mundo assistiu também ao maior genocídio da história contemporânea, pois o povo pa-gou um alto preço pela liberdade. Nada menos que um milhão de mártires tombaram, vítimas das balas criminosas do invasor. Os ulemas lideraram as campanhas anticoloni-

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(219) Hadits (nota 28), p.77.

(220) M. Yossuf Adamgy (nota 218), p. 10-11. (221) Idem , p. 18.

ais e declararam o Jihad. As mesquitas passaram a ser centros de defesa da cultura islâmica contra o afrancesamento. Assim, destacaram-se o Emir Abdul Káder, Abdul Hamid Ibn Badis e outros. A luta continuou até que a França se viu obrigada, em 1962, a abandonar suas reivindicações imperialistas e conceder à Argélia sua independência.”(223).

Deduz-se que o civismo muçulmano relaciona o bem comum a um dever para com o Estado, empregando-se todas as condições para manter a sua independência. A Europa não assimilou de imediato a defesa islâmica nem reprimiu as atrocidades contra os povos muçulmanos, tolerando os genocídios de milhões de pessoas em pleno final do século XX e início do século XXI.

Na omissão governamental, tudo o que interessar ao bem comum de uma comunidade islâmica, a proteção dos direitos individuais será sempre dirigida por grupos voluntários de muçulmanos, que forçarão o Estado a coibir as injustiças. Essa corajosa lealdade aos princípios da lei islâmica funda-se na determinação de assegurar a todos os muçulmanos, principalmente aos oprimidos, o exercício dos direitos naturais. O comportamento muçulmano é contrário aos interesses dos países que mantêm o trust da economia mundial, explorando os países periféricos. Daí, apagarem o reconhecimento geral de que a Shari’ah Al Islamia assume abertamente uma coexistência pacífica entre as diferentes representações políticas e religiosas do mundo.

O papel cultural que a Shari’ah Al Islamia exerce perante as comunidades oprimidas, motivando o povo a avaliar a dimensão política dos seus governantes, com a fidelidade dos compromissos contraídos perante seus cidadãos, tem deixado mandatários preocupados, motivo pelo qual são desfavoráveis a um estado de maioria muçulmana na Europa. O que representa, no entendimento europeu e americano, a ameaça de perder o domínio sobre a produção dos recursos naturais de certas regiões e o enfraquecimento do capitalismo, diante do poder de restauração da população muçulmana. Um exemplo é a política americana no Iraque e na Ásia Central. “São cada vez maiores os indícios de que os Estados Unidos usam a guerra contra o terrorismo para conseguir colocar o pé na Ásia Central, região onde a Rússia ainda mantém uma presença importante . O interesse americano já se manifesta há alguns anos, desde antes da queda da União Soviética, e pode ser resumida em apenas duas palavras: petróleo e China. A Unocal – uma empresa da área de produção de energia americana – já se aproximou do presidente George W. Bush e da Aliança do Norte para retomar os planos para construir um gasoduto ligando os ricos campos petrolíferos de Dauletabad, no Turcomenistão, à cidade de Quetta, no Paquistão – um projeto de US$ 4,5 bilhões”(224).

O valor objetivo dos grupos muçulmanos é a natureza política configurada através do bem violado, que impulsiona o resguardo da soberania política do Estado. Diferente do ponto de vista de Roque de Brito Alves, ao conceber que a formação desses grupos: “é um fenômeno geral nos países de constituições democráticas, das não autoritárias, em nossos dias, devido à reiteração ou permanência de agitações políticas e sociais, obrigando a promulgação ou decretação de legislação especial – ou excepcional – para a proteção penal do Estado. Principalmente, em sua ordem interna, ameaçada pelo crescente aumento de ações criminosas terroristas que procuram, ao tentar contra

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(223) Redatores: Argélia, terra de um milhão de mártires. Alvorada. São Paulo: Makka. Ano 1, número 4, julho, 1991, p. 18.

tudo e todos, deter pela violência, os fundamentos de toda organização política social e jurídica de uma nação, a sua própria existência”(225).

Vê-se, claramente, que o movimento muçulmano “está ligado à lei islâmica e a permanente defesa dos seus, implica necessariamente à renúncia estrangeira de legitimar nova invasão aos países do Oriente Médio e Ásia, cujas políticas domésticas vão de encontro às restrições econômicas impostas pelos capitalistas, a exemplo do que foi realizado no Iraque, Líbia, Irã, Afeganistão, Paquistão etc, perdendo a rigorosa fiscalização que antes estabeleceram nas terras do Estado Osmanita”(226).

Por outra parte, o civismo muçulmano ocupa, no organismo social, um valor que não permite omissão, o de se sacrificar pelo bem-estar da comunidade. Um exemplo significativo desse civismo é a diáspora palestina, promovida pelo lord Arthur Balfour, ao propor um Estado Judeu em terras palestinas, sem o conhecimento e acordo dos árabes, em 02 de novembro de l917, ao mesmo tempo em que fazia a mesma promessa aos árabes palestinos, cujas terras recebiam o controle da Grã-Bretanha, após o acordo de Sykes-Picot, em 1916, com a França, para dividir os territórios do Estado Osmanita.

O movimento sionista acentuou-se, ocupando aldeias e povoados árabes. Em nome da necessidade de defesa, grupos extremistas – como o liderado por Vladimir Jabotinsk – espalharam o medo nas aldeias árabes, expulsando camponeses para assentar novas colônias. Organizavam-se em movimentos armados, procurando acelerar o processo de posse e controle da Palestina. Além do Haganah, núcleo militar que posteriormente daria origem ao exército israelense, outros grupos surgiram para intimidar a população árabe. O Irgun, organização fundada por estudantes da Universidade Hebraica de Jerusalém, em 1938, ficou célebre por sua violência: bombas em praças e mercados, por exemplo. Em 1946, tendo como um de seus líderes o judeu polonês Menahem Begin, futuro primeiro- ministro de Israel, o Irgun matou 91 pessoas num atentado ao hotel King David, em Jerusalém, onde funcionava o quartel general britânico, deixando outras dezenas feridas. Mas, também violento foi o grupo de Stern (Abraham Stern), dissidência do Irgun, surgida na Segunda Guerra Mundial. Mesmo envolvidos na guerra em torno da fundação do Estado de Israel, os movimentos armados palestinos e os exércitos árabes evitaram atingir a comunidade judaica palestina, com a qual haviam convivido durante séculos. Os sionistas, porém, tinham outra conduta. Determinados a construir na região um país exclusivo para os judeus do mundo inteiro, não mediam conseqüências para alcançar seu objetivo. Nunca mais os palestinos esqueceriam, por exemplo, massacres como os que houve na Aldeia de Deir Yassin, em 1947, onde 245 moradores foram exterminados. Nos meses seguintes, meio milhão de palestinos, aterrorizados, foram obrigados a fugir de suas casas. Em 1973, os judeus “divulgariam através da Liga Israelense para os Direitos Civis e Humanos, o número de 385 aldeias e povoados destruídos das 475 que existiam”(227). Mas os que foram obrigados a deixar seus lares, campos e propriedades inteiras com animais, safras e benefícios, passaram a viver nos acampamentos construídos pelas nações que os acolheram, onde estudaram e foram alimentados, fortificando os palestinos a identidade com suas raízes e a exegese alcorânica.

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(225) Roque de Brito Alves: Direito Penal – parte geral. Recife: Labograf. 1976, p. 366. (226) Mohammad Rachid Reda (nota 174), pp 227-228

Diante dos fatos, compreendemos, que o significado cívico do Jihad e sua larga aplicação a quase todo aspecto da vida humana foi entendida pelos palestinos. É necessário lembrar que o Islã se fundamenta na idéia de estabelecer o equilíbrio no interior do homem, assim como na sociedade humana na qual esse homem age e realiza os objetivos de sua vida terrena.

No momento atual, em que a imagem do Islã no Ocidente depende tanto da compreensão do significado Jihad, é de extrema importância compreender a maneira pela qual o Islã tradicional concebeu essa idéia chave ao longo das épocas e a forma como se relaciona com a espiritualidade

O termo árabe Jihad, geralmente traduzido para línguas européias como “guerra santa”, com base mais em seu uso jurídico no Islã do que em seu significado mais universal no Al Qu’ran e nos Hadits, é derivado da raiz Jhd, cujo significado primário é “empenhar- se”, “esforçar-se”. Sua tradição como “guerra santa”, combinada com a noção errônea, prevalece no Ocidente, o Islã como a “religião da espada”, ajuda a eclipsar seu significado interior e espiritual e a distorcer sua conotação”(228).

Assim, em face das contingências do mundo da mudança, do efeito devastador do tempo, das vicissitudes da existência terrena, permanecer em equilíbrio exige esforço contínuo. Significa realizar o Jihad em cada fase da vida.

“Em seu senso mais externo, o Jihad significa a defesa do Dãr Al Islãm, isto é, do mundo islâmico, contra a invasão de forças não islâmicas. Em um dos milhares ensinamentos do Profeta Mohammad (S.A.A.W.S.), disse aos seus companheiros “que a batalha interior contra todas as forças que impediriam o homem a viver de acordo com a norma teomórfica que é sua natureza primordial e concedida por Alá – é o Jihad maior”(229).

Sob esse aspecto, justifica-se plenamente o civismo muçulmano, que coloca diante da ameaça à integridade dos seus compatriotas, imediata reação. Juridicamente, o civismo muçulmano impede, de certa maneira, que constantes ataques contra o seu povo possam ser ensejados. Para Yasser Arafat: “aqueles que nos apelidam de terroristas fazem-no para mistificar a opinião mundial e impedi-la de ver a realidade, de ver a nossaverdadeira face, que é a da autodefesa e da justiça. Esforçam-se por dissimular a sua verdadeira face, que é a do terror e da tirania, e negar a situação em que nos encontramos colocados”(230).