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PRIMEIRA PARTE

1.6 Os muçulmanos após a morte do Profeta

Dos seis mil, duzentos e trinta e seis versículos do Al Qu’ran, apenas duzentos são dedicados ao sistema governamental islâmico. Ao morrer, no ano dez da emigração, Mohammad (S.A.A.W.S.) deixou o sistema de governo completo. Transmitiu aos seus companheiros como usar a lei islâmica, procurando aperfeiçoá-los a encontrar suas próprias soluções, através do raciocínio, sem prejudicar as regras do Al Qu’ran e da Sunna.

Vimos que a lei islâmica englobou a forma do governo medinense, chefiado pelo Profeta, que não indicou substituto ao cargo. A consulta passa a ser uma atividade de orientação e de concentração dos operadores jurídicos da época, conforme os problemas nos tribunais, nos meios econômicos, políticos e sociais fossem de interesses individuais ou coletivos.

Os muçulmanos se conscientizaram da justiça da doutrina islâmica e a elegeram como uma das “fontes da legislação geral, isto é, que a doutrina muçulmana tornou-se uma fonte para os tribunais e o Direito Internacional, não devido à força dos seus seguidores, mas, por causa de sua propriedade e de sua própria força, que a fez impor-se”(59).

Justamente, na falta do Profeta, os muçulmanos aplicaram a Axxurra para eleger o seu substituto. De modo que procuraram na Shari’ah a solução dos problemas que não entendiam ou que hesitaram chegar a uma conclusão final.

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(57) Idem, p. 54.

(58) Frithjo-Schoun (et Allii): O Islã – o credo é a conduta. Orgs. Roberto S. Bartholo Jr., Arminda Eu- gênia Campos. Rio de Janeiro: Imago Editora/Iser, 1990, p. 26.

(59) Abdel Majid Aziz Az-Zandani: O caminho para a Shari’ah. São Paulo: Movimento da Juventude Is- lâmica Abu Bakr Assiddik. 1989, p. 76.

Verificaram atentamente vários dispositivos da lei que foram debatidos com os membros da Axxurra e deram prioridade às amplidões da fé, da justiça, do governo, da família, da educação, do trabalho e da saúde. Nesse sentido revela a Surata Al Imran, versículo 110, do Al Qu ‘ran: “Sois a melhor nação que surgiu na humanidade. Por quê? Recomendas o bem, proibis o ilícito e credes em Deus”(60).

Evidentemente, o princípio político do sistema governamental islâmico é

conservado através da Shari’ah. Na realidade, ela resguarda os direitos dos cidadãos e as limitações que o Estado impõe a si mesmo. Nesse conhecimento, os modernos muçulmanos, tanto quanto os antigos, entendem que os direitos sociais dos indivíduos são conquistas de ordem intelectual e moral e, nestes termos, instrumentalizam que: “os direitos sociais são normas de ação, obrigações positivas para o Estado promover, assegurar e melhorar a saúde pública e a assistência social sob todas as formas”(61).

Nesse ambiente, a lei islâmica obriga ao mandatário obedecer aos princípios impostos e à população guiar-se pelo texto, mantendo a soberania e a segurança na comunidade. Atualmente, alguns governantes islâmicos, a exemplo de vários califados, afastaram-se da Shari’ah, e a população, não aceitando a restrição à sua norma jurídica, criaram forças para fazer os Estados cumprirem a lei, sob pena de sofrer incômodos com as manifestações populares conhecidas pelos ocidentais como fanáticas.

Mas o interesse do medinense é vencer as dificuldades e continuar a identificar seu Estado como uma verdadeira comunidade islâmica. Daí a conveniência da escolha para substituir o Profeta recair em Abu Bakr Assiddik, por ter inúmeras vezes o substituído nas orações, ter empregado toda a riqueza em benefício da religião e dado boas orientações, quando foi convocado para participar do conselho. A bai’á (aceite), exprime na Shari’ah a natureza de concordância da comunidade. O objeto que constitui a existência de uma legítima representação é o aperto de mão da comunidade. Era, portanto, o espírito espontâneo da cidadania.

Em todo caso, não provém de nenhuma outra regra comparável, nem sua definição se adapta a mais de um mandatário. Mas tornou-se necessária, pois correspondia a um exemplo herdado do Profeta que fez bai’á com os muçulmanos, antes da consolidação do Estado Islâmico. De forma que o sistema elimina qualquer perigo de distinção entre as pessoas, formando a noção essencial de que todos são iguais perante a Shari’ah Al Islamia.

O mecanismo da bai’á reflete dois momentos: primeiro a Bai’á Qhassa. Neste sentido, temos as condições de eleição indireta, realizada pelos grupos de companheiros do Profeta. Nesse estágio mais íntimo, define-se o representante legal do Estado que deve ser confirmado, através da Bai’á Aamat, ou seja, a aprovação popular da escolha.

No dia seguinte ao da indicação, Abu Bakr Assiddik foi à mesquita, fez qhotbat (sermão) e os presentes tocaram-lhe a mão direita, ratificando o mandato que começava a cumprir por tempo indeterminado, devendo assegurar, sem privilégios, as diretrizes da lei islâmica. Em sentido concreto, foi a primeira vez em que os muçulmanos realizaram uma eleição naquela sociedade.

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(60) Samir El Hayek (nota 20), p. 48.

Notemos que o sistema de governo foi determinado pelo concurso dos cidadãos, que conseguiram sua estabilidade na expressão de todas as vontades individuais. Era evidente que as condições do novo governo podia alcançar forma duradora, juridicamente válida. Estava em jogo a garantia governamental islâmica.

Para Ibn Khaldun, o termo bai’á significa: “tomar compromisso de obedecer”. Quem empenhasse sua fé, fazendo a bai’á reconhecia a seu emir o direito de o governar como a todo o povo muçulmano; prometia que, neste particular, não lhe resistiria de maneira alguma e que obedeceria a todas as suas ordens, fossem agradáveis ou não. No momento de hipotecar sua fidelidade ao emir, (amarrar o nó de sua licença, como diz o árabe) colocava sua mão direita na dele para ratificar o contrato, tal como se pratica entre vendedor e comprador. Eis porque se designou este ato pelo termo “bai’á”, tomar-se pelas mãos”(62).

Segundo Mohamad Abdulkadre Abu Fares: “O termo bai’á significa representante do povo, devendo o emir (governante) ser fiscalizado para não se afastar dos preceitos normativos da Shari’ah. Portanto, não pode ser considerado como um contrato de compra e venda, porque quem compra, pode fazer o que quer com o bem. Como representante do povo, o governante pode realizar programa, conforme o seu próprio entendimento”(63).

Entendemos que é mais apropriada a classificação analítica de Mohamad Abdulkadre Abu Fares, quanto ao significado do termo. Porque existem interpretações da Sunna que preceituam a obrigação de obedecer ao emir ou imam (ambos são líderes religiosos), já que, no toque de mão, o coração estava junto. Qualquer outro que desejasse o cargo do imam deveria ser morto. A figura do imam era, e é atualmente, de suma importância no Islamismo. Ele detém todo o conhecimento da Shari’ah, aplicando-a corretamente. É incorruptível. Como o Islã desconhece a hierarquia religiosa, não se pode falar em papado. No entanto, em razão da própria função desempenhada, necessariamente, é fiscalizado pelo povo, podendo ser destituído do cargo e corretamente julgado.

Logo, em todas as épocas, o indivíduo de um país muçulmano possui o direito de censurar qualquer autoridade que esteja à frente do executivo ou dele faça parte como funcionário, no tocante ao comportamento e atos desempenhados relativos aos governos. Fiscalizando a pessoa a quem delegou poderes (através do voto), assegura-se que exerça com cautela e honradez o mandato que lhe foi entregue. Dentro deste aspecto, governaram os primeiros califas.