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Parte I ALGUMAS REFERÊNCIAS TEÓRICAS DE PARTIDA

I. 2.1.3.1 Aliança saber/poder

As origens dos sistemas educativos dos Estados pós-coloniais em África estão associadas às políticas coloniais que trataram de proporcionar uma educação selectiva criadora de alguns privilegiados, sobretudo numa altura em que o número de efectivos que tinha acesso ao ensino era relativamente baixo. Os sistemas escolares coloniais destinavam-se a formar, não elites, mas sim indígenas intermédios (auxiliares e executivos) julgados indispensáveis para um bom funcionamento da administração colonial e das grandes companhias. Foi assim que os novos Estados independentes receberam uma herança de quadros subalternos, executivos e auxiliares saídos das escolas médias e técnicas. Como observa Dias, o «sistema de educação foi implantado em África como a

59 A educação surge, assim, como parte dos mecanismos produtivos e reprodutivos da sociedade em vários

níveis, a saber: produção de capacidades que contribuem para a acumulação de capital; reprodução da distribuição de qualificações de acordo com as classes sociais (reprodução da desigualdade); reprodução das relações de produção através da socialização dos jovens dentro de um sistema de produção estruturado em classes, desigual e injusto; e reprodução de um sistema repressivo. E porque operam juntas, torna-se impossível separar essas funções em categorias claras e distintas (cf. Carnoy, 1990).

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principal agência socializante e o transmissor da ideologia derivada de e submetida aos interesses das nações metropolitanas» (Dias, 1990: 291), cabendo-lhe um papel funcional dentro do processo de organização das relações de produção dependentes da divisão internacional de trabalho. A necessidade de integração das sociedades africanas no mercado internacional exigiu certas qualificações das forças trabalhadoras, administrativas e comerciais, para consolidar o modo de produção dominante, embora o campesinato africano nunca tivesse sido alfabetizado e tornado mais produtivo. Assim, surgiram os «educados», os «elementos progressivos ou civilizados», os «evoluídos», os «civilizados» - todas designações referentes aos indivíduos que passaram pelo sistema escolar (Dias, 1990: 292).

As consecutivas reformas educativas que tiveram lugar no período pós-independência não afastaram, no entanto, a função selectiva dos sistemas escolares vindos da época colonial, continuando, por isso mesmo, a seleccionar e a produzir os estratos dirigentes dos países e o conjunto dos diversos estratos sociais. A «classe dominante», cujos componentes são, fundamentalmente, a burguesia burocrática (forças militares-tecnocratas, empresários, comerciantes, funcionários e dirigentes políticos), surge no estrato social com formação escolar para além do ensino primário. Os sistemas nacionais de educação pós-coloniais permaneceram, pois, essencialmente não democráticos. Organizados verticalmente, de forma autoritária e destruidora da base cultural existente, esses sistemas educativos favorecem os grupos dominantes. Com efeito,

«quando se trata de manter o status socioeconómico e a distribuição de posições políticas de responsabilidade, o ensino secundário e superior favorecem os grupos com capacidade económica e social de acesso a posições elevadas, e com possibilidades de explorar as vantagens económicas e de exercer funções de controlo social» (Dias, 1990: 295).

Nesse quadro, a procura social da educação é entendida como uma procura do diploma enquanto garante de um estatuto e de sucesso assegurado. A procura da educação (de determinado curso) reduz-se à procura de um diploma que seja profissional e/ou socialmente rentável, segundo a lógica dos interesses (ligada ao gosto, prazer pessoal, sucesso fácil) e da perspectiva de vida (acesso às profissões lucrativas e a um estatuto social privilegiado). Por isso mesmo, apesar da crise e de obstáculos surgidos ligados ao mundo do trabalho, o diploma mantém o seu valor social.60 Dias tem razão quando afirma

60 Debruçando-se sobre a realidade do antigo Zaire, Makita-Makita (1989) mostra como, apesar das múltiplas

dificuldades, a intensa procura da universidade pelos estudantes acentua a ideologia dominante e a prática social. O poder integrador da formação escolar e as representações a ela associadas em termos de futuro pessoal e de utilidade social no desenvolvimento revelam a função de promoção social individual e colectiva

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que o sistema educativo em África constituiu, desde sempre, um meio essencial para «consolidar a estrutura autoritária de classe em proveito de grupos dominantes, em vez de assegurar a liberdade, a igualdade, a autodeterminação, a criação da competência, a autoconfiança da maioria dos sujeitos históricos» (Dias, 1990: 277). Assim, tem toda pertinência a hipótese do autor, segundo a qual a análise da educação no processo de desenvolvimento africano deve ser ligada ao processo de formação de classe.

À semelhança do que acontece na Europa e noutros locais do mundo, também em África o monopólio relativo da educação escolar, do «saber, constitui um dos meios de assegurar um poder social e importantes retribuições. Mais do que a necessidade objectiva de um saber funcional, o importante nas relações entre esse saber e poder é a legitimidade desta aspiração. A educação escolar funda o poder dos seus detentores e condiciona as suas relações sociais, do mesmo modo que o capital funda o poder da classe capitalista e o trabalho funda a classe trabalhadora.

A importância crescente da educação escolar no processo social em África decorre do nível estatutário e da elevação na hierarquia social dos elementos escolarizados vinda da época colonial; esta aliança entre a educação escolar e o poder ganha um novo impulso no Estado pós-colonial. Com a saída dos quadros coloniais, os novos Estados independentes confrontaram-se com a necessidade de recrutar as pessoas que iriam ocupar os lugares então deixados vagos. As populações escolarizadas e, sobretudo, os diplomados universitários, encontravam-se em posição privilegiada para desempenhar altos cargos de responsabilidade, nomeadamente ministeriais. Dava-se, assim, início à aliança entre os diplomados e a classe política e, em última instância, à formação da classe dominante.

A ocupação dessas posições-chave propiciou uma acumulação rápida e massiva da parte dos seus ocupantes, que se transformaram numa burguesia tecnocrata próxima do poder. Este processo prosseguiu rapidamente nos anos a seguir às independências, reforçado, sobretudo, pela avalanche de diplomados surgidos na sequência das reformas de ensino levadas a cabo e da massificação da universidade. Todavia, nem todos os estudantes (universitários) terão a oportunidade de partilhar os benefícios sociais desta aliança, na medida em que parte deles será excluída, restando saber quem entra e quem é banido.

Esta proeminência da educação escolar como meio seguro de promoção social, em África, deve-se, fundamentalmente, à ausência de uma burguesia nacional de base económica autónoma que afasta o sistema económico da competição para o estatuto social.

do diploma. A projecção do futuro pessoal é fundada sobre o diploma universitário, cujo valor de uso e de troca não é contrariado pela deterioração da instituição universitária nem pela desvalorização do diploma.

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Assim se explica que esta forma de educação constitua o canal de acesso à oligarquia e aos haveres, do mesmo modo que se perceba a corrida desenfreada ao diploma e o mito da escola e da universidade; que se forme uma burguesia do diploma sem qualquer base económica ou popular, tendo, apenas, como fonte de legitimidade o seu saber, que passa de instrumento e meio para o objecto e fim; e que a escola, e a universidade em particular, se tornem os locais de competição para o estatuto social e o fundamento da hierarquia social.61

Este «emburguesamento» dos indivíduos escolarizados através do aparelho do Estado traduz-se numa lógica de apropriação privada dos recursos do Estado sob a forma de repartição dos rendimentos e da distribuição do poder. A repartição de rendimentos constitui um factor essencial de enriquecimento, na medida em que se apresenta como uma fonte de acumulação de capital e de lucros, através do papel económico do Estado (enquanto agente e instrumento principal da acumulação e base económica de uma nova classe social) e da política dos rendimentos (que acentua a bipolarização entre governantes e governados, entre ricos e pobres, entre privilegiados e excluídos). Esse emburguesamento de uma certa classe política, em detrimento do Estado, ocorre através da política económica global, que se socorre de estruturas perversas como condição de acumulação de capital e de lucro, designadamente do poder político e económico. Os grupos dirigentes utilizam os benefícios das suas posições políticas para compensar a posição de insegurança em que se encontram face à penúria dos recursos.62 Trata-se de um fenómeno que consiste na rarefacção voluntária e artificial de certos bens, de maneira a favorecer a especulação, o encarecimento dos preços e a realização de lucros substanciais; de um capitalismo caracterizado, não em termos da mais-valia ou do excedente, mas sim a partir do lucro

61 O saber, através do diploma, constitui um factor fundamental de diferenciação social, permitindo

distinguir, por exemplo, entre diplomados e não-diplomados. A ascensão no sistema social dos não-diplomados depende da aposta nas afinidades familiares, étnicas ou regionais, factores que se revelam tanto mais estreitos e frágeis quanto maior for a probabilidade de uma eventual mudança política que poderia modificar a configuração da clientela política. O diploma surge, por outro lado, como uma garantia de estabilidade profissional e um princípio justo de legitimação de vantagens e privilégios, suportando a burguesia tecnocrata. Donde que os diplomados excluídos, num dado momento, suportem com paciência a situação, aguardando pela sua oportunidade, pois, enquanto capital imperecível, o diploma torna-se uma aposta de luta social e um salvo-conduto que permite deslizar sobre a rota do poder e do enriquecimento (cf. Makita-Makita, 1989).

62 A especificidade das burguesias nacionais africanas refere-se, precisamente, ao facto de elas disporem da

mais-valia ou do excedente social na sua qualidade, não de proprietários, mas de controladores dos meios de produção. Os grupos detentores de poder controlam as diversas instituições que lhes asseguram a apropriação do excedente económico. Trata-se de uma situação em que o político ocupa lugar de proeminência sobre o económico na determinação das classes sociais. Esta realidade invalida ou torna pouco rentável qualquer análise de classes sociais baseada estritamente sobre o económico e que não tenha em consideração a importância da sobredeterminação da dominação política sobre a estratificação social. Esta crítica dirige-se, por conseguinte, a uma abordagem marxista que faz das relações de propriedade a sua pedra angular de análise das classes sociais, quer se trate das sociedades capitalistas avançadas, quer se trate de outras (Bayart, 1983).

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conseguido numa situação de raridade e de inflação de preços que permite a especulação; da substituição de produções e circuitos internos pelas importações e trocas externas, através das quais o grupo no poder retira substancialmente maiores ganhos. Por conseguinte, a origem do lucro provém da remuneração da habilidade do negociador em manipular a economia e não da remuneração do risco corrido pelo empresário inovador. O monopólio dos circuitos económicos surge como factor indispensável à acumulação de capital e de lucro.63