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Parte I ALGUMAS REFERÊNCIAS TEÓRICAS DE PARTIDA

I. 1.1.2.2 Competição política

I.2.1 Complexidade e multifuncionalidade da educação

I.2.1.2 Multifuncionalidade da educação

A consagração do ensino/educação enquanto mecanismo fundamental da reprodução (da força de trabalho e das relações de produção) está associada às análises marxistas mais recentes e não às análises marxistas ortodoxas. Segundo estas últimas, a reprodução da sociedade capitalista é feita no próprio sector produtivo, através de estratégias várias que intimidam os trabalhadores e os coíbem de se aventurarem em qualquer tentativa de organização contra os empregadores, mantendo-se a divisão do trabalho dentro dos limites de classe. Nesta perspectiva, o próprio Estado capitalista constitui um aparelho repressivo da burguesia que mantém os trabalhadores nas suas posições, através do sistema jurídico e do exército-polícia.56 Para as análises marxistas mais recentes, a classe capitalista reproduz, através da escola e outras instituições superestruturais, não só as forças de produção (mão-de-obra, divisão de trabalho e divisão do conhecimento), mas também as relações de produção, mantendo e desenvolvendo uma ideologia legítima e um conjunto de padrões de comportamento ou cultura. Assim, ao mesmo tempo que o sistema escolar transmite os conhecimentos básicos e especializados, formando a força de trabalho, assegura também a assimilação e a aceitação do sistema de autoridade e hierarquia no quadro do qual esses conhecimentos são utilizados.

No quadro dessas últimas análises, contam-se contribuições importantes de numerosos autores. Gramsci57 atribui ao Estado um papel abrangente na perpetuação da estrutura de classe. O Estado, mais do que um aparelho coercivo da burguesia, exerce o seu papel «hegemónico» que está enraizado na estrutura de classe, definida por relações de produção e ligada a elas. E a escola, sendo parte do aparelho ideológico do Estado burguês e factor de hegemonia burguesa, assume um papel importante na estrutura de classe; o sistema educacional produz os intelectuais que dão à burguesia homogeneidade e

56 Para uma análise do Estado capitalista enquanto expressão política da estrutura de classes, inerente à

produção, e que surge como uma resposta à necessidade de mediar o conflito de classe e manter a «ordem», uma ordem que reproduz o domínio económico da burguesia, cf. Carnoy (1990: 23).

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consciência da sua própria função, tanto no aspecto económico como nos campos político e social. Trata-se, aqui, de defender a ideia segundo a qual a dominação de classe não é apenas mantida e reproduzida através dos aparelhos repressivos do Estado, mas, também, através do consenso, elemento importante para se obter a hegemonia de qualquer grupo ou grupos sociais. Criticando o conceito marxista tradicional de Estado como aparelho puramente repressivo, Gramsci considera que um conjunto de aparelhos, como a igreja, a escola e a imprensa, desempenha também uma função estruturante na manutenção da hierarquia social.

Althusser vê nos aparelhos ideológicos do Estado, tais como a escola, factores essenciais na reprodução das relações de subordinação/dominação ideológica (Althusser, 1974). O autor considera o Estado capitalista como aparelho ideológico da burguesia intimamente ligado ao sistema educacional, defendendo que, na formação capitalista, a reprodução da qualificação da força de trabalho tende a ser assegurada fora da produção, isto é, através do sistema escolar capitalista e de outras instâncias e instituições. Na escola aprendem-se não só saberes práticos, mas também regras dos bons costumes, da moral, da consciência cívica e profissional, e do respeito pela ordem estabelecida pela dominação de classe. Por outras palavras, a reprodução da força de trabalho tem como condição a reprodução da qualificação desta força de trabalho, assim como a reprodução da sua sujeição à ideologia dominante ou da prática desta ideologia.

Ao contestar esta visão de Althusser (1974), Poulantzas (1974) nota que os aparelhos ideológicos do Estado não produzem, eles próprios, ideologias, mas apenas as elaboram e as inculcam, isto é, materializam-nas; estes aparelhos não possuem a exclusividade da reprodução das relações ideológicas. De acordo com o autor (Poulantzas, 1974), a função dos aparelhos de Estado é manter a unidade e coesão da formação social, concentrando e sancionando a dominação de classe, e, desta forma, reproduzindo as relações sociais, isto é, as relações de classe.

Bourdieu e Passeron (s.d.) defendem a escola como agência fundamentalmente conservadora que reproduz a hierarquia social através de um processo aparentemente neutro. Ou seja, ao considerar todas as crianças iguais, favorecendo ao mesmo tempo aquelas que adquiriram, na sua família, um código cultural que lhes permite aproveitar melhor a cultura académica, a escola olha como natural o que é social, contribuindo, deste modo, para a reprodução e legitimação da ordem estabelecida. Bourdieu e Passeron (1982) tentam medir as oportunidades escolares segundo a origem dos alunos, utilizando dois instrumentos estatísticos: a probabilidade objectiva de um jovem de um dado sexo, e cujo pai tem uma dada profissão, aceder ao ensino superior e a probabilidade condicionada de

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um estudante de uma dada categoria social inscrito pela primeira vez na universidade poder fazer um ou outro tipo de estudos. Os resultados deste trabalho revelam que as desigualdades são, ao mesmo tempo, desigualdades de acesso e de possibilidades de escolhas de estudos, e que umas e outras não se distribuem por acaso segundo a origem social e o sexo. Assim, o sistema escolar procede a uma eliminação sistemática tanto mais completa quanto mais se aproxima das classes mais desfavorecidas. Outras formas de desigualdades escondidas dizem respeito à restrição das escolhas que se impõe «mais às classes baixas do que às classes privilegiadas e às estudantes do que aos estudantes, sendo a desvantagem tanto mais acusada para as raparigas quanto mais baixa for a sua origem» (Bourdieu e Passeron, 1982: 43).

Baudelot e Establet (1981) postulam que a educação reflecte as relações de classe inerentes à forma como as mercadorias são produzidas. Para os autores, uma classe que domina outra, usando o sistema escolar para reproduzir esta relação dominante/dominado, fá-lo com base na sua posição económica enquanto dona do capital e controladora do investimento. Tal não significa que os alunos da classe dominada aceitem completamente esta tentativa de imposição da classe dominante, uma vez que tendem a oferecer uma resistência ideológica (e não económica) à escola, que se reflecte, por exemplo, nas formas violentas como, às vezes, destroem a escola ou insultam os professores. Baudelot e Establet (1981) criticam, portanto, a concepção reformista da escola como uma instituição tendencialmente única, defendendo que, ao longo do percurso escolar, os alunos vivem uma contradição entre uma escola frequentada pela classe dominante e outra frequentada pela classe dominada. Semelhante oposição traduz a divisão das classes sociais no sistema capitalista (Baudelot e Establet, 1981). Esta perspectiva possibilita uma compreensão da escola enquanto agente da reprodução social na linha de Althusser (1974) e Poulantzas (1974). A escola desempenha esta função ao distribuir os indivíduos nos diferentes postos de trabalho e ao inculcar neles uma ideologia burguesa, quer através do canal da classe dominante, quer através do canal da classe dominada: o primeiro canal prepara os futuros dirigentes para as funções de comando, enquanto o segundo prepara os jovens para aceitarem a ordem capitalista e para recalcarem a ideologia proletária latente (Baudelot e Establet, 1981).

Bowles e Gintis (1976) consideram a escola como uma agência que perpetua as relações de produção.58 Para os autores, existe uma correspondência entre as relações sociais na escola e as relações sociais no trabalho, o que permite ao sistema educacional

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produzir uma força de trabalho fragmentada e dócil (Carnoy, 1990). O sistema educacional espelharia ou duplicaria as contradições do sistema social global e, em particular, as relações de domínio e subordinação na esfera económica. Na linha de Poulantzas (1974), Bowles e Gintis defendem que o sistema educacional reflecte as relações de produção e actua no sentido da sua reprodução (1976, 2002).

Estas interpretações marxistas recentes da educação permitem apreender a educação na sua multifuncionalidade, designadamente ideológica (reprodução da força de trabalho e reprodução das relações de produção através das relações ideológicas na escola), económico-reprodutiva (desenvolvimento de uma mão-de-obra qualificada, o que contribui, directa ou indirectamente, para o aumento da produtividade, através da produção de quadros tecnocráticos capazes e desejosos de controlar outras fracções da força de trabalho) e repressiva (escolaridade obrigatória, diversas sanções para aqueles que se comportem mal na escola).59 Deve referir-se, no entanto, que se é verdade que essas interpretações constituem uma crítica valiosa às teorias funcionalistas que atribuem à escola um poder quase total para modificar e melhorar a sociedade, é verdade, também, que elas acabam, por sua vez, por atribuir a esta instituição um poder exagerado para perpetuar a sociedade. Ou seja, os referidos autores Bowles e Gintis sobrevalorizam criticamente a importância da escola, por um lado, e minimizam o espaço disponível para a resistência e luta no seu interior, por outro (Carnoy, 1990).