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SOCIOPOLÍTICAS E EDUCATIVAS

II.1 Transições económicas e sociopolíticas

II.1.1 Transições económicas

Quando assumiram o poder em 1975, os dirigentes do MPLA adoptaram um modelo socialista de gestão política e económica assente no controlo da economia planificada centralmente. Neste quadro, o sector público e nacionalizado desenvolveu um aparelho burocrático pesado, muito propício ao tráfico de influências. Esta forma de actuação, em que o MPLA/Governo surge, de facto, como o único detentor do poder e se confunde com o Estado, anularia quase totalmente a iniciativa privada e produziria um sistema de «poder fechado» (Jorge, 1998: 72).75

As alterações formais a esta forma de governo económico e político iniciar-se-iam nos finais dos anos 80 e princípios de 90 do século passado, associadas aos processos de transição económica, social e política, e acabariam por afectar os próprios modelos do Estado e da sociedade. O sistema económico de planificação centralizada foi-se modificando, ao mesmo tempo que se adoptavam medidas mais conformes a uma economia de mercado, e o regime político de partido único dava mostra de abertura, caminhando para um regime político multipartidário. O país vive um período muito ligado à situação de instabilidade político-militar, de crise socioeconómica e de recomposição dos interesses de actores que compõem a comunidade internacional. Às iniciativas de liberalização económica seguir-se-iam tentativas de uma abertura do sistema de partido único, que acabariam na adopção de um sistema multipartidário, cujas eleições de 1992 marcariam formalmente o seu início.

Estes processos de transição ou mudanças económicas e políticas haveriam de enfrentar grandes dificuldades até ao presente. O processo de transição democrática, em particular, ficaria marcado pelas vicissitudes que surgiram na sequência da não-aceitação dos resultados das referidas eleições pela UNITA e do retomar do conflito civil, que só terminaria em 2002. Desde então, o país vive em paz, mas a consolidação dos processos de transição e de democratização do país não deixaria de enfrentar dificuldades. Estas dificuldades traduzem-se, entre outros aspectos, na interrupção das negociações sobre a revisão constitucional que estavam a decorrer antes das eleições legislativas de 2008 e que

75 É o MPLA/Governo, e não a UNITA ou a FNLA, que governa o país no período pós-independência, tendo

o controlo total do aparelho de Estado. O prosseguimento do conflito civil no país fora da capital, Luanda, permite o controlo das estruturas do aparelho de Estado, e o apoio internacional permite, por sua vez, manter intocáveis a capital e o enclave petrolífero de Cabinda. A capacidade do sistema de poder então criado reflectia-se, por outro lado, na subordinação do Estado e suas instituições ao partido (EISA, 2005a).

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foram retomadas e concluídas após aquele acto eleitoral; no reforço do poder do Presidente, que é chefe de Estado e de governo, alcançado nessa revisão constitucional; no processo de preparação das eleições legislativas, em que se destaca a omnipotência do poder totalizante e excludente do MPLA/Governo; nos próprios resultados saídos dessas eleições, que dão uma vitória esmagadora (maioria absoluta) ao MPLA/Governo (graças, sobretudo, à sua posição dominante face à fraqueza das outras forças políticas); ou na não realização das eleições presidenciais previstas para 2009.76

A referida economia socialista que vigorou até 1991 revelar-se-ia insuficiente para responder às necessidades das populações e, sobretudo, pouco eficiente no combate, no meio urbano, ao sistema capitalista-colonial e ao desenvolvimento do «mercado paralelo» dedicado às actividades económicas ilegais, de entre as quais se destacam a especulação, a posse ilegal de moeda estrangeira, o furto ou o contrabando. Essas insuficiências e incapacidades eram tanto mais gravosas quanto o país vivia uma situação de permanente instabilidade político-militar e grandes dificuldades económicas.77 O próprio presidente de Angola e do MPLA, José Eduardo dos Santos, reconhecia, em 1984, por altura das comemorações do nono aniversário da independência, a difícil «situação económica e financeira» em que o país se encontrava, tendo perdido mais de 600 milhões de dólares nos dois anos anteriores, valor equivalente ao dos bens alimentares importados e necessários para o país durante um ano (MPLA-PT, 1986: 68-69). A par do aumento da dívida externa, o país vinha a assistir a uma diminuição drástica da sua capacidade produtiva, o que exigia uma melhoria da gestão dos bens públicos que passasse pela aplicação de um maior controlo das despesas. Entre 1973 e 1985, a diminuição dos valores da produção agrícola e industrial do sector público terá atingido cerca de 40% (Beaudet, 1992: 70). A queda dos preços do petróleo, em 1986, pioraria ainda mais a frágil situação económico-financeira do país (Birmingham, 2002). Recorde-se que nem o aumento de mais de 25% da exportação de petróleo entre 1985 e 1986 impedira uma queda dos rendimentos superior a 60% - petróleo que constitui o pilar do edifício económico e político do MPLA/Governo; as receitas provenientes deste sector representavam, em 1989, 62% das receitas do Estado, equivalentes a 86,6% das receitas de exportação (Beaudet, 1992: 67).

76 Sobre as diversas formas através das quais o MPLA/Governo procura preservar a sua hegemonia política,

cf. Chabal (2002), Birmingham (2002), Mabeko-Tali (2001, 2005), Messiant (1994a, 1994b, 1995, 1999, 2002, 2004 e 2006), Vidal e Andrade (orgs.) (2006), Schubert (2013) e Gomes (2009, 2014).

77 Estas insuficiências e incapacidades reflectem as fragilidades do próprio Estado. A dinâmica das redes

clientelares de que o sistema de poder necessita é suficientemente forte para resistir e inviabilizar as medidas políticas e económicas avançadas ou enunciadas pelo MPLA/Governo.

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A crise económica que então se vivia era de cariz estrutural e estaria a pôr em causa o próprio regime político de gestão do Estado, tanto mais que as desigualdades existentes entre um pequeno grupo de pessoas (incluindo aquelas pertencentes às classes dirigentes) e a grande massa das populações eram grandes, contrariando os princípios de igualdade social, económica ou política, associados ao ideário do socialismo. Por conseguinte, parecia claro que o sistema de economia planificada centralmente não estava a produzir resultados satisfatórios e os próprios grupos ou classes emergentes, incluindo os dirigentes, não estavam a ver os seus interesses e necessidades satisfeitos.78 É nesse contexto de crise

que se dá a reorientação da política económica a partir de 1985, sendo certo, no entanto, que essa mudança rumo a uma economia de mercado proceder-se-ia de forma lenta, através da introdução de alguns princípios da economia de mercado, sem recusar totalmente ou de forma explícita, pelo menos num primeiro momento, os princípios socialistas da economia planificada centralmente.79

É face, com efeito, ao insucesso da economia socialista, planificada centralmente, para responder às necessidades das populações e à crise entretanto instalada que o MPLA/Governo adoptou vários programas de reformas económicas e sociais. O Plano de Emergência aprovado em 1982 preconizava a concentração das actividades do Estado em áreas-chave da economia e da dinamização de actividades privadas noutras áreas. O programa de Saneamento Económico e Financeiro (SEF) discutido com FMI, BM e doadores, aprovado em 1987, visava a moralização do regime económico e a sua adequação à realidade, despenalizando muitas das práticas informais da economia e permitindo, por um lado, alargar a iniciativa privada a sectores até então reservados ao domínio público e, por outro lado, proporcionar liberdades e garantias de direito económico a privados.80 A Lei das Actividades Económicas de 1988 - Lei nº 10/88, de 02

de Julho - tornou possível o exercício de actividades económicas em áreas não consideradas «reservas do Estado», dando suporte legal às actividades económicas privadas praticadas até então de modo ilegal ou informal, e restringiu as áreas económicas reservadas à iniciativa económica do Estado. Seguiram-se o Programa de Recuperação

78 Sobre a associação da reorientação da política económica à chegada da crise ao poder e às classes

privilegiadas, cf. Birmingham (2002) e Hodges (2003).

79 A reforma mais profunda do sistema económico inicia-se em 1990. Sobre a aceitação tardia e explícita

pelas autoridades de Luanda dos princípios da economia de mercado, cf. Beaudet (1992), Ennes Ferreira (1993) e MPLA (1997).

80 O SEF de 1987 é lançado após a queda dos preços do petróleo em 1986, que acaba por convencer as

autoridades de Luanda sobre a impossibilidade de pagar a dívida externa. Os encargos com o serviço da dívida externa concentrados para o período de 1989-91 são decisivos para a implementação do SEF, mas outros condicionalismos, como a guerra e a referida queda do preço de petróleo, terão contribuído, igualmente, para tal (Ennes Ferreira, 1993: 13). Sobre as potencialidades e fraquezas do SEF, cf., ainda, Beaudet (1992) e Marques Guedes et al. (2003).

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Económica (PRE) para o biénio 1989-1990, o Programa de Acção do Governo (PAG) aprovado em 1990 - que acelera a liberalização económica -, o Programa de Emergência do Governo, de 1993, e o Programa Económico e Social (PES) para 1994, que levaram à promulgação de leis específicas que contribuiriam para a alteração do quadro jurídico económico.81 Foi, num ambiente favorável à livre iniciativa que se procedeu à revisão da Constituição Económica, em 1987 e 1988, se aprovou a Lei de Revisão Constitucional nº 12/91, de 6 de Maio, e se ampliaram o conteúdo e a protecção do princípio de liberdade de iniciativa económica, elementos fundamentais da economia de mercado (Jorge, 1998: 72).

O PES para 1994 procurava dar continuidade às reformas económicas anteriores num quadro económico e social desfavorável, muito condicionado pela situação de instabilidade político-militar, pelas graves distorções económicas internas e pela fraqueza dos recursos financeiros. Recorde-se que, no ano de 1993 - na sequência do conflito político-militar que provocara a paralisação do aparelho produtivo, a destruição das infra-estruturas económicas e sociais, o impedimento de circulação de pessoas e bens, e o atraso na implementação das reformas económicas - o PIB baixara cerca de 23% relativamente a 1992; os índices da pobreza absoluta (50,5%) e relativa (32%), o ritmo mensal de inflação (28%), o desemprego (24%) (sobretudo entre jovens, mulheres e deslocados) e o défice fiscal (28% do PIB) aumentaram; o nível das reservas externas do país (180%) caíra; a população do país atingira os 10,5 milhões de habitantes, dos quais 45% tinham menos de 15 anos, 55% tinham menos de 20 anos e apenas 5% tinham 60 ou mais anos; a população urbana totalizara cerca de 40% e a população feminina suplantara a masculina numa proporção de 97 homens para 100 mulheres (Governo da República Popular de Angola, 1994: 3).82 Além da redução do desemprego, os objectivos do PES 94

incluíam o combate à pobreza, a melhoria do acesso à saúde pública e aos cuidados primários de saúde, e a melhoria das condições de prestação dos serviços de educação e ensino (Governo da República Popular de Angola, 1994: 4).

81 Cf. Lei nº 10/88, de 2 de Julho, Lei das Actividades Económicas, aprovada no âmbito do SEF; Lei nº

12-C/92, de 28 de Agosto, Lei da Concessão de Titularidade e Aproveitamento da Terra, aprovada no âmbito do PAG (1990); Lei nº 10/94, de 31 de Agosto, Lei das Privatizações; Lei nº 13/94, de 2 de Setembro, Lei da Delimitação de Sectores de Actividades Económicas; e Lei nº 15/94, de 23 de Setembro, Lei do Investimento Estrangeiro - estas três últimas aprovadas no quadro do PES (1994). Até 2001 tinham sido lançados outros programas económicos que não deixaram de ter problemas: PES 1995-96, Programa Nova Vida (1996), Programa de Estabilização Económica de Médio Prazo 1998-2000, PES 2001. Análises comparadas desses programas económicos encontram-se em Hodges (2003).

82 A situação de crise económica no ano de 1992 é marcada pelo ambiente político que então se vivia e que

condicionou «[…] a adopção de medidas urgentes de carácter económico e de repercussões sociais. Assim, com eleições marcadas para Setembro de 1992, o governo foi deixando a economia andar, com alguma dose de liberalização económica, o que possibilitou o aparecimento de inúmeros candidatos a potenciais empresários, nomeadamente na área do comércio e serviços e, em menor número, na indústria e na agricultura. Neste período, deve ser assinalado o lançamento de um vasto programa de importações visando, essencialmente, os produtos de consumo corrente e os bens intermédios» (Ennes Ferreira, 1993: 15).

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A aplicação do PES pressupunha, no entanto, a redução da despesa nacional, o que implicaria a diminuição do nível de rendimento real com consequências nefastas, sobretudo para as populações mais desfavorecidas, em especial as mulheres. Importa notar, aliás, que esse processo de liberalização económica, associado a uma acentuada crise social, política e económica, está na origem da deterioração do abastecimento alimentar. Como notava Duarte de Carvalho,

«O Estado, pondo de parte a sua política monopolista e a sua vocação providencialista, retirou a protecção que exercia sobre os produtos chamados de primeira necessidade e abandonou ao privado as funções do comércio, com efeitos imediatos sobre os preços e os circuitos […] Nos meios urbanos a manifestação mais evidente desta nova face da crise talvez seja a amplitude crescente que assume o abismo entre o custo dos produtos e o poder de compra do consumidor» (Duarte de Carvalho, 1995: 221 e 222).

Neste contexto, restava às populações encontrar por si próprias as formas de superar as dificuldades com que se defrontavam.

A integração do sector informal da economia no sector formal estaria a resultar numa perda do escasso poder de compra da maioria da população que vivia dos rendimentos obtidos naquele sector. A economia informal continuaria a revelar-se, ainda assim, uma ferramenta adequada às necessidades das populações mais vulneráveis. A este propósito, o mesmo Duarte de Carvalho ressaltava a capacidade inventiva e de resistência das populações na busca de soluções para os seus problemas:

«[…] revelou o nosso povo, a nossa substância social, uma espantosa e adequada capacidade de urdir as suas próprias respostas, de dar expressão àquilo a que poderíamos chamar o talento da criatividade popular. Inventou, adoptou ou pôs em exercício os dispositivos, os mecanismos, as estratégias e as alternativas capazes de viabilizar o universo das trocas perante a inviabilidade oficialmente instaurada» (Duarte de Carvalho, 1992: 35).

Na verdade, não sendo exclusiva desse período de transição, a economia informal tem tido um papel especial na subsistência das populações, mormente através do controlo do desemprego. As unidades domésticas são responsáveis por grande parte da produção necessária à economia de mercado, desempenhando a mulher, neste contexto, um papel importante (Grassi, 1997; Jornal de Angola, 2005a). Englobando diversas actividades produtivas, laborais e de serviços, a eficiência competitiva do sector não-oficial da economia urbana tendia a ultrapassar o fraco desempenho económico do sector estatal (Van der Winden, 1996; Sousa, 1997; Grassi, 1997; Rodrigues, 2003, 2006; e Lopes, 2007, 2011).

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De acordo com Hodges (2003: 41 e 42), esse processo de liberalização económica mais não era que um capitalismo selvagem, surgido na sequência do desmoronamento do antigo sistema socialista, um capitalismo distorcido pelo clientelismo que permitia o enriquecimento de uma «pequena» elite politicamente bem colocada, a par da pobreza de uma grande massa de população. Esse processo de liberalização económica, tal como ia sendo materializado, favorecia mais as práticas de expedientes do que as actividades produtivas associadas a um espírito empreendedor, com os operadores económicos a preferirem actuar no sector do comércio, devido às possibilidades de obtenção de lucro imediato, à não-necessidade de um grande investimento inicial, à propensão elevada para o consumo ou ao baixo risco associado. As privatizações do sector público do Estado facultadas pelo processo de liberalização económica83 permitiram, por exemplo, que grande parte das pequenas empresas do Estado fosse vendida, isto é, passasse para a posse de

«[…] alguns políticos, militares e altos funcionários […] sob a forma de favores políticos, muitas vezes apenas por montantes simbólicos ou inteiramente de graça […] Até finais de 1996, o número de empresas estatais tinha diminuído de 545 para 254. Ao todo, 202 empresas já tinham sido privatizadas, 73 tinham sido extintas e 16 tinham passado a ter uma gestão privada através de contratos de gestão» (Hodges, 2003: 181).

Este é um dos mecanismos de apropriação ou privatização dos bens públicos, levado a cabo, segundo Messiant, «[…] sob a orientação e sob o domínio de quem controla a renda petrolífera e o poder do Estado - o presidente da República» (2006: 146). Neste sentido, o Estado predador encontra na liberalização económica um dos seus grandes sustentáculos, um meio de reprodução da dinâmica clientelar que suporta o poder e o regime.84