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SOCIOPOLÍTICAS E EDUCATIVAS

II.1 Transições económicas e sociopolíticas

II.1.2 Transições sociopolíticas

II.1.2.2 Os conflitos civis

As mudanças políticas não foram igualmente favorecidas pelas guerras civis que o país viveu ao longo de quase três décadas. Mais duras de todas, as guerras que ocorreram após as primeiras eleições multipartidárias de 1992 comprometeriam seriamente todo o processo de transição então iniciado.

Não obstante a ONU ter declarado «de forma geral livres e justas» (Messiant, 1994a: 224) as primeiras eleições multipartidárias de 29 e 30 de Setembro de 1992 - que ditaram a vitória por maioria absoluta do MPLA no Parlamento (53,74% dos votos) e a eleição da UNITA como a segunda força política mais votada (34,09%), e a obtenção do maior número de votos, nas eleições presidenciais, de José Eduardo dos Santos, presidente do MPLA e de Angola (49,56%) do que Jonas Savimbi, presidente da UNITA (40,07%), mas não o suficiente para dar vitória ao chefe máximo do MPLA na primeira volta (Messiant, 1994a: 199)95 -, a UNITA insistia na denúncia de fraude «maciça e generalizada» (Messiant, 1994a: 223) nos actos eleitorais e na exigência da sua anulação pura e simples, retirando os seus comandantes do exército comum96 e montando a sua máquina de guerra para apoiar as suas exigências. O MPLA/Governo, legitimado pelos resultados das eleições e com o apoio da comunidade internacional, exigia, por seu turno, o «retorno à letra e ao espírito dos Acordos de Bicesse» (Messiant, 1994a: 225), de 1991, isto é, a aceitação pura e simples dos resultados das eleições por parte da UNITA e sua desmilitarização incondicional. A abertura do regime político iniciada seria, assim, largamente restringida, tendo na sua base o pretexto e justificação do retomar do conflito.97

A solução militar prevaleceria sobre a solução política. Alegando uma tentativa de golpe de Estado militar da UNITA, o MPLA/Governo ataca membros daquela organização, em Luanda, de 30 de Outubro e 1 de Novembro de 1992.98 A UNITA

95 A derrota da UNITA foi uma surpresa e ficaria a dever-se, fundamentalmente, ao demérito da própria,

associado aos seus comportamentos e gestos que fizeram com que a população visse no partido um grande risco do regresso da guerra civil e no MPLA uma organização potencialmente mais capaz de garantir a estabilidade (Chabal, 2002). O MPLA teria beneficiado, por sua vez, das condições do processo que conduziram às eleições que lhe permitiriam ter um controlo quase total sobre o aparelho de Estado e os recursos financeiros.

96 Trata-se do exército nacional, as Forças Armadas Angolanas (FAA), composto por elementos provenientes

das forças militares do Governo/MPLA (Forças Armadas Populares de Libertação de Angola - FAPLA) e da UNITA (Forças Armadas de Libertação de Angola - FALA).

97 Sobre este retrocesso no processo de democratização, cf., entre outros, Vieira Lopes (2004), Messiant

(2006) e Gomes (2009).

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acabaria por ser expulsa da capital. Milhares de pessoas foram mortas, incluindo alguns altos dirigentes da UNITA, milhares de outras pessoas conseguiriam fugir e algumas centenas seriam feitas prisioneiras. O líder da UNITA, Savimbi, tinha-se, entretanto, retirado e refugiado no Huambo.

As condições para uma solução política eram quase inexistentes. A UNITA tinha sob seu controlo algumas localidades do país. A situação político-militar deteriorava-se a cada dia, tanto mais que o desenvolvimento dos combates era alimentado pela aquisição de armamento, tanto por parte do MPLA/Governo, como da UNITA. E a ajuda alimentar não chegava a muitos sítios onde era imprescindível. Em meados de 1993, morriam diariamente em Angola, centenas de pessoas devido à guerra, à fome e às doenças; as populações rurais fugiam da guerra para junto dos centros urbanos.99

O prosseguimento da guerra inviabilizou todas as tentativas de negociações entre o MPLA/Governo e a UNITA, sob a égide da ONU, com aqueles dois beligerantes a atribuir a esta organização internacional a responsabilidade pelo não-cumprimento dos Acordos de Bicesse.100 E após o falhanço do Acordo de Abidjan (Costa do Marfim), de 21 de Maio de 1993, a UNITA confirmava a perda de apoio internacional, ao rejeitar o Acordo, enquanto o MPLA o aceitava (Paulo Guerra, 2002: 232). Os Estados Unidos da América (EUA) reconhecem o governo de Luanda, a África do Sul reforça a relação diplomática em Luanda, a Troika recomenda a anulação da Cláusula Triplo Zero estabelecida em Bicesse (que proibia os partidos de se rearmarem e outros países de lhes fornecerem armamento), apoiando, assim, o direito do MPLA/Governo recorrer ao uso das armas para se defender, em legítima defesa. A comunidade internacional acabaria por confirmar o resultado das eleições e responsabilizar a UNITA pelo reinício do conflito armado, e o embargo sobre armas e petróleo imposto pela ONU chegaria em Setembro de 1993.

99 A situação que se viveu em Angola após as eleições de 1992 não era novidade para os angolanos, que, pelo

menos desde a década de 60, conviviam em permanência com a situação de instabilidade e de guerra. Angola experimentou três «grandes guerras». A primeira refere-se à guerra de libertação, iniciada em 4 de Fevereiro de 1961 e que decorreu até 25 de Abril de 1974. A segunda guerra de libertação conhece duas etapas: uma que começa com a independência nacional, a 11 de Novembro de 1975, e dura até à independência da Namíbia, a 31 de Maio de 1991 (nesse período dá-se a internacionalização do conflito, em que o Governo de Luanda luta contra a UNITA, a FNLA e os invasores externos zairenses e sul africanos); outra etapa em que os combates são travados essencialmente entre as Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA), forças militares do Governo MPLA, e as Forças Armadas de Libertação de Angola (FALA), forças militares da UNITA. Finalmente, a terceira guerra, a de 1992-2002, é a mais violenta de sempre travada em Angola (Messiant, 1994a; Pezarat Correia, 1996; EISA, 2005b).

100 As tentativas de negociações promovidas pela Representante Especial das Nações Unidas, Margaret Joan

Anstee, falharam devido às recusas da UNITA (26 de Novembro de 1992 no Namibe; 30 de Janeiro e 1 de Março de 1993 em Addis Abeba; 21 de Maio de 1993 em Abidjan) em aceitar os resultados eleitorais, o desarmamento do seu exército e a retirada das zonas ocupadas (Pezarat Correia, 1996).

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Com o apoio da comunidade internacional a escapar-se e alguns revezes no campo de batalha a sucederem-se, a UNITA manifestava, em Novembro de 1993, a sua disponibilidade para aceitar os resultados eleitorais de 1992 e acantonar as suas tropas, o que viria a facilitar negociações posteriores em Lusaka enquanto se desenvolvia a guerra no terreno. Sem resultados positivos das negociações e com as forças militares do MPLA/Governo a somar vantagens nos palcos de guerra, UNITA aceita, em Setembro de 1994, as propostas da ONU e da Troika: quatro cargos de ministros e sete postos de vice-ministros num Governo de Unidade e Reconciliação Nacional (GURN); três cargos de governador de província e seis de embaixador.

Muitos analistas e estudiosos da realidade angolana atribuem a responsabilidade do reinício da crise à comunidade internacional. De acordo com Messiant, a comunidade internacional revelou-se passiva e, por via disso, contribuiu para a «impotência» ou impossibilidade de fazer parar a guerra (Messiant, 1994a: 200 e 201). À escassez de meios e procedimentos que acompanhara a condução internacional do processo angolano juntavam-se a não criação e desenvolvimento de instituições pluralistas - os grupos, as associações e os partidos «não armados» foram colocados fora de todo esse processo - no quadro do processo que deveria culminar nas eleições multipartidárias.101

Esta bipolarização ou confiscação ‘contratual’ da democracia pluralista até às eleições, como lhe chama Messiant (1994a), era do interesse da UNITA e do MPLA/Governo, num cenário em que as preocupações últimas da Troika, da ONU e dos EUA eram a realização das eleições, a todo o custo. Assim, ter-se-iam sacrificado condições políticas e militares essenciais que deveriam transformar o contexto do acto eleitoral positivamente, mas que, entretanto, revelar-se-iam responsáveis pela crise pós-eleição.

Os efeitos negativos destas guerras foram numerosos. A destruição do país reflecte-se no colapso dos serviços estatais da educação, da saúde e da administração central e local.102 Os salários baixos e as situações de salários em atraso obrigavam muitos

101 Uma análise das «perspectivas angolanas» - igrejas históricas (protestantes e católicas), media privados,

organizações da sociedade civil, organizações das comunidades de base, autoridades tradicionais - sobre questões de paz e conflito a partir dos Acordos de Bicesse, em Maio de 1991, até à morte de Jonas Savimbi, em Fevereiro de 2002, encontra-se em Comerford (2005: xix). Sobre os desafios da paz e seus efeitos em Angola, cf., igualmente, Ministério das Finanças, Direcção Nacional do Tesouro, Gestão Fiscal (2004).

102 O êxodo rural provocado pelas guerras contribui fortemente para tornar o país dependente das ajudas

internacionais devido ao acentuado declínio na produção, sobretudo no sector agrícola que, até meados da década de 70, chegou a empregar pelo menos dois terços da população activa (Duarte de Carvalho, 1995: 221 e 222). Podem identificar-se três ondas de migração em Angola, direccionadas, sobretudo, para Luanda: a primeira, depois de 1974/75, quando o MPLA estabeleceu o seu poder; a segunda, depois de 1985; e a terceira, chegada depois de 500 dias de paz em 1991 e 1992 (Van der Winden, 1996: 71 e 74). Sobre os

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profissionais, designadamente médicos e professores, a acumularem vários empregos (públicos e privados), sendo que as condições laborais desses profissionais no sector público configuravam, em muitas ocasiões, uma situação de abandono do posto de trabalho (Brittain, 1999: 147). Para alguns profissionais (e famílias) as estratégias de sobrevivência passavam pela formação no estrangeiro, na qualidade de bolseiros. Para as famílias ou indivíduos pertencentes a grupos sociais mais desfavorecidos, que não usufruíam dessas oportunidades, mormente aqueles que não tinham acesso a um trabalho assalariado, as suas estratégias de sobrevivência passariam por outros mecanismos, mas, sobretudo, pelo recurso ao comércio no mercado informal.103

A degradação das condições de vida da esmagadora maioria da população não estava desligada de uma realidade económica e sociopolítica profundamente desigualitária, em que o fenómeno da corrupção tinha um lugar de destaque. A este propósito, Félix Miranda escrevia que

«[…] o petróleo, o principal recurso do comércio externo, dava um lucro de 10 milhões de dólares por dia, mas muito deste dinheiro nunca apareceu no orçamento nacional, indo em vez disso directamente para as contas em bancos estrangeiros. Uma taxa de câmbio dupla - na taxa oficial, acessível aos favorecidos pelo regime, o dólar estava a 80000 quanzas, e na taxa não-oficial, para todos os outros, estava a 240000 quanzas - era um dos motores da corrupção. Faziam-se fortunas comprando a uma taxa e vendendo à outra. A taxa não-oficial do dólar crescia de dia para dia, pois os homens de negócios pagavam valores superiores a ela para cheques em dólares depositados fora do país. A inflação subiu para uma taxa anual estimada de 3000 por cento. Nas lojas de câmbios legais, os dólares cambiados de manhã não tinham o mesmo valor na tarde do mesmo dia. Num período de duas semanas em Maio de 1996, a taxa subiu de 150000 por dólar para 240000» (Miranda, 2000: 159).

Os milhões de indivíduos que viviam em condições sub-humanas em torno de Luanda contrastavam com o «luxo ostensivo» de algumas pessoas. Referindo-se a advogados e economistas, Victoria Brittain observava que estes profissionais,

efeitos particularmente destruidores das guerras em Angola, a partir da independência (população deslocada, elevadas taxas de urbanização, destruição ou abandono de infra-estruturas, redução drástica da economia para níveis inferiores aos do início da década de 70), cf. Hodges (2003).

103 Um estudo do Programa Alimentar Mundial (PAM) sobre a vulnerabilidade em áreas rurais referia-se à

redução do número ou qualidade das refeições diárias, ao trabalho ocasional, à produção do carvão, à caça ou recolha de frutos silvestres, à venda de «meios de produção» (PAM, 2004: 15 e 16). Uma abordagem de como os angolanos vivem a pobreza nos musseques, sobrevivendo na luta contra a inflação, a carência de alimentação, de água e de energia eléctrica, e ajudando-se uns aos outros na situação de crise, encontra-se em Van der Winden (1996). Sobre a situação da pobreza em Angola, em geral, cf. Hodges (2003), Andrade (2004) e PNUD/Angola (2005).

85 «[…] que em meados dos anos 80 continuavam a ser a espinha dorsal de um partido que se orgulhava de uma história de disciplina, debate e consenso, tinham, nos meados dos anos 90, mudado as suas prioridades para a vida privada: os seus próprios negócios, pôr os filhos em escolas na África do Sul ou em Portugal» (Brittain, 1999: 167).

Ao longo dos anos, a guerra civil provocou um número elevado de vítimas, entre as quais as crianças-soldados, os deslocados, os refugiados, os órfãos, as viúvas e os mutilados, constituindo uma elevada proporção de população excluída.104 Ao nível socioeconómico, as consequências da guerra civil traduzem-se em processos de desintegração social, consubstanciados em elevados níveis de desemprego, crescimento de bairros pobres clandestinos, elevados índices de criminalidade e insegurança, agravados pela proliferação de armas na posse dos civis.

As situações de crise, associadas às quase três décadas de militarização e experiências de violência e destruição, bem como aos processos de liberalização económica, terão provocado a própria mudança de valores, expressa, por exemplo, no enfraquecimento do sentido de solidariedade entre as pessoas. Félix Miranda apontava a insensibilidade e a indiferença como elementos caracterizadores do povo angolano vítima das guerras e das dificuldades económicas, «fatalidades» que, segundo ele, teriam capturado esse povo, pelo que «a conquista da paz» se impunha como uma urgência (Miranda, 2000: 141 e 142). Como escrevia a esse respeito, «devido a tanto sofrimento, o desespero parece ter ganho, e o espírito de solidariedade e de humanidade parecem ter perdido. Ninguém ajuda ninguém, e a desgraça de uns representa, na prática e no quotidiano, a sorte de outros» (Miranda, 2000: 141 e 142).105 Uma depreciação acentuada dos valores estaria, com efeito, a decorrer. Segundo um estudo de Carvalho (2002) realizado em Luanda, junto dos alunos do Ensino Médio, nem uma instituição como a escola, que se dedica ao ensino e educação, escaparia à diminuição da sua capacidade de influenciar a interiorização de valores positivos nos jovens;106 «a necessidade de

104 Não obstante as tentativas do governo de responder às preocupações e reivindicações da sociedade civil

no período pós-conflito, o caminho da democracia continuava a ser difícil e a enfrentar muitas dificuldades ao nível de direitos políticos e cívicos (McMillan, 2005: 14). O Ministério da Família e Promoção da Mulher e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados implementaram um projecto de promoção da cidadania a partir de 2005, visando dotar as mulheres deslocadas e refugiadas de conhecimentos que lhes permitissem ter acesso à informação sobre os direitos civis e políticos (Development Workshop, 2006a: 15). Sobre a exclusão social em Angola, cf. Carvalho (2002, 2007, 2008).

105 Atente-se ao que Vitoria Brittain escrevia no mesmo sentido: «uma enfermeira deixaria morrer uma

criança com meningite, ficando com o medicamento que lhe devia ter dado para vender no mercado, de modo a poder alimentar o seu próprio filho, pois o que o seu salário podia comprar o faria morrer de fome. Uma criança enviada por um médico para uma transfusão sanguínea podia ser recusada pela enfermeira que administrava as transfusões porque a criança ou a sua família não tinham dinheiro para a subornar» (Brittain, 1999: 160).

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subsistência e os exemplos práticos negativos do domínio público ‘falam mais alto’ que a moral», escrevia este autor (Carvalho, 2002: 151). O elevado índice de corrupção nos órgãos de administração do Estado e os baixos salários, a par da hiperinflação, estariam a contribuir para uma apreciação muito baixa de valores como a «nobreza» e a «confiança» (Carvalho, 2002: 151).