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Parte I ALGUMAS REFERÊNCIAS TEÓRICAS DE PARTIDA

I. 1.1.2.2 Competição política

I.2.1 Complexidade e multifuncionalidade da educação

I.2.1.1 Educação e desenvolvimento – a complexidade de uma relação

Com as independências políticas, os novos Estados africanos elegeram a educação/ensino como um dos instrumentos principais para concretizar os seus projectos de desenvolvimento, isto é, a transformação profunda das sociedades aos mais diversos níveis, mormente económico, social e cultural. O objectivo último destes projectos era

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eliminar a exploração do «homem pelo homem», bem como promover a igualdade e a participação das populações nos assuntos que lhes dizem respeito.50

Fundamentam estas potencialidades (ou crenças) da educação diversas perspectivas teóricas, nomeadamente as teorias da modernização e da dependência.51 As primeiras sustentam a existência de uma relação positiva entre ensino e crescimento económico, sendo que o ensino viabilizaria a conversão do crescimento económico em desenvolvimento social. O ensino tinha, pois, como função remover os obstáculos que entravavam o arranque económico dos países subdesenvolvidos e atenuar a insuficiência dos investimentos materiais por um capital humano importante, com a ajuda da assistência internacional. Esta abordagem desenvolvimentista encara o subdesenvolvimento como o resultado de factores socioculturais que se opõem ao desenvolvimento e que caberia ao ensino/educação eliminar. Não é certo, no entanto, que entre educação e desenvolvimento se verifique essa relação directa, linear. A existir essa relação, diversas questões importantes se colocam como, por exemplo, até que ponto os sistemas modernos de ensino contribuem de forma decisiva e automática para o crescimento, baseado no pressuposto de que essa contribuição é tanto maior quanto maior for a sua ligação a um planeamento da mão-de-obra; até que ponto se verifica uma relação automática entre crescimento económico e desenvolvimento nacional, sendo o primeiro condição indispensável do segundo; até que ponto as condições prevalecentes nas sociedades ditas subdesenvolvidas constituem um obstáculo à modernização, mas passível de ser ultrapassado através de uma escolha racional; ou até que ponto o desenvolvimento (crescimento económico) conduz de forma automática a uma sociedade democrática e liberal (Stoer, 1982).

As teorias da dependência, por seu turno, apreendem a educação como um instrumento de penetração e exploração capitalista ocidental nas sociedades pré-capitalistas ou subdesenvolvidas, operando contra o desenvolvimento e a independência económica destes países, e como um factor da dependência tecnológica e da manutenção no subdesenvolvimento dos mesmos. É neste quadro que a educação é duramente criticada, críticas que vão desde a defesa da sua supressão pura e simples até às modificações radicais no que se refere a uma pedagogia nova e libertadora (Stoer, 1982). Surgidas numa conjuntura específica da crise mundial da educação e do desenvolvimento dos finais dos anos 60 e inícios de 70, essas críticas à educação dirigiram-se, fundamentalmente, aos maus resultados decorrentes da expansão do ensino na primeira década da independência e

50 Para uma análise dos fundamentos da relação educação-desenvolvimento, cf. Arroteia (2008).

51 Uma síntese das teorias da modernização e da dependência encontra-se em Correia (2007b). Para uma

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aos seus efeitos perversos, como sejam a transformação das populações rurais em citadinas e dos homens livres em desempregados desenraizados. Semelhantes resultados, além de porem em causa a relação desenvolvimento/educação, sublinhavam a disfuncionalidade dos sistemas escolares herdados do colonialismo, o que levantava questões prementes, tais como a racionalidade desses sistemas pós-independências; a transformação da educação numa força de mudança consciente e activa; a desestruturação de um sistema económico fundado na dependência, exploração e desigualdade; ou a projecção de um modelo económico e social que permitisse quebrar os laços com o sistema dominante e impulsionar uma nova pedagogia libertadora.

Ao contrário do que as teorias da modernização e da dependência prevêem, não existe uma relação simples e estável entre educação e desenvolvimento. No desenvolvimento intervêm vários factores, sendo a educação apenas um deles. Educação e desenvolvimento referem-se, pois, a processos complexos e, por vezes, contraditórios, cujas diferentes dimensões não são, necessariamente, coincidentes, nem evoluem ao mesmo ritmo, podendo a educação revelar-se tanto um factor de desenvolvimento como um obstáculo ao mesmo.52 Como refere Le Thanh Khôi (1990), a educação é factor de produção na medida em que contribui para a divulgação de conhecimentos e de atitudes favoráveis à produção; para o melhoramento da qualificação da mão-de-obra e, em consequência, da produtividade; para a formação das diferentes categorias de quadros e de trabalhadores; para a educação dos consumidores, a fim de poderem exercer escolhas racionais entre as diversas ofertas; e para a preparação no âmbito da investigação e da inovação, com vista a uma melhor resolução dos problemas de desenvolvimento. Do mesmo modo, a educação é um entrave à produção através da transformação de atitudes desfavoráveis à produção (desprezo do trabalho manual, da agricultura, etc.); da difusão de um saber livresco, sem ligação com a vida real e que pode levar à formação de «desempregados» diplomados; da criação da eventual falta de pessoal qualificado; do excessivo custo do ensino que reduz as possibilidades de investimentos produtivos; ou da ajuda internacional, quando transmite modelos culturais inadaptados, impondo encargos correntes e contribuindo para o êxodo dos cérebros (Lê Thanh Khôi, 1990).

As teorias da modernização e da dependência têm em comum a referência pragmática (Tibúrcio, 1979) que encara a educação, não como um processo com significado próprio, mas como um meio de preparar os jovens para os comportamentos

52 Lê Thanh Khôi (1990) distingue quatro dimensões do desenvolvimento (económica, social, política e

cultural), três formas de educação (formal, não-formal, e informal ou difusa) e outras tantas funções (cultural, social, ou sociopolítica e económica).

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sociais e profissionais futuros. Uma perspectiva que apresenta a possibilidade de uma compreensão mais cabal da relação entre desenvolvimento e educação é a «abordagem histórica», que tem na sua base o pressuposto segundo o qual a natureza das relações entre esses dois elementos só pode ser entendida no quadro da evolução histórica do modo de produção capitalista e do papel nele desempenhado pela educação (Tibúrcio, 1979). Trata-se de reconhecer que entre o desenvolvimento industrial e o desenvolvimento da educação se verificou (e se verifica) uma grande correlação, a saber: que o desenvolvimento industrial permitiu o aumento da escolaridade obrigatória, o combate ao analfabetismo, o crescimento do ensino secundário e a rápida expansão do ensino superior, assim como o desenvolvimento da educação viabilizou a produção de capacidades cognitivas gerais e algumas capacidades profissionais específicas, a produção de comportamentos, hábitos e valores, a atribuição de graus de competência e socialização diferentes para o processo produtivo (segundo origens de classe, sexo e etnia), e incrementou o papel ideológico na legitimação de certo tipo de mobilidade social, entre outros.

As vantagens desta perspectiva dialéctica da relação entre educação e economia traduzem-se, entre outros, na possibilidade de evitar cair em análises deterministas, associadas às teorias da modernização e da dependência - o que permite corroborar a insuficiência dos argumentos que estabelecem uma ligação directa entre a educação e o desenvolvimento para explicar a realidade -, e no reconhecimento de que a educação está sujeita a influências político-ideológicas diversas53 e/ou de outro tipo.54

A abordagem pragmática, associada às teorias da modernização e da dependência, e a abordagem histórica ou dialéctica da relação desenvolvimento/educação reportam-se, respectivamente, a duas tradições teóricas, a saber: as teorias funcionalistas e as teorias do conflito.55 Aquelas preconizam um consenso obtido através das instituições e a existência

de uma cultura comum em cada formação social, considerando a educação enquanto uma agência de inculcação de valores comuns e de transmissão de aptidões técnicas exigidas pela economia. A educação visaria, assim, melhorar a eficiência produtiva e modificar os padrões de consumo das sociedades rurais, através da introdução de uma nova

53 No seu trabalho sobre a escola primária salazarista, no qual privilegia a problemática específica da

influência dos factores políticos na educação, Mónica confirma estas hipóteses, demonstrando como o Estado Novo procurou utilizar o sistema escolar para «formar» as crianças, formar as «consciências» (Mónica, 1978: 344-349).

54 Debruçando-se sobre as articulações que se estabelecem entre as dimensões burocráticas e políticas na

universidade púbica de Angola - Universidade Agostinho Neto (UAN) -, Silva (2004) demonstra como as primeiras resistem e sobrepõem-se às segundas no decurso das transições socioeconómicas e políticas.

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racionalidade produtiva. Ao contrário das teorias funcionalistas, as teorias do conflito ressaltam o carácter antagónico de sociedade e defendem o poder enquanto a base da estabilidade social. As teorias do conflito apresentam-se como um instrumento de análise particularmente apropriado para explicar a dinâmica dos sistemas educativos pós-coloniais em África, permitindo, designadamente, apreender os valores, os hábitos e as crenças transmitidas na escola enquanto partes de uma ideologia dominante, reflexo do poder das classes dominantes.