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SOCIOPOLÍTICAS E EDUCATIVAS

II.1 Transições económicas e sociopolíticas

II.1.2 Transições sociopolíticas

II.1.2.1 As fraquezas da sociedade civil

À semelhança das transições económicas, as transições sociopolíticas decorrem com grandes dificuldades, devido, sobretudo, à diversidade e complexidade dos problemas que estão nas suas origens, à fraqueza da sociedade civil e aos conflitos civis. Ao nível interno, os graves problemas - embora não estando desligados, é certo, dos condicionalismos externos - ampliam a situação de crise que o país vivia nos finais da

83 Cf. Lei nº 10/88, de 02 de Julho, Lei das Actividades Económicas e Lei nº 9/91, de 20 Abril, Lei das

empresas estatais.

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década de 80 do século passado.85 As consequências de uma guerra civil, a crise económica, a expansão dos fenómenos da corrupção, a degradação dos serviços básicos e públicos (saúde, educação) ou as restrições de liberdade são problemas que «desgastam as bases de apoio ao regime» e que tornam as alterações das orientações políticas (e também económicas), como se viu, inadiáveis (Messiant, 1994b: 178).

Todavia, as mudanças políticas em Angola surgem, igualmente, associadas a acontecimentos externos, como a queda da ex-União Soviética e do comunismo na Europa de Leste, e os interesses estrangeiros em Angola, ambos elementos com especiais repercussões, de resto, no desenvolvimento do conflito civil. Aquele primeiro elemento representa a perda da mais importante fonte de apoio e legitimidade do regime político de inspiração marxista-leninista de partido único, tanto mais que a própria comunidade internacional haveria de modificar a forma como olhava e se relacionava com o conflito angolano, um dos sustentáculos do próprio regime. O MPLA/Governo, protagonista do regime político, perderia nesse contexto o apoio que tinha do Ocidente. Recorde-se, na circunstância, que em 1990, altura em que o MPLA/Governo abandonava a economia planificada centralmente e adoptava a orientação de uma economia de mercado, se iniciavam as negociações que haveriam de conduzir aos Acordos de paz de Bicesse entre MPLA/Governo e UNITA, sob os auspícios da ONU e da Troika composta por Portugal, Rússia e EUA. Ora, os Acordos de Bicesse, assinados a 31 de Maio de 1991, preconizavam que a UNITA reconhecesse a legitimidade do governo do MPLA enquanto governo de transição, ao mesmo tempo que exigiam a este último que procedesse à abertura do sistema político a um regime multipartidário; os dois partidos deveriam, igualmente, chegar a um acordo sobre uma nova Constituição, a reunião das suas forças armadas num exército nacional e um calendário sobre as eleições multipartidárias que deveriam ocorrer.86

Desenvolvimentos ulteriores comprovaram que muito do que estava estabelecido nos Acordos não foi concretizado, mormente o desarmamento, a desmobilização e reintegração das forças militares ligadas ao MPLA/Governo e à UNITA no exército nacional; que os Acordos continham muitas fragilidades que não deixariam de produzir

85 Sobre a importância dos problemas internos no processo de transição política, cf. Kaure (1999) e Bratton e

Van de Walle (2002). Sobre a pertinência da componente económica em particular, cf. Ennes Ferreira (1993).

86 A assinatura dos Acordos de Paz de Bicesse teve lugar no Estoril, Portugal. Na cerimónia, que contou com

a presença de Jonas Savimbi e de José Eduardo dos Santos, estiveram presentes altos dignitários da comunidade internacional. Destacavam-se, de entre eles, o Secretário de Estado Norte-americano e o Ministro de Negócios Estrangeiros da ex-URSS (países membros do Conselho de Segurança da ONU), o Ministro de Negócios Estrangeiros de Portugal, os Secretários Gerais da ONU e da OUA e o chefe da Igreja Católica angolana (o Cardeal). Os Acordos de Bicesse previam, entre outros, um cessar-fogo, o reconhecimento pela UNITA do Presidente José Eduardo dos Santos e do Governo de Angola até às eleições gerais, a criação das Forças Armadas Angolanas (FAA) e a aceitação do princípio da extensão da administração governamental a todo o território (Pezarat Correia, 1996; Messiant, 2004).

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efeitos nefastos, designadamente a menorização do papel da ONU, reduzido à fiscalização do processo, com consequências, por exemplo, na fraqueza dos recursos disponibilizados face às necessidades;87 que o calendário/tempo previsto para o processo de desmilitarização e realização das eleições era extremamente reduzido (dezasseis meses); ou que todo o processo de transição foi reservado aos dois partidos beligerantes, não tendo sido prevista a participação dos actores da sociedade civil, não armados, nas negociações e implementação dos Acordos.

Ressalta-se, assim, que todo processo de transição democrática decorre numa realidade sociopolítica em que a participação da sociedade civil não é forte, contribuindo para tal tanto factores internos como factores externos. Uma marca dessa componente externa reflecte-se num processo de transição democrática que surge não tanto como resultado de reflexões, debates genuínos sobre as realidades e necessidades específicas do país, mas sim enquanto importação de modelos externos, sem grandes esforços de adaptação à realidade angolana. É nesse contexto que numerosos partidos políticos emergiam sem projectos alternativos, nem credibilidades e lideranças fortes; muitas associações económicas, socioprofissionais e religiosas, e Organizações Não-Governamentais (ONG) que iam surgindo mais não faziam que gravitar à volta dos poderes instituídos (Igrejas, partidos, Estado e organizações estrangeiras), que se apresentavam, frequentemente, como fontes dos seus recursos e das próprias identidades. Esta realidade de debilidade que caracterizava a sociedade civil traduzir-se-ia na «falta de uma visão estratégica em termos de projecto nacional que permit[isse] o delineamento de objectivos de longo alcance […] uma falta de consciência colectiva das instituições quanto ao seu estatuto de contrapoder na sociedade» (Pacheco, 1994: 7).

Um dos factores internos da fraqueza da sociedade civil dizia respeito ao modelo de Estado autoritário, paternalista, inibidor e desencorajador das iniciativas individuais e associativas, adoptado pelo Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) desde os primeiros momentos da independência política.88 Semelhante modelo de actuação do Estado traduziu-se num contexto de desigualdade de direitos e de oportunidades em que as organizações políticas, sociais, culturais, profissionais e outras actuavam relegando para

87 Sobre a responsabilidade da comunidade internacional nesse processo, cf., entre outros, Messiant (1994a,

2004 e 208), Paulo Guerra (2002), Messiant (2004) e MacQueen (2006).

88 Sobre a construção, desenvolvimento e actuação do Estado em Angola, cf., entre outros, Marques da Silva

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um plano de irrelevância as intervenções que tivessem lugar fora da via partidária;89 outrossim, muitas dessas organizações não funcionavam, na maioria das vezes, de forma democrática.90 Além da experiência não democrática que um tal regime proporcionou, a confrontação permanente que MPLA/Governo e UNITA protagonizaram ao longo dos anos, alimentada em situação de instabilidade político-militar,91 consolidou a divisão das populações em «dois grandes blocos» que limitaram sobremaneira a participação política dos cidadãos (Messiant, 1994b: 181, 195). Na sua relação com a sociedade civil, o Estado em Angola adoptara, com efeito, um comportamento de controlo que não deixaria de produzir efeitos importantes. Nesse processo de controlo da sociedade civil, cujo objectivo último é assegurar a sua própria reprodução, o Estado procura diminuir ou neutralizar a autonomia da sociedade civil. Baseada numa lógica clientelar, procura limitar as intervenções desses actores sociais, cooptar muitos deles, através, nomeadamente, de subvenção das organizações e seus dirigentes ou mesmo criação de novas organizações, um gesto que traduz a criação de uma «sociedade civil próxima de si» (Messiant, 2006: 151).92

89 Sobre a dinâmica da sociedade civil em Angola, mormente as suas fraquezas e as dificuldades que

enfrenta, cf., entre outros, Pacheco (1994), Pestana (2003), Amundsen e Abreu (2007), Vidal e Andrade (orgs.) (2008) e Vidal (2013).

90 Relativamente aos partidos políticos, uma necessidade de integração de redes próximos do poder - os

locais de usufruto de certos e importantes benefícios, concretizado através de, entre outros, práticas de corrupção e clientelismo - estaria na base da sua formação e seu funcionamento (Santana, 2006). Esta forma de participação política surge como uma via de mobilidade social ascendente. O modo de funcionamento conforme uma estrutura vertical e num modelo topo-base, com as direcções e os presidentes a desempenharem um grande papel de influência na vida dos militantes, deixa pouco espaço de actuação de carácter democrático. Entre as muitas dificuldades com que se defrontam as organizações políticas da oposição em Angola, destacam-se, assim, a falta de cultura democrática, traduzida na escassez da prática de uma concorrência aberta, na falta de diálogo interno e na forma e nos casos de gestão ditatorial de partidos (Santana, 2006).

91 A manutenção destas posições fica a dever-se sobretudo a uma intervenção de uma comunidade

internacional que procurava garantir os seus interesses. O MPLA/Governo contava então com o apoio da ex-União Soviética e do ex-Pacto de Varsóvia, e a UNITA tinha, por sua vez, o apoio dos Estados Unidos e da África do Sul (Pezarat Correia, 1996: 43). Um dos acontecimentos importantes que estão na base do afrouxamento do envolvimento dos interesses/potências externos no conflito angolano é aquele que começa com as conversações entre Angola e África do Sul, consubstanciado no Acordo de Lusaka (1984), que previa a saída das tropas sul-africanas de Angola e bem assim do movimento de libertação da Namíbia, SWAPO-South West People’s Organization (Pezarat Correia, 1996: 42). Acontecimento que não teve sucesso, uma vez que a UNITA continuaria a receber apoio dos Estados Unidos e da África do Sul, sendo que esta última acabaria por invadir o sul de Angola em 1987, em apoio da UNITA. A consciência de que os seus problemas de segurança não se resolveriam com uma eventual solução militar em Angola facilita as negociações que a África do Sul enceta, permitindo chegar aos Acordos de Nova Iorque, em 1988, com Cuba e Angola. Assim, acordaram que Cuba e África do Sul retirariam as suas forças de Angola e África do Sul permitiria a realização de eleições na Namíbia, sob supervisão da OUA.

92 Sobre a produção de uma sociedade civil próxima, amiga e íntima do poder, cf., igualmente, Pestana

(2003) e Pacheco (2008). O tipo de preocupações que subjazem o controlo que o poder procura adoptar sobre a sociedade civil está intimamente ligado aos domínios de intervenção das instituições, que estão por sua vez muito localizados no tempo. A aceitação ou tolerância da sociedade civil por parte do Estado na década de 90 do século passado, uma altura em que as organizações que constituíam essa sociedade civil actuavam sobretudo na área de apoio humanitário, substituindo o Estado em muitas das suas funções, era relativamente mais forte do que a que se verifica no período pós-conflito 2002 em que essas organizações intervêm em

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Um dos efeitos desse controlo da sociedade civil pelo Estado traduz-se na sobreposição público/privado ou na apropriação privada do Estado (Messiant, 1999). No âmbito da liberalização económica, por exemplo, as actividades privadas teriam constituído um campo de experimentação dos altos quadros do Estado. Estes ex-quadros do Estado tornados empresários privados teriam beneficiado, nas suas acções, da notoriedade granjeada junto do aparelho de Estado. Para Messiant (1999: 83), a Fundação Eduardo dos Santos (FESA) é um «fenómeno» que revela «os modos e efeitos de privatização do Estado», em Angola, reflectindo as relações do Poder angolano com as instituições e a sociedade. A Fundação é uma organização criada em 1999 pelo Presidente angolano. Os seus fundos provêm das «grandes sociedades internacionais e nacionais», mormente as companhias petrolíferas (Messiant, 1999: 92).93 Desenvolve actividades nos mais diversos domínios, social, cultural e científico, concorrendo directamente com outros serviços e organismos do Estado que prestam ou deveriam prestar aqueles serviços. A FESA apoia escolas e centros de saúde; reabilita e renova equipamentos municipais (teatros, mercados, jardins); oferece meios de transporte à polícia, apoia organizações da sociedade civil, incluindo associações de âmbito nacional e local ou de carácter profissional (engenheiros, advogados, arquitectos, entre outros).

A praxis política em Angola não favoreceu, por conseguinte, o desenvolvimento de uma sociedade civil forte firmado na observação dos direitos dos cidadãos.94 Todavia, isso não significa que essa sociedade civil deixaria de desempenhar um papel importante enquanto forças sociais e económicas capazes de assegurar a sobrevivência das populações mais vulneráveis (Pacheco, 1994; Van der Winden, 1996; Hodges, 2003). O referido poder e importância do mercado «informal» - uma emanação da sociedade civil consubstanciada, sobretudo, nas actuações das ONG nos domínios da assistência às populações - constituía exemplo maior. A força e afirmação do potencial da sociedade civil «como a contraposição a uma sociedade politicamente organizada» estaria mais ligada a outros grupos e organizações, como os intelectuais, as Igrejas, os sindicatos e as associações socioprofissionais ou as ONG que actuavam nas áreas específicas do «poder político», sendo certo que o desempenho de semelhante função estaria muito dependente da

áreas de intervenção mais próximas da «política» - situação que provoca alguma preocupação do sistema de poder (Pacheco, 2008; Vidal e Andrade (orgs.), 2006, 2008).

93 Sobre a importância do petróleo em Angola no contexto de pós-independência, ao nível da economia

política, da qualidade da governação, das relações internacionais do país e da própria cultura do país, cf. Hodges (2003) e Ennes Ferreira (2005).

94 Refira-se, na circunstância, que as populações angolanas viveram durante mais de duas décadas em áreas

dominadas pelo MPLA/Governo e pela UNITA, sendo que esta última exerceu, de facto, um certo poder de Estado totalizante nas áreas que controlava.

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capacidade para «ultrapassar algumas das suas fraquezas […] mormente no que respeita à livre iniciativa dos seus membros» (Pacheco, 1994: 6).