• Nenhum resultado encontrado

PARTE II AS ASAS DA PESQUISA

AMOR NO FRONT, NA REDAÇÃO E NA LITERATURA

Sujeito de natureza intensa, que passou a vida misturando trabalho com casamentos e transformando o que via como repórter em inspiração literária, Ernest Hemingway deixou a Espanha com uma derrota política e duas vitória pessoais.

Nas trincheiras de Madri, ele se apaixonou pela brilhante e destemida correspondente

de guerra, Martha Guelhorn23. Dessa vez, o amor foi correspondido. Os dois se casaram e a

história inspirou um dos maiores sucessos literários de Ernest Hemingway, Por Quem os

Sinos Dobram, livro publicado em 1940 e dedicado à Martha.

Na ficção, ambientada na Guerra Civil Espanhola, Robert Jordan, um jovem americano, simpatizante dos republicanos e especialista em explosivos, viaja para a Espanha com a missão de implodir uma ponte. A trama apresenta muitos dramas existenciais do protagonista, inquieto com os privilégios de companheiros, com a burocracia dos altos escalões e com devastação moral provocada pela guerra. “O contexto histórico da ação é a primavera de 1937 e a trama, fiel às chamadas unidades aristotélicas, se desenvolve em três dias e começa em in medias res”, resume Tom Burns, em artigo publicado em 2009 na Aletria, Revista de Literatura da UFMG.

23

Martha Guellhorn foi uma das primeiras mulheres correspondentes de guerra. Brilhante, percorreu o mundo num tempo em que as moças eram educadas para ficar em casa. Martha trabalhou até pouco antes de morrer em 1998, aos 90 anos de idade. Ela não gostava de falar do tempo em que ficou casada com Hemingway, de 1940 a 1945. Foi um casamento difícil, conturbado pela competição entre os dois jornalistas e pela boemia do marido (MEYERS,1985)

Jordan é um típico herói de Hemingway, uma constatação que não é irrelevante, tendo em vista o que os críticos identificaram décadas atrás como o “código” de Hemingway, pois o autor claramente desejava encontrar um lugar para o heroísmo em um mundo no qual essa reverenciada qualidade tem se tornado cada vez mais irrelevante, e muito menos na guerra moderna, tecnológica (BURNS, 2009, p.3).

A vitória do fascismo sobre a República, embate que os historiadores consideram um ensaio para a Segunda Grande Guerra Mundial, não afastou Hemingway do front das reportagens. Ao contrário. O cidadão que, em 1939 prometera jamais retornar a um campo de batalha, voltou para o seu refúgio em Key West, mas não resistiu ao chamado da reportagem. Menos de três anos depois, já estava no front novamente escrevendo longas matérias sobre o maior conflito bélico do século XX.

Contratado inicialmente pelo extinto jornal nova-iorquino PM, Hemingway percorreu locais raramente visitados por outros correspondentes, passou um mês em Hong Kong, foi à Birmânia e à China, revirou o Extremo Oriente nos tempos de Chiang Kai-Chek, o generalíssimo poderoso do governo Chinês, a quem conseguiu entrevistar e publicar um furo mundial no qual o governante garantia por escrito que a China não romperia o acordo de apoio aos Aliados, mesmo depois de a extinta URSS afagar os inimigos japoneses no famoso Pacto Russo-Nipônico.

Sua série de reportagens no PM oferece um retrato ao mesmo tempo analítico, interpretativo e descritivo do que se passava do outro lado do mundo, no desconhecido Oriente. Como veremos no capítulo de análise específica das matérias, Hemingway não viajou desamparado. Sua pauta foi cuidadosamente discutida com Ralph Ingersoll, respeitado editor do PM, que forneceu a Hemingway aquilo que todo grande repórter deseja: tempo, espaço e recursos para realizar uma grande reportagem.

Quando Ernest Hemingway partiu para o Oriente, PM fez com ele o seguinte acordo: que se as operações (os ataques de ambas as partes) fossem desencadeadas, ele permaneceria em campo para fazer a sua cobertura por telegrama, mas se não se registrassem ações de envergadura ele apuraria mas não escreveria para o jornal enquanto não completasse seu estudo - quer dizer enquanto não estivesse na posse de todos os elementos e dispusesse de tempo e perspectiva para analisar tudo o que vira e ouvira, produzindo um relato de valor mais duradouro que a correspondência cotidiana (INGERSOLL in HEMINGWAY, 1969b, p.63).

Hemingway se saiu melhor do que a encomenda. Além da China, passou um mês em Hong Kong, onde entrevistou chineses e japoneses. A cidade era uma terra de ninguém e de todos. Havia serviços de informação da Inglaterra, da China, do Japão e dos Estados Unidos. Pouco antes de ele chegar, o governo inglês determinou a evacuação das mulheres britânicas, transformando o lugar num paraíso para homens, onde o “moral era elevado e a moral baixa”.

Há pelo menos, 500 milionários chineses vivendo em Hong Kong... guerra demais no interior, terrorismo demais em Xangai, para o gosto de um milionário. A presença dos 500 milionários provocou uma outra concentração: a de moças bonitas. A situação entre as moças menos bonitas é muito má (...) Há cerca de 50 mil prostitutas em Hong Kong. A sua superabundância nas ruas à noite, quando acorrem em verdadeiros enxames é uma das características inevitáveis em tempos de guerra (HEMINGWAY, 1969b, p.63-64).

Tamanho inventário sobre o sexo feminino no Oriente deve ter causado imensos problemas domésticos para Hemingway. Ele viajava junto com a esposa, Martha Guelhorn, que também estava a trabalho. Ela era correspondente da revista The Collier’s, tinha índole tão competitiva quanto a do marido e disputava com ele cada furo de reportagem (MEYERS, 1985).

Hemingway conseguiu várias exclusivas em sua longa peregrinação pelo Oriente. Depois de 30 dias em Hong Kong, onde não havia caixas de descarga nem canos de esgoto e o medo da guerra se misturava com o pânico de sucessivos blackouts varrerem a cidade em epidemias de cólera, Hemingway e a esposa percorreram a frente chinesa Kuomintang de batalha. Era a primeira vez que jornalistas americanos visitavam o lugar, famoso por impor um censura rigorosa. O casal conseguiu driblá-la.

Viajou rio abaixo em sampanas, depois a cavalo e a pé. Foram 12 dias de chuva na estrada, sem jamais vestir uma roupa seca, tomando vinho de sapo e de cobra – um “vinho especial de arroz com um certo número de cobras enroladas no fundo da garrafa (...) No de pássaro, há uma porção de cucos mortos” ( HEMINGWAY,1969b, p.66).

O esforço valeu a pena. Hemingway escreveu várias linhas sobre armamentos, treinamentos militares realizados, cenários possíveis de confronto e ainda conseguiu uma exclusiva com Chiang Kai-Shek, na qual a esposa chinesa do líder, fazia às vezes de intérprete, mas pulava as questões mais delicadas sobre assuntos militares.

A viagem prosseguiu mais 60 dias por escolas militares, vilarejos, zonas de treino, estradas tortuosas em Rangum, visitas a Birmânia, Manila, Lashio e Kuming. Ao final, o correspondente chegou a conclusões visionárias sobre a recorrente questão se a América deveria lutar contra o Japão:

O tempo é nosso aliado. Quanto ao Japão, o tempo está lhe fugindo, e ninguém, nem mesmo os japoneses, sabe quando chegará o derradeiro momento estratégico (...) Se a Grã-Bretanha cair, isso constituirá o sinal para o Japão prosseguir nas suas conquistas agressivas em outras direções. E isso poderá muito bem significar a guerra com os Estados Unidos (HEMINGWAY, 1969b, p.73).

A Grã-Bretanha não caiu exatamente, mas sofreu horrores com os bombardeios alemães . Menos de seis meses depois de publicadas as palavras proféticas de Hemingway, os

japoneses atacaram os Estados Unidos em Pearl Habbor, empurrando a América para o centro da Segunda Guerra. Hemingway foi junto. Derrubou a própria esposa do posto de correspondente da Collier’s, sofreu algumas horas com um previsível divórcio imposto por ela e embarcou para a Europa.

De lá, noticiou bombardeios de Londres, relatou a chegada da Normandia e a retomada de Paris em 1944. Terminava ali, na cidade luz, uma longa temporada de sete anos de jornalismo de guerra, tempo em que o próprio Hemingway lembrava como um período em que sua veia de repórter prevaleceu sobre seu coração de escritor.

Nos 17 anos seguintes, tudo diminuiu. Hemingway escreveu menos romances e menos reportagens. Casou-se, de novo, com sua quarta esposa, outra jornalista, mas sofreu sucessivos problemas de saúde e longas crises depressivas (ASTRE, 1968). Os poucos lampejos de alegria eram no mar e no deserto. Sobre eles, são seus últimos escritos importantes, como O Velho e o Mar, livro pequeno, denso e profundo que lhe rendeu o Pulitzer de 1959 e o Nobel de Literatura em 1960. Quatro anos antes, ele publicou sua última reportagem, Presente de Natal, na Look, sobre suas caçadas na África.

“Quanto ao jornalismo, escrever sobre alguma coisa que acontece no dia a dia, no que fui treinado desde jovem e que não considero um prostituição quando se faz honestamente, com rigor informativo, não irei fazê-lo mais”, despediu-se em artigo na Look de setembro 1956, anunciando o fim de seus textos na imprensa. Cinco anos depois, um repórter nascido na distante Colômbia, noticiou o suicídio de Ernest Miller Hemingway.

O repórter era Gabriel García Márquez, 34 anos, colunista da revista mexicana

Novedades. Ali, sob o título Um homem morreu de morte natural ,ele, Gabo, publicou o fim

trágico e previsível de seu autor predileto que, como ele, passou a vida escrevendo livros e notícias.

Hemingway somente contou o que viu com os próprios olhos, o gozado e padecido pela própria experiência, que era, ao fim e ao cabo, o único que podia crer. Sua vida foi uma contínua e arriscada aprendizagem de seu ofício, em que ele foi honesto até o limite do exagero (GARCÍA MÁRQUEZ, 2013, p.399).

PARTE II ASAS DA PESQUISA