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INTRODUÇÃO DA PARTE 1 EM BUSCA DA IDENTIDADE TEÓRICA

Foto 2: García Márquez com Cem Anos Solidão na cabeça, em Barcelona, 1969 Crédito: Oriol Maspons

2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS: EM BUSCA DO SABER JORNALÍSTICO

Aqui entramos na segunda raiz teórica do trabalho, a de que o jornalismo é uma forma de conhecimento da realidade e que sua maneira de conhecer o mundo tem peculiaridades significativas tão legítimas quanto outras perspectivas de abordagem do real, como a ciência e a arte. Para sustentar essa afirmação, é preciso antes esclarecer o que concebemos como conhecimento, tema outrora privativo da Filosofia e que hoje centraliza a reflexão de pesquisadores das mais diversas áreas tributárias da Sociologia do Conhecimento, da Epistemologia Crítica e das Ciências Cognitivas.

Peter L. Berger e Thomas Luckmann ponderam que não há conhecimento único, universal, livre das tintas relativizantes da vida societária – “o conhecimento do criminoso é diferente do conhecimento do criminalista”, resumem no prefácio do clássico A Construção

Social da Realidade. “Defendemos o ponto de vista que a Sociologia do Conhecimento diz

respeito à análise da construção social da realidade” (BERGER; LUCKMANN, 2004, p.13). Herdeiros das ideias do sociólogo e filósofo austríaco Alfred Schutz - um crítico severo do Positivismo que, nos anos 40, levou para as Ciência Sociais os conceitos da Fenomenologia – Berger e Luckmann “elaboraram uma teoria relativista empírica do conhecimento social” em que reivindicam que o saber é relativizado pela ação humana (MOTTA, 2013, p.67).

A objetividade do mundo institucional, por mais maciça que apareça ao indivíduo, é uma objetividade produzida e construída pelo homem (...) A sociedade é um produto humano. A sociedade é uma realidade objetiva. O homem é um produto social. Qualquer análise do mundo social que deixe de lado alguns desses três elementos, será uma análise destorcida (BERGER; LUCKMANN, 2004, p.87-88).

Com uma abordagem menos sociológica e mais cultural do processo de produção do conhecimento, o psicólogo cognitivista Jerome S. Bruner, professor em Harvard e Oxford, crítico severo dos experimentos behavioristas, reconhecido como pai da revolução cognitiva que conquistou as universidades americanas nos anos 60, sustenta que o conhecimento é fruto de uma negociação permanente entre aquilo que nos é familiar com o que não conhecemos.

A principal função da cultura para o indivíduo é a de tornar o estranho familiar. Somos guiados a colocar as coisas em seus lugares familiares. No entanto, em forma

anômala, culturas também fornecem meios para tornar o estranho convencionalmente familiarizado no estranho novamente: "a mão de Deus" ou o espírito de Abraão, em segundo plano (...) É, principalmente, através do uso de ambos - tornando o familiar estranho e o estranho familiar - que nós (e nossa cultura) cultivamos o sentido do possível5.

Bruner afirma que o homem “conhece” para erguer mundos possíveis e para superar as dificuldades do presente cotidiano. “A mente atinge sua plenitude não apenas na acumulação - no que passamos a conhecer - mas no que podemos fazer com o que sabemos, como somos capazes de enquadrar possibilidades além das convenções do presente, para forjar mundos

possíveis” (BRUNER, 2007)6.

O californiano John Rogers Searle partilha com Bruner a difícil tarefa de compreender este misterioso planeta dos diversos saberes humanos e suas mais variadas formas de produção e expressão, mas foca sua reflexão nas múltiplas maneiras pelas quais expressamos e relatamos o conhecimento.

As mentes têm conteúdos mentais; especificamente, tem conteúdos semânticos. E isto é para mim um fato óbvio acerca do modo como as mentes agem. Os meus pensamentos, crenças e desejos são acerca de alguma coisa, ou referem-se a alguma coisa ou dizem respeito a estados de coisas no Mundo; e fazem isso porque o seu conteúdo os dirige para esses estados de coisas no Mundo. (SEARLE, 1987, p.24).

Admirador do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, Searle segue os passos do mestre pelas rotas do Giro Linguístico, movimento que empurrou a Filosofia para além da metafísica, levando-a a refletir também sobre a linguagem. Emmanoel Boff (2012) ao analisar a obra de Searle, diz que um de seus grandes méritos é mostrar que não há apenas um único esquema conceitual para representar a realidade.

Essa pluralidade de representações estudadas por Searle, aponta para o enorme esforço recente da Filosofia, da Sociologia do Conhecimento, das Ciências Cognitivas, da Linguística e também das pesquisas em Comunicação em ponderar sobre as limitações de qualquer relato sobre o real. Um dos primeiros autores a desbravar esse lamacento terreno e desmitificar o saber empedrado em verdades supremas foi Mikhail Bakhtin (1895-1975).

Ainda nos anos 30, o linguista russo defendeu que o conhecimento humano sobre a realidade está assentado sobre a linguagem e, portanto, sobre um enunciado discursivo, com limitações históricas e culturais. Para Bakhtin (1984), a linguagem é um produto histórico- cultural, circunstanciado por condições de expressão definidas em processo dialógico.

5Trecho de discurso do autor. O discurso foi pronunciado em 13 de maio de 2007 durante homenagem na

Universidade de Oxford. O documento pode ser acessado em www.education.ox.ac.uk/wordpress/wp- content/uploads/2011/03/Transcript-Cultivating-the-Possible.pdf

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Criador do conceito de dialogismo, segundo o qual todo e qualquer ato de linguagem envolve pelo menos dois sujeitos, um que escreve e outro para quem se escreve, Bakhtin (1997) provocou uma reviravolta na Academia com suas ideias iconoclastas sobre a realidade e sobre o saber humano acerca dela. Um dos principais efeitos dessa reviravolta está na ideia de representação da realidade, tema que remete às matrizes teóricas do pensamento de Berger e de Luckmann (2004, p.173).

Para os dois autores americanos, diversos tipos de conhecimentos circulam em diversas redes sociais. Não é uma circulação irracional com infinitos saberes interagindo por infinitos meios sem qualquer mediação. Pelo contrário. Este caleidoscópio de conhecimentos produzidos e reproduzidos exige “uma Razão mais refinada, que dê conta da extrema complexidade do mundo, que cada vez mais se expõe a nós e com isso desafia todos os nossos parâmetros” (MEDITSCH, 1997, p.4) .

O refinamento dessa razão mediadora é fundamental, tanto para colocar os saberes em contato como, também, para apreender esses saberes. Dessa forma, incorpora-se mais uma dimensão fundamental no debate sobre conhecimento: o da aprendizagem. Para o educador brasileiro Paulo Freire, o saber não pode ser transmitido – ele se “re-produz”. Ele é recriado a cada interação entre professor e aluno: os dois aprendem; os dois ensinam.

O professor, portanto, não é o ponto final do desenvolvimento que os estudantes devem alcançar. Os estudantes não são uma frota de barcos tentando alcançar o professor que já terminou e os espera na praia. O professor também é um dos barcos da frota (…) Preciso reaprender o que acho que sei, na medida em que os educandos conhecem junto comigo e entre eles (FREIRE, 1986, p.66, p.213).

O pensamento freiriano tem uma vertente que nos interessa em particular. Para Freire, não existe conhecimento sem comunicação. Mais do que uma frase feita, esse é o ponto de partida para examinar como nosso pensamento processa as informações e as transforma em conhecimento. Sperber e Wilson (1986) consideram que nossa mente não absorve as informações tal e qual as recebe. Ela processa, classifica, contextualiza, reconstruindo a informação recebida a partir de esquemas de interpretativos e dados prévios sobre o assunto, o emissor e a situação comunicativa.

São esquemas muito mais sofisticados do que os velhos modelos comunicacionais hipodérmicos (WOLF, 2012), que compreendiam a comunicação de massa como a transferência mecânica de uma mensagem do emissor à grande turba de receptores, por meio de um processo singelo de codificação e descodificação. Hoje, graças ao que já sabemos sobre o cérebro humano e sobre a força da cultura, essa antiga versão está completamente superada. Mas conhecer, aprender e comunicar são verbos cuja expressão concreta não depende

exclusivamente do cérebro. As instituições sociais e o suporte tecnológico sobre o qual essas ações se realizam são variantes decisivas tanto para a intensidade do conhecimento aprendido, recriado e comunicado quanto para sua qualidade. Como assinala Meditsch (1997), vários autores têm demonstrado as mudanças ocorridas nas formas de pensar e de conhecer o mundo em consequência do surgimento da escrita, de sua reprodutibilidade através da imprensa e, “mais recentemente, num processo que ainda estamos vivendo, da revolução eletrônica”, todas formas diversas de descrever o mundo, segundo diferentes interesses e diferentes perspectivas. O jornalismo é uma dessas perspectivas. A ciência é outra, mas a relação entre os dois jamais foi harmônica, como mostramos a seguir