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PARTE II AS ASAS DA PESQUISA

PARIS FOI MUITO MAIS QUE UMA FESTA

O que atraiu Hemingway para a Europa não foi a vida social e erudita da Inglaterra. Isso era coisa para letrados como Henry James e T. S.Elliot, escritores genais, porém cerebrais, como pondera Jeffrey Meyers (1985). Hemingway viajou seduzido pelo universo latino da Itália, da Espanha e da França. Queria reencontrar a exaltação de suas aventuras de guerra e se enriquecer de novas experiências na Europa. “Mas ele continuava americano, queria escrever uma prosa americana e se formou primeiro pelos autores americanos” (MEYERS, 1985, p.73)

Sua americanidade, no entanto, não impediu que sugasse tudo o que havia pela frente naqueles efervescentes anos 20. Sugava e escrevia. Não conseguiu esperar sequer o desembarque em Paris para escrever a primeira matéria. Ainda na viagem de navio dos

Estados Unidos para a Europa, quando a embarcação parou em Vigo, Hemingway despachou sua primeira reportagem como correspondente internacional: “A pesca de Atum na Espanha”. O texto parte do grande para o pequeno, do universal para o particular, movimento recorrente em suas grandes matérias o qual, num passe de mágica descritivo, carrega o leitor pela mão para compreender antes de mais nada o cenário da história que irá contar. Eis seu “lead”, publicado num sábado 18 de fevereiro de 1922.

Vigo é uma pequena cidade que parece construída de papelão, ruas empedradas, as casas brancas e laranja, assentadas num dos lados de uma baía em forma de concha, quase cercada de terra por todos os lados, à exceção de uma estreita embocadura, e que é suficientemente vasta para abrigar a esquadra britânica em peso. Montanhas tostadas de sol mergulham no mar como velhos dinossauros e a cor das águas é azul como um postal ilustrado de Nápoles (HEMINGWAY, 1969a, p.24).

Em 4 de março de 1922, menos de 15 dias depois da publicação do texto anterior, Hemingway, mesmo em ritmo de mudança, emplacou mais uma reportagem. Dessa vez, uma matéria que hoje estaria nas editorias de turismo, e que trata da hotelaria na Suiça. Sua acuidade descritiva produz trechos como “a Suíça está repleta de grandes hotéis pardacentos, construídos no estilo arquitetônico dos relógios de cuco (...) todos os hotéis parecem ter sido talhados pelo mesmo alfaiate da construção civil, sobre o mesmo molde e com a mesma tesoura”.

Hemingway e a esposa escolheram viver no coração da algazarra boêmia de Paris. Por 250 francos mensais, alugaram um minúsculo e barulhento apartamento no número 74, da rue du Cardinal, no Quartier Latin. Graças a ajuda de um amigo americano, o escritor Sherwood Anderson, Hemingway se aproximou da matriarca dos anos loucos parisienses, a escritora Gertrude Stein, uma feminista inveterada, que conseguia reunir na copa de casa gente como Picasso, Erza Pound, Matisse e James Joyce.

Gertrude Stein acolheu o novo americano parisiense, apresentou-lhe os escritores badalados da época, transformou-se em sua preceptora. Madame Stein aproximou Hemingway da literatura e tentou distanciá-lo do jornalismo. “Stein incitava vivamente que ele abandonasse o jornalismo. Ela dizia que o jornalismo iria lhe roubar toda a energia criativa” (MEYERS, 1985, p.85)

Hemingway não obedeceu aos conselhos de Stein e seguiu escrevendo para o jornal e a revista canadenses. O cargo de correspondente internacional lhe permitiu viajar por toda a Europa para cobrir encontros presidenciais, conflitos regionais e testemunhar o dia a dia do Pós-Primeira Guerra, período difícil em que o draconiano Tratado de Versailles espalhava

feridas gigantescas na Europa, e em particular na Alemanha, abrindo as portas para o terror do nazismo.

O assunto é tema de Inflação Alemã, uma das reportagens que integra nosso corpus analítico, e que aborda os efeitos dramáticos da maior crise econômica já sofrida pelos alemães. Publicada em 1922, a matéria é citada por Phillip Young, professor da University of

Penn State com doutorado na obra de Hemingway, como exemplo de que o autor tinha toda

uma preocupação política e não era apenas um boêmio e um mulherengo inveterado (YOUNG, 1970).

“Mussolini: o Maior Blefe da Europa” é outro exemplo de matéria produzida nessa mesma época e que revela um repórter ágil que conseguia erguer pontes consistentes entre os detalhes do que via e o conteúdo do que lia, ouvia e pensava. Publicado em 27 de janeiro de 1923 no Toronto Daily, a matéria relaciona o estilo bufão do recém eleito governante com sua vocação tirana.

Essa primeira temporada como correspondente na Europa durou até 1927, porém marcou o autor tão profundamente que oito anos depois, já vivendo em Key West, no Golfo do México, ele ainda escrevia sobre o assunto em artigo na revista Esquire, de setembro de 1935:

A primeira panaceia para uma nação mal administrada é a inflação da moeda; a segunda é a guerra. Ambas provocam uma prosperidade temporária; ambas acarretam uma ruína permanente. Mas ambas são o refúgio dos oportunistas políticos e econômicos.(HEMINGWAY, 1969a, p.244).

Ernest Hemingway voltou para a América, separou-se, casou-se de novo, teve três filhos, – encantou-se por Cuba, construiu casa em Key West, na Florida. O escritor seguiu assim, distanciando-se do jornalista, escrevendo romances e crônicas fortemente inspiradas na vida real, até que em 1937, a realidade, a própria, o convocou para cobrir a Guerra Civil Espanhola, embate que dividiu a Espanha entre fascistas e republicanos.

"Só existe uma forma de governo que não produz bons escritores e esse sistema é o fascismo. O fascismo é um mentira contada por matones. Um escritor que não mente não pode viver e trabalhar debaixo do fascismo”, declarou o Hemingway, durante o congresso de escritores americanos no Carnegie Hall, em Nova York, em 1937.

Naquele mesmo ano, o repórter que aprendera a escrever notícias respeitando as regras do Kansas City Star e que agora era celebrado mundialmente com o apelido de Papa, rendeu-se ao chamado da reportagem e partiu para o coração do confronto espanhol.