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PARTE II AS ASAS DA PESQUISA

O QUE E COMO ANALISAR

Se de um lado a falta de estudos acadêmicos sobre o jornalismo de Garcia Márquez e Ernest Hemingway teve peso significativo na escolha do objeto de análise da Tese, por outro executar essa inédita investigação sobre a obra jornalística dos dois autores implicou uma extenuante empreitada iniciada com a montagem do corpus analítico. Para montá-lo, tivemos que fazer uma verdadeira caçada atrás das reportagens assinadas pelos dois autores em velhas páginas de revistas e jornais guardados em arquivos internacionais.

A peregrinação incluiu viagem aos Estados Unidos, visitas virtuais a arquivos públicos e privados, calvários em bibliotecas estrangeiras e longas tardes em sebos empoeirados. Ao final da jornada, conseguimos obter 1.340 reportagens, artigos, crônicas, notícias e notas escritas pelos dois autores em publicações americanas, europeias e latino-americanas. Esta Segunda Parte da Tese apresenta e analisa parte desse rico acervo. Primeiro, recuperamos o perfil de Hemingway e García Márquez como jornalistas, passando rapidamente pela história de suas vidas, contextualização que nos parece importante para compreendermos melhor suas obras.

Hemingway, por exemplo, cujo pai, o irmão, a irmã, um filho e uma neta se suicidaram, era um obcecado pelo tema da morte. Desde foca, colocava descrições de cadáveres em suas notícias. Suas reportagens de guerra mostram corpos despedaçados num cotidiano de cidades e cidadãos sitiados pelo medo e pelas bombas. Não são matérias

“frias”13. Seus relatos são como um mergulho na “Era dos Extremos”, conceito criado pelo

historiador Eric Hobsbawn para definir o século XX, tempo de tiranias e de emancipações, de disputa entre pensamentos arcaicos e ideias libertárias.

A maioria das pessoas conhece Ernest Hemingway como o romancista número 1 da América. Sua fama como romancista é tão grande, de fato, que obscurece outra reputação que lhe granjeou enorme prestigio internacional. Muito antes de ser romancista, Ernest Hemingway era um notável correspondente de guerra (INGERSOLL in HEMINGWAY, 1969b, p.62).

Hemingway cobriu a Guerra Civil Espanhola até a derrota final dos Republicanos diante das tropas franquistas, despachando diariamente matérias para jornais de prestígio internacional, como o New York Times. Durante a Segunda Guerra Mundial acompanhou – de dentro de um barco militar - o desembarque das tropas aliadas na Normandia. Antes, percorreu a China e o Japão, trincheiras pouco visitadas pelos jornalistas ocidentais na época

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e publicou série de reportagens sociais, militares e políticas sobre o papel do Oriente no tabuleiro geopolítico.

Apuradas nos fronts do Ocidente e do Oriente, as reportagens de Hemingway tratam de estratagemas político e militares, trazem informações coletadas pelo autor com fontes especializadas, mas também – e principalmente – concretiza uma mistura impressionista de canhões e homens, de vozes de comando e desabafos anônimos, de diálogos colhidos na rua com impressões narradas em primeira pessoa, transformam as matérias de Hemingway em documentos importantes sobre a Era da Catástrofe, outra terminologia cunhada por Hobsbawn

(1994). “O segundo artigo de Hemingway para a Collier’s14, Londres Combate os Robôs foi

escolhido pelo professor Louis Snyder “como uma das obras primas da reportagem”, escreve William White (1969, p.5), no prefácio do livro que editou nos Estados Unidos, em 1967, reunindo boa parte dos textos jornalísticos do autor.

Alguns leitores certamente verão este livro como um patrimônio literário que Hemingway nos legou, um mero subsídio em sua carreira de escritor. Outros, assim esperamos, verão um exemplo da melhor reportagem jornalística realizada em nossos conturbados tempos (WHITE, 1969, p.6).

Esta Segunda Parte da Tese analisa detalhadamente 20 reportagens de Hemingway e 20 de García Márquez, o chamado corpus analítico. Antes, apresentamos os critérios de seleção das matérias, a metodologia de análise e as categorias analíticas. Para a escolha dos textos analisados e a definição do corpus, recorremos à Teoria dos Gêneros Jornalísticos, base teórica essencial para a exclusão dos textos que não se enquadram no foco da pesquisa.

Vale lembrar que Hemingway e García Márquez publicaram trabalhos dos mais diferentes gêneros jornalísticos - crônicas, artigos e editoriais, notícias e reportagens - porém como estamos interessados aqui na caracterização da reportagem enquanto narrativa e forma de conhecimento, empreendemos um esforço significativo de descarte dos textos distantes desse perfil.

No capítulo que trata do percurso metodológico fundamentamos o processo analítico. O método utilizado para examinar cada um dos textos foi o da Análise Crítica da Narrativa, conforme postulada por L.G Motta, e cujas bases teóricas também foram apresentadas na primeira parte da Tese. A metodologia escolhida, além de permitir um olhar atento para o corpo e a alma do texto, acolhe as inquietações epistemológicas da autora, uma vez que, segundo Motta (2013), estimula que o analista, mesmo principiante, não se sinta constrangido

14 Collier’s: importante Revista Americana fundada em 1888. Em 1957, ela parou de ser editada, até que em 2012 começou a circular novamente.

com os rigores das propostas formais e consolidadas da literatura, nem tema ser metodologicamente criativo.

O analista deve buscar caminhos próprios, até porque a Narratologia ainda está em processo de gestação. Todo analista deve trazer para suas abordagens e procedimentos operacionais iniciativas imaginativas – desde que elas sejam bem justificadas, coerentes em relação ao problema de pesquisa, e pertinentes em relação ao objeto. Criatividade metodológica, ben trovato, pode gerar interpretações mais potentes (MOTTA, 2013, p.119).

Vencido o capítulo metodológico, partimos para a apresentação das categorias analíticas, criadas não só com base na Análise Crítica da Narrativa, mas também com elementos do Newsmaking, visão sistematizada nas obras de Traquina e de Mauro Wolf e que compreende a notícia não como um espelho do real, mas sim como uma construção social da realidade, cujo cimento é formado pela interação de vários fatores e atores.

É no trabalho de enunciação que os jornalistas produzem os discursos que, submetidos a uma série de operações e pressões sociais, constituem o que o senso comum das redações chama de notícia. Assim, a imprensa não reflete a realidade, mas ajuda a construí-la (PENA, 2008a, p.128).

Entender o texto noticioso como um elemento construtor da realidade é também enxergá-lo como um artefato em construção e cujas etapas da obra estão sujeitas a diversas intervenções. As categorias criadas para analisar as reportagens levam em consideração, portanto, que cada texto final, nasce de um complexo processo que precisa ser considerado e revelado durante o procedimento analítico.

Apresentadas e detalhadas a categorias, chega-se à análise propriamente dita. Primeiro, são analisadas as matérias de Hemingway, com um rápido resumo de cada uma delas e subsequente análise da mesma. Mesmo sistema foi adotado com García Márquez. A íntegra da maior parte dos textos pode ser lida nos Anexos, onde incluí também um artigo que o colombiano escreveu sobre a morte de Hemingway. Não é um reportagem mas serve como uma espécie de cereja no bolo – seu descarte não macularia em nada a Tese, mas sua inclusão entre colabora para o entendimento do que o colombiano pensava sobre seu ídolo americano. A seguir, um pouco do repórter Papa Hemingway.

PARTE 2