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PARTE II AS ASAS DA PESQUISA

ANO ERNEST HEMINGWAY ANO GARCÍA MÁRQUEZ

6.4 O MÉTODO: ANÁLISE CRÍTICA DA NARRATIVA

6.4.1 FENOMENOLGIA: A BASE CONCEITUAL

A corrente acadêmica hegemônica no uso da Narratologia enquanto método de pesquisa recorre aos fundamentos da Teoria Literária, da Linguística, do Estruturalismo ou do Formalismo. São teorias que priorizam a análise da narrativa a partir de sua composição interna e que, como já dissemos antes, não coadunam com a abordagem adotada aqui , que parte do texto para chegar ao contexto.

Mas se não usamos as bases conceituais mais comuns entre quem opta pela análise da narrativa, sobre que fundamentos, então, está apoiada a vertente metodológica à qual está Tese se filia ? Sobre a Fenomenologia, num plano mais filosófico, e sobre a Pragmática, numa perspectiva mais concreta. A resposta é simples, mas a justificativa é complicada e remonta à aplicação proposta por L.G Motta em seu mais recente livro, A Análise Crítica da Narrativa (2013).

A Fenomenologia nasceu no começo do século XX com os estudos do Edmund Husserl, matemático e filósofo alemão, que queria repensar a relação entre sujeito e objeto, entre consciência e mundo, entre conhecimento e experiência, temas que até então apareciam separados e antagônicos nas reflexões filosóficas.

O conhecimento natural começa pela experiência e permanece na experiência. Na orientação teórica que chamamos "natural", o horizonte total de investigações possíveis é, pois, designado com uma só́ palavra: o mundo. As ciências dessa orientação originária são, portanto, em sua totalidade ciências do mundo (HUSSERL, 2006, p.3).

Husserl queria se contrapor à visão hegemônica na Filosofia de seu tempo, de que há

um cisão irreconciliável entre o sujeito, o corpo e a alma, o fato e a ideia. Edmund Husserl

buscava exatamente a aterrisagem no mundo real, na concretude do fenômeno, no que ele tem de próprio e anterior ao pensamento. Obstinado, o matemático chegou a estudar psicologia, mas não encontrou respostas suficientes para explicar como a consciência humana percebe os

objetos e a realidade e como ela age no que ele chama de mundo vivido, local de múltipla interação entre razão e sensibilidade.

Husserl acabou por criar seu próprio método, o fenomenológico, cuja base está no entendimento de que é possível compreender todas as realidades como puros fenômenos. Na prática metodológica, significa que o pesquisador deve procurar refletir sobre o que se mostra, sobre a essência de seu objeto de pesquisa e não sobre o que ele parece ser.

A expressão Fenomenologia foi usada por Husserl pela primeira vez em 1901. Segundo o autor, a postura natural do Homem é olhar o mundo exterior de maneira ingênua, enxergando-o apenas como mundo dos objetos. Superar a ingenuidade pressupõe, na visão de Husserl (1965, p.72), entender que a “filosofia é por essência uma ciência dos inícios verdadeiros, das origens, dos rizómata pánton. A ciência do radical tem que proceder também radicalmente, e sob todos os respeitos”.

A percepção fenomenológica do Ser abre um campo imenso de trabalho e leva a uma ciência que, sem todos os métodos indiretamente simbolizantes e matematizantes, sem o aparelho das conclusões e provas, não deixa de chegar a amplas intelecções das mais rigorosas e decisivas para toda a filosofia ulterior (HUSSERL, 1965, p.73).

Alfred Schutz, sociólogo austríaco que levou as ideias de Husserl para as ciências sociais, ressalta que a fenomenologia não estuda objetos em si, mas seu significado (1995). Em A construção significativa do mundo social, Schutz assinala que a “fenomenologia é uma ciência fática, para a qual o mundo está sempre ali antes de qualquer coisa, antes mesmo da reflexão” (SCHUTZ, 1995, p.120).

Maurice Merleau-Ponty é outro nome importante na tradição fenomenológica e que merece ser revisitado pelos interessados em compreender o mundo das palavras. Para Ponty, a fenomenologia é uma filosofia que “recoloca a essência na existência” e que para alcançar esse essencial todo filósofo deve pensar o Homem a partir de sua facticidade. A palavra é, segundo ele, o complexo guia que nos leva pelo universo dos fatos.

As palavras transportam aquele que fala e aquele que ouve a um universo comum, mas só o fazem ao nos arrastarem com elas para uma significação nova, mediante uma força de designação que ultrapassa sua definição (...) mediante aquilo que Ponge chamava acertadamente ‘sua espessura semântica’ e Sartre seu ‘humus significante’ (MERLEAU-PONTY, 2012, p.152).

L.G. Motta (2013, p.129) postula que o método fenomenológico facilita a compreensão da essência das narrativas e suas relações. O caminho da fenomenologia permite “compreender os ajustes lógicos do discurso narrativo em respostas aos desejos e intenções da situação comunicativa” e facilita o acesso “à sua significação integral e ao sentido dessa

significação no contexto social e histórico”.

Revelar essa teia de relações exige um longo processo de observação. O analista deve compreender que há um fluxo contínuo e que cada novo detalhe revelado abre uma nova faceta do próprio objeto analisado, formando assim um plano com camadas sucessivas de interpretações inter-relacionadas que modificam o significado global do material observado.

Na prática das análises textuais, o analista vai percebendo que sua visão da narrativa vai se alterando ao longo das sucessivas observações e que ao final ela já não é mais a mesma de onde partiu a pesquisa. Essa nova narrativa desnudada, mais nítida e mais ampla, repleta de significações e sentidos recém apresentados, não brota da imaginação do pesquisador, mas sim de seu método incansável de pesquisa.

Ele revela uma nova narrativa, diferente por dentro e por fora, com características internas e externas até então desconhecidas e forjadas tanto na dinâmica do texto, como na sua interseção com a cultura em que está inserido. Ela é agora um objeto com outras significações, confirmando, assim, que o método é tão importante no ato da pesquisa, que sua aplicação interfere na maneira como o pesquisador enxerga seu objeto e seu objetivo de estudo.

Em nosso caso concreto, o objeto é a narrativa das matérias de García Márquez e Ernest Hemingway, e o objetivo é extrair delas uma compreensão sobre a gênese da reportagem - entendemos aqui o compreender em seu sentido hermenêutico - para Paul Ricoeur (2012c, p.381), a hermenêutica procura interpretar os sentidos e as relações internas dos textos, a partir da “polaridade entre familiaridade e estranhamento”.

Essa interpretação é polissêmica. Ela deve ser capaz de identificar a mensagem unívoca criada pelo narrador a partir da base polissêmica do léxico comum. Toda narrativa tem uma voz relativamente única, criada a partir da polissemia das palavras. O grande arquiteto desse empalavramento é o narrador. Cabe ao analista desatar os novelos que envolvem o narrar e o narrador.

Sem dúvida, é um ofício delicado, que transforma o pesquisador num artesão com lentes grossas e mãos ágeis. Sua principal tarefa interpretativa, na visão de Ricoeur (2012c), é encontrar a “intenção de univocidade na recepção das mensagens”. Para ele, compreender uma narrativa é encandear um novo discurso no discurso da narrativa, criando uma cadeia que só se fecha no ato da leitura, e que compreende o texto como uma obra aberta, cujo sentido e significado estão nas mãos do leitor.

Ler, para Ricoeur, é apropriar-se do sentido do texto, recriando-o nessa interação, e entendendo que um método de análise da narrativa tem por missão buscar esse sentido, o que

remete, em última instância, à fenomenologia de Husserl. “Esse método visa dar conta do caráter indireto da filiação que vincula a história à compreensão narrativa, reativando as fases de derivação que garantem essa filiação” (RICOEUR, 2012a, p.377).

É necessário, portanto, um trabalho de questionamento retrospectivo da narrativa em suas várias fases. Dessa forma, será possível alcançar o que Ricoeur chama de “gênese do sentido”, aquilo que se mostra para o analista – o que nos interessa como pesquisadores é o sentido do fenômeno, o sentido do fato mais do que o fato em si.

L.G Motta (2012, p.125) propõe uma “perspectiva fenomenológica que interprete dinâmica e sistematicamente a essência do fenômeno narrativo, as diversas camadas significativas do objeto empírico”. O caminho para alcançar esse “sentido essencial” envolve reflexão e cumprimento de procedimentos operativos sobre a parte e sobre o todo, mas não deve perder o foco da sua busca: o significado.