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INTRODUÇÃO DA PARTE 1 EM BUSCA DA IDENTIDADE TEÓRICA

CAPÍTULO 1 – O JORNALISMO COMO NARRATIVA

1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS: VIVER PARA CONTAR CONTAR PARA EXISTIR

Gabriel García Márquez explica com apenas 19 palavras a obsessão humana por contar histórias: “La vida no es la que uno vivió, sino la que uno recuerda y como la recuerda

para contarla”2. Em português, a expressão perde um pouco da beleza, mas o significado é o mesmo: Narramos para existir. Nossa vida não é biológica. É narrativa. Somos o que contamos e como contamos. Narrando, conhecemos a nós mesmos e o mundo.

Somos os únicos animais que “empalavramos” a existência - nomeamos coisas, seres, sensações e fatos, muitos fatos, os mesmos contados de muitas formas. É assim desde sempre. Diz Roland Barthes (2008, p.19) que a narrativa “começa com a história da humanidade” e que ela tem múltiplas faces. Está presente no “mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na tragédia, no drama, na comédia...nos fait divers, na conversação”. E segue afirmando que

Não há em parte alguma, povo algum sem narrativa, todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas e frequentemente estas narrativas são apreciadas em comum por homens de culturas diferentes, e mesmo opostas; a narrativa ridiculariza a boa e a má literatura: internacional, trans-histórica, transcultural; a narrativa está aí, como a vida (BARTHES, 2008, p.19).

Narrar o mundo e narrar a nós mesmos não é um costurar de relatos totalizantes, precisos e exatos, nos reinventamos a cada vírgula, a cada ponto que jamais é o final. Narrar não é repetir, não é um ato-reflexo em tempo real. Mesmo, e, principalmente, nossas autonarrativas não são objetivas, não refletem exatamente quem somos, nem dão conta de cada detalhe de nossa vida. Significa que nossa autobiografia não nos espelha “tal-e-qual”. Se alguém nos indaga quem somos, contamos uma versão de nós mesmos expressa numa sucessão de eventos que selecionamos de acordo com a autoimagem que queremos revelar.

Essa sucessão de eventos configura nossa estória de vida, uma narrativa que nos identifica e nos confere uma identidade única. Somos nossas narrações. Nossas narrativas nos instituem e constituem (MOTTA, 2013, p.28).

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Essa identidade “instituída e constituída” pelo narrar não é moldada apenas por seleções racionais do que queremos ou não incluir. Há toda uma coleção de arquétipos, de visões de mundo, de preconceitos, de sombras que, como ensina a Psicanálise, preenchem ou

esvaziam nosso script, termo importado do jargão dramatúrgico pelo psicólogo transacional

canadense Eric Berne (1974) - script aqui corresponde a um plano de representação dramática de nossas vidas pessoais que carregamos e atualizamos da infância até a morte, e onde projetamos nossos valores e modelos de mundo consciente ou inconscientemente.

Entender que narrativas carregam jogos de subjetividade que, ora sublimam, ora revelam informações, é fundamental para compreendê-las. Albert Chillón, Roland Barthes, Joseph Campbell, Julien Greimas, Paul Ricoeur, Tzevan Todorov, e outros tantos mestres da análise do narrar, ensinam que todas as narrativas estão submetidas a esse mesmo pique- esconde que informa desinformando e desinforma informando.

As reflexões sobre esses jogos que envolvem a narrativa surgiram nos estudos literários há mais de um século. Um dos nomes mais importantes nesse esforço de decifrar o narrar ficcional é o de Vladmir Propp, nascido em 1895 em São Petersburgo, e cuja obra é considerada essencial “para todos os que estudam a narrativa” (LADEIRA MOTA, 2012, p.12). Patriarca das pesquisas sobre o papel dos personagens nas histórias, Propp dedicou particular atenção aos Contos de Fadas. Neles, procurou obsessivamente padrões narrativos. Analisou nada menos que 449 contos e encontrou 31 funções descritas em seu livro, A

Morfologia dos Contos Maravilhosos, título escrito em 1928, em cujo prefácio o autor

humildemente convida o leitor para mergulhar em sua aventura desbravadora sobre as mais de quatro centenas de textos analisados.

São obras escritas nos quatro cantos do mundo, mas que, graças ao esforço do autor, ganharam uma teia, uma unidade, um parentesco, onde o personagem tem papel essencial. Compreender esse papel não é algo restrito e exclusivo aos iniciados no labor acadêmico. Segundo Propp (1984, p.7), seu trabalho “é acessível a todo interessado em contos maravilhosos, desde que ele concorde em seguir por um labirinto de fantástica diversificação, cuja maravilhosa uniformidade lhe será revelada no final”. Isso que o autor chama de uniformidade entre os contos é na realidade sua grande busca como pesquisador.

Propp antecipa assim o que meio século depois a análise estrutural da narrativa também irá buscar: as estruturas invisíveis que traçam o parentesco entre textos e que exige tremenda paciência do analista e rigoroso empenho metodológico que começa, com a decomposição do texto. “Se não soubermos decompor um conto maravilhoso em suas partes constituintes, não poderemos estabelecer nenhuma comparação exata” (PROPP, 1984, p.15).

Finalmente, assim como todos os rios vão para o mar, todos os problemas do estudo dos contos maravilhosos devem conduzir no final à solução desse problema essencial até hoje não resolvido, o da semelhança entre os contos do mundo inteiro. Como explicar que a história da princesa-rã se assemelhe na Rússia, Alemanha, França, Índia, entre os peles-vermelhas da América e na Nova Zelândia, quando não se pode provar historicamente nenhum contato entre esses povos? Esta semelhança não poderá ser explicada se tivermos uma imagem inexata de sua natureza (PROPP, 1984, p.15).

A procura de Propp por essa semelhança começa com a identificação dos elementos

mais simples e indivisíveis. Ele trabalha com um modelo de algoritmo3 em que os nomes e as

qualidades dos personagens mudam de conto para conto, mas suas ações e papéis permanecem os mesmos. A conclusão é clara: as histórias se repetem, mudando apenas o personagem. “O autor russo definiu a função do personagem como significativa para o desenvolvimento do conto na sua totalidade (...). Não há estudo da narrativa sem a definição dos personagens de uma história” (LADEIRA MOTA, 2012, p.12).

Outro autor que ofereceu importante contribuição para a reflexão sobre os personagens

de uma história foi Joseph Campbell, mitólogo americano que leu e ultrapassou Propp,

enxergando além dos personagens do russo. Viu neles, heróis e mitos, e definiu com precisão seus irremediáveis papéis nas narrativas da imaginação e do real. Se Propp resgatou a importância do personagem para o bom andamento da narrativa, Campbell mostrou que toda história tem um herói e que todos os heróis, reais e ficcionais, trilham percursos parecidos em diversas culturas.

Um pouco mais jovem do que Propp, Campbell, ex-medalhista de atletismo, nasceu em 1904 em White Plans, a 60 quilômetros de Nova Iorque, numa família de classe média alta de origem irlandesa. Estudou em colégio de freiras e ficou fascinado por heróis e mitos na mesma época em que todo menino se encanta por heróis e mitos. Ele tinha nove anos, adorava ver filmes de Búfalo Bill e visitar com o pai o museu de História Natural de Nova Iorque, onde passava horas fascinado por máscaras e lendas de índios americanos. A diferença dele para outros garotos é que o fascínio pelas aventuras da imaginação humana jamais o abandonou.

Em 1925, terminou a graduação em literatura inglesa na Universidade de Columbia, onde também cursou o mestrado em literatura medieval. Mais tarde, ganhou uma bolsa para estudar francês antigo e sânscrito na Universidade de Munique e na Universidade de Paris. Era a época dos anos loucos parisienses, do desbunde com a arte de Picasso e Paul Klee, das revelações arrancadas das páginas de Ulisses de James Joyce, dos suspiros com o intangível

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O Formalismo Russo tinha toda uma preocupação em dar um caráter científico aos estudos da linguagem e por isso adotar o algoritmo era também uma estratégia de fornecer mais um laço com as ciências naturais.

de C. Jung, das tardes de leitura na livraria Shakespeare and. Co, de Silvia Beach. “Ali o mundo se abriu para mim”, recorda na página 54 de sua biografia escrita por Phil Coisenau (1990).

Os anos na Europa foram responsáveis pelo amadurecimento dos dois objetos de pesquisa preferenciais de Campbell: o mito e o herói. Ao retornar para os Estados Unidos, ele descobriu uma América massacrada pela crise de 29. Largou o Doutorado, não encontrou emprego e se autoexilou numa cabana em Woodstock, onde se impôs uma rotina diária de doze horas de leitura, espartanamente divididas em três ciclos de quatro horas, com intervalo para arrumar a casa e preparar as próprias refeições. Nos livros, caçava sistematicamente o perfil dos heróis. Devorou Thomas Mann, James Joyce, Albert Camus, lendas indígenas e histórias do Rei Arthur.

Os estudos de Campbell o levaram ao magistério na Faculdade de Sarah Lawrence, onde durante 38 anos deu aulas de literatura comparada e mitologia. Foi ali, entre seus populares cursos lotados de jovens estudantes, que Campbell alinhavou os principais pontos de seus estudos sobre o herói, teoria sistematizada pela primeira vez em 1949 no livro O

Herói de Mil Faces, obra que mudou a maneira de olhar e pensar as narrativas ficcionais e

factuais.

O herói é o personagem central da narrativa humana, segundo Campbell. Vale para heróis reais e irreais, contemporâneos e antigos, ocidentais e orientais: o mito do herói é o mais comum em todo o mundo. “É sobre ele que mais escrevemos histórias porque são as histórias que mais valem a pena contar”, diz em O Poder do Mito, documentário sobre o autor, transformado em série na TV Americana, e produzido a partir de uma série de entrevistas com Bill Mayers.

Frente a frente, entrevistado e entrevistador, discutem a importância de se estudar mitologia e de se preocupar tanto em entender histórias heroicas já tão distantes no tempo. “Não existe história sem herói. Não conseguimos viver sem histórias e sem heróis. Precisamos deles para dar sentido ao nosso cotidiano”, resume o mitólogo.

Mas quem é esse herói campbelliano ? “O herói é alguém que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo”, responde Campbell (2012, p.131). Ele realiza esta proeza usando dois tipos básicos de poder: o físico, “em que o herói pratica um ato de coragem durante a batalha” ou o espiritual, “na qual o herói aprende a lidar com o nível superior da vida espiritual humana e retorna com uma mensagem”.

A façanha convencional do herói começa com alguém a quem foi usurpada alguma coisa, ou que sente estar faltando algo nas experiências normais franqueadas ou permitidas aos membros da sociedades. Essa pessoa então parte numa série de aventuras que ultrapassam o usual, quer para recuperar o que tinha sido perdido, quer para descobrir algum elixir doador de vida (CAMPBELL, 2012, p.132).

Campbell chama essa sequência básica cumprida pelo herói de monomito - equivale a uma jornada arquetípica cumprida tanto em contos mitológicos como em romances contemporâneos. Independentemente do gênero, do estilo, ou da cultura em que a narrativa foi produzida, seu protagonista passará por uma sequência de fatos que, no fundo, em sua mais profunda raiz, está ligada a símbolos e metáforas que interagem com a psique humana.

O mitólogo considera que todo herói cumpre um périplo universal. “Ele abandona determinada condição e encontra fonte de vida, que o conduz a uma condição mais rica e madura” (CAMPBELL, 2012, p.132). Trata-se de uma jornada clássica dividida em estágios. Campbell identificou vários estágios possíveis desse percurso, sendo três deles invariáveis: a Partida, a Iniciação e o Retorno. “O último ato da biografia do herói é a morte ou partida. Aqui é resumida todo o sentido da vida. Desnecessário dizer que o herói não seria herói se a morte lhe suscitasse algum terror; a primeira condição do heroísmo é a reconciliação com o túmulo.” (CAMPBELL, 2007, p.339).

Campbell morreu com 85 anos, deixando uma vasta obra, cuja temática ultrapassa os grandes “mocinhos” da Literatura e da História e alcança o herói comum, aquele que existe em cada um de nós e que está pronto para se enxergar num outro herói e assim se revelar a partir da identificação: “Nossa vida desperta nosso caráter. Você descobre mais a respeito de você mesmo à medida que vai em frente. Por isso é bom estar apto a se colocar em situações que despertem o mais elevado e não mais baixo em sua natureza”(CAMPBELL, 2012, p.138). Tentamos mostrar até aqui que as narrativas são fundamentais para a condição humana, através delas expiamos nossos pecados e espiamos o herói que sonhamos ser, mas que adormece escondido na vilania do cotidiano. A seguir, nos esforçaremos para pontuar a maneira pela qual a Narratologia pesquisa este emaranhado de textos, personagens e tramas que fazem do homem o único bicho que narra em todas as culturas e tempos.