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PARTE II AS ASAS DA PESQUISA

O DIA EM QUE O PRESIDENTE DOS EUA COMPROU UMA BONECA

Cobrir reunião presidencial é tirar água de pedra para qualquer jornalista, mas é muito pior para um jovem repórter sul-americano, metido num encontro de presidentes do “primeiro

mundo”. Gabo não tinha fontes. Não estava acostumado sequer a cobrir política em seu país. Mesmo assim, um estranho no ninho dos grandes jornalistas americanos e europeus, o jovem colombiano irritou a concorrência com sua cobertura diferenciada. O retrato desse diferencial já aparece na primeira matéria sobre a reunião, publicada em 18 de julho de 1955. “Genebra Olha com Indiferença A Reunião”, título da manchete assinada na capa por García Márquez, enviado especial.

É um texto primoroso29. Foi escrito na primeira pessoa do plural, apresenta o ambiente

da reunião, mostra o clima entre a imprensa, e aposta num viés exclusivo - o de mostrar a relação entre o encontro de cúpula e o cotidiano da cidade. Foi a primeira de muitas ousadias, a mais saborosa delas, a de contar em detalhes a visita do presidente Eisenhower e sua esposa a uma loja de brinquedos para comprar lembranças para os netos. A reportagem foi publicada em julho de 1995, integra o corpus analítico da Tese e será analisada detalhadamente no capítulo específico.

No dia da visita à loja, Gabo esperou todos os colegas jornalistas irem embora, e só então, com calma entrevistou os proprietários, reconstituiu toda a ilustre passagem do presidente pela “tienda de joguetes La Cochinelle” e por fim, humanizou, o homem mais poderoso do mundo, com uma reportagem recheada de detalhes, cenários e personagens.

A esposa do dono de La Cochinelle, Genoveva, mulher alta, branca e fraca, que está de luto de um primo que morreu há um mês e meio, viu a multidão e correu para fora da loja para ver o que se passava. Mas quando saiu pela porta foi atropelada por uma avalanche de fotógrafos (...) arrastando pelos seus pés os carrinhos conversíveis exibidos na calçada. Quando presidente se deteve frente à primeira vitrine de La Cochinelle, onde há uma boneca de setenta centímetros, havia não menos que vinte fotógrafos (...) Estavam tentando fazer um foto como a que fez Guillermo Sanchez, de uma menina apertando uma boneca com o nariz amassado contra a vitrine. - Quem é o dono ?

- Sou eu, respondeu Albert Barbier. E então, o presidente lhe deu a mão (GARCÍA MÁRQUEZ, 2013, p.160).

Com sua história sobre Mr Ike (apelido Eisenhower), Gabriel Garcia Márquez conseguiu criar uma “recordação agridoce de um momento quase esquecido dos tempos modernos, no qual o destino do homem estava suspenso entre a esperança de uma paz mundial e a perspectiva de um apocalipse nuclear”, analisa o brilhante John Lee Anderson, jornalista sênior da New Yorker, biógrafo de Che Guevara e autor de artigo Mamando Gallo

en Genebra: Gabo e os quatro grandes, onde analisa a cobertura feita por García Márquez

naquele verão na Suíça.

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O talento de Gabo permitiu-lhe obter o mais que pode dentro do âmbito de uma fastidiosa tarefa em Genebra, onde não era mais que um entre muitas centenas de repórteres de todo o mundo, enviados a cobrir um acontecimentos que eram impedidos de observar. Mesmo assim, sem deixar-se abater pelas circunstâncias, e sabendo que o melhor que sabia era contar histórias, se dedicou a buscar alguma boa história para narrar (ANDERSON, 2013, p.164).

Encerrada a cobertura de Genebra, García Márquez foi promovido a corresponde internacional e continuou na Europa. Publicou reportagens sobre o Papa, cobriu o Festival de Cinema de Veneza, escreveu textos deliciosos sobre a contenda entre Sophia Loren e Gina Lollobrigida, acompanhou casos policiais famosos, como o do misterioso assassinato de Wilma Montesi.

Em janeiro de 1956, o governo militar colombiano endureceu, fechou o El Espectador e Gabo passou três meses sem receber pelo que já havia escrito e publicado. No quarto mês, o jornal foi reaberto e García Márquez. Ganhou uma passagem de volta para a Colômbia, mas trocou o bilhete por dinheiro e seguiu morando na Europa, escrevendo romances e fazendo frilas para várias publicações latino-americanos com coberturas de fôlego, como o do julgamento de quatro homens no tribunal militar, acusados de violação contra os segredos do Comitê de Defesa Nacional da França.

Gabo passou quase dois anos morando na Europa. Foi um tempo de muitas viagens. Por duas vezes, conseguiu romper a cortina de ferro e percorreu os países do antigo bloco soviético, percurso que mais tarde foi publicado em forma de reportagem, com vários capítulos – um deles está no corpus analítico da Tese e será analisado separadamente.

Alguns trechos desse material contém passagens de raro valor documental que revelam cenas de uma época em que o acesso da imprensa ocidental ao mundo socialista era duplamente difícil: de um lado, os jornalistas eram rigorosamente controlados pela censura soviética. Do outro, eram censurados, explicita ou veladamente, pelo movimento anticomunista em seus próprios países. Gabo driblou as duas censuras e escreveu trechos como:

Os livros de Franz Kafka não são encontrados na União Soviética. Diz-se que é o apóstolo de uma metafísica perniciosa. Mas é possível que tenha sido o melhor biógrafo de Stalin. Os dois quilômetros de seres humanos que fazem fila diante do Mausoléu vão ver pela primeira vez o cadáver de um homem que regulamentou pessoalmente até a moral privada da nação e poucos jamais o viram vivo. Nenhuma das pessoas com quem falamos em Moscou se recorda de tê-lo visto. Suas duas aparições anuais na sacada do Kremlin tinham por testemunha os altos dirigentes soviéticos, diplomatas e algumas unidades de elite das Forças Armadas (...) Stalin só abandonava o Kremlin para passar férias na Criméia (GARCÍA MÁRQUEZ, 2006, p.483)

Leste Europeu. O lead da primeira reportagem abre misturando descrição e graça - “a cortina ferro não é uma cortina nem é de ferro. A cortina de ferro é uma cerca de madeira pintada de vermelho e branco”. Na sequência, García Márquez apresenta a geografia humana e física da região, “um colosso deitado que é a União Soviética, com seus 105 idiomas, seus 200 milhões de habitantes (...) e cuja superfície – três vezes os Estados Unidos ocupa a metade da Europa, uma terça parte da Ásia e constitui em síntese a sexta parte do mundo, 22,4 milhões de quilômetros quadrados sem um só anúncio de Coca-Cola (GARCÍA MÁRQUEZ, 2006, p.470)

A passagem pela Europa Oriental teve importante papel em sua formação ideológica. Gabo, naquele momento, já tinha convicções de esquerda consolidadas, mas a constatação in

loco do autoritarismo reinante no Leste Europeu lhe convenceu de que o socialismo na

América Latina não deveria seguir a mesma cartilha da União Soviética. Por outro lado, sua estadia na Europa Ocidental, particularmente em Paris e Londres, lhe fortaleceu os ideais democráticos e a certeza de que era preciso combater os ímpetos autoritários que começavam a rondar governos na América Latina. Principia assim, no final dos anos 50, a terceira fase da obra jornalística de Gabo, a do jornalismo militante.