• Nenhum resultado encontrado

PARTE II AS ASAS DA PESQUISA

ANO ERNEST HEMINGWAY ANO GARCÍA MÁRQUEZ

B. CATEGORIA ANALÍTICA: APURAÇÃO

Não acreditem na primeira versão sobre o que quer que seja. Nem na segunda, mesmo que ela coincida ou se pareça com a primeira. Sejam céticos. Extremamente céticos. Duvidem de tudo e de todo mundo. Duvidem de vocês mesmos, da própria capacidade de apurar bem. Dividem até do que imaginem ter visto. Duvidem da memória. Por isso, apurem mais. Ricardo Noblat

A apuração é o coração do jornalismo. E também seu pulmão, seu cérebro, seus braços e pernas. É na apuração que a narrativa jornalística ganha fundamento argumentativo e conquista credibilidade. Apurar é, portanto, o pilar, a base do plano da história.

O plano da história é aquele em que o narrar se concentra, em que o enredo se desenvolve numa ou noutra direção, e onde o narrador fundamenta sua visão sobre a intriga narrada. A especificidade da narrativa jornalística é que esta fundamentação ocorre fora do

texto, antes dele. Ela se dá na fase de apuração da informação, quando o repórter colhe os dados que mais tarde colocará na matéria.

Apurando, portanto, o jornalista enraíza a narrativa em sua versão da realidade, construindo assim a mais importante característica de uma matéria para qualquer jornalista: a veracidade da história. Não há tragédia maior para um repórter do que sua noticia ser desmentida, ser acusada de faltar com a veracidade - conceito mais adequado do que o de verdade, e que se sustenta pela capacidade comprobatória, e não por um ingrediente ontológico: ser ou não verdade.

Em Os Elementos do Jornalismo (2004), Bill Kovach e Tom Rosentiel ponderam que não importa se a informação jornalística está num meio eletrônico ou num meio impresso, “o jornalista em primeiro lugar está envolvido na verificação” (KOVACH; ROSENTIEL, 2004, p.42). Kovach e Rosentiel insistem que há uma unanimidade na profissão – e na reflexão sobre a profissão - de que o valor fundamental de um jornalista é “apurar bem os fatos” (KOVACH; ROSENTIEL, 2004, p.61).

Apurar bem não é, como mostram os autores, uma reprodução precisa dos fatos, como pensavam no passado os defensores da teoria do espelho – aquela que prega que o jornalismo retrata fielmente a realidade e eterniza nas páginas uma verdade absoluta sobre o real. Apurar bem no jornalismo contemporâneo é, na concepção de Kovach e Rosenstiel (2004), conseguir verificar e sintetizar, tornando o jornalismo “um fazedor de sentido”.

A imprensa precisa se concentrar na síntese e na verificação. Que tire fora o rumor, a insinuação, o insignificante e o engraçadinho. (...) À medida que os cidadãos encontram um grande fluxo de dados, eles precisam de mais – e não menos – fontes identificáveis para verificar aquela informação, apontando o que é mais importante para saber e descartando o que não é. O papel da imprensa é trabalhar para responder a outra pergunta: onde está o bom material ? Verificação e síntese se tornam a espinha dorsal do jornalismo (KOVACH; ROSENSTIEL, 2004, p.76).

Nossa premissa é de que a reportagem tem essa espinha dorsal mais forte, mais consolidada argumentativamente, e fruto de um trabalho mais metódico centrado na observação e na checagem. A apuração in loco, com pressões menores de fechamento, mais focada na interpretação do que na declaração, permite ao repórter até mesmo rever seus próprios erros, verdades e preconceitos. É apurando, reapurando, observando, perguntando, e perguntando mais uma vez, que a narrativa da reportagem conquista credibilidade - é nas perguntas que movem a apuração que o jornalismo tece sua excelência, como resume Luís Claudio Cunha:

O jornalismo é a atividade humana que depende essencialmente da pergunta, não da resposta. O bom jornalismo se faz e se constrói com boas perguntas. O jornalismo de excelência se faz com excelentes perguntas. A pergunta desafia, provoca, instiga, ilumina a inteligência, alimenta o pensamento. Ao longo de milênios, o homem evoluiu seguindo a linha tortuosa de suas dúvidas, das perguntas que produziam respostas, das respostas insatisfatórias que geravam novas questões, que provocavam mais incertezas, mais perguntas (CUNHA, 2011).

A seguir, apresentamos os indicadores e as hipóteses que consideramos essenciais para a caracterização das peculiaridades apurativas da reportagem enquanto gênero, narrativa e forma de conhecimento. Também assinalamos a forma como iremos identificá-los durante a análise das matérias de García Márquez e Hemingway.

B.1 Indicador: Local de Apuração

Hipótese: Reportagem prioriza apuração in Loco

Aqui vamos identificar onde o repórter apurou sua matéria. Se ficou apenas na redação ou se foi apurá-la in loco, na rua, em campo. - evidentemente que no tempo de Garcia Márquez e Hemingway os recursos para apuração à distância eram menores do que hoje, mas mesmo assim havia métodos de apurar sem ir a campo. Verificaremos que estratégias eles usavam. Essa parece uma questão menor, mas é de suma importância para o jornalismo contemporâneo em geral, e para a reportagem em particular. Nossa premissa é que reportagem exige trabalho de campo. Informação colhida à distância, da redação, por telefone, por pesquisa na internet, tende a ser mais fraca e menos rica de detalhes do que dados obtidos “in loco”, olho no olho do entrevistado, o melhor jeito de apurar uma notícia.

“In loco” pode soar impossível nos casos de matérias investigativas do poder e dos poderosos – ninguém convida o repórter para presenciar cenas de corrupção, por exemplo – mas, do ponto de vista da veracidade da narrativa, não há dúvida de que um texto será mais crível se o repórter conseguir detalhes suficientes para recompor a cena do crime, os diálogos e as pistas deixadas. Isso é mais do que apurar o crime, é recriá-lo narrativamente, situando o leitor no núcleo do plano da história.

B.2 Indicador: Autoria da Apuração

Hipótese: Reportagem está fundamentada em investigação do Repórter

Aqui vamos identificar se a matéria está sustentada em investigação feita pelo próprio repórter ou se apenas está reproduzindo informações já apuradas pelas autoridades competentes, diferenciação essencial na caracterização de uma reportagem e já exaustivamente trabalhada por Nascimento (2010) ao conceituar as diferenças entre

reportagem investigativa e reportagem sobre investigações. “Jornalismo investigativo implica em um trabalho ativo de apuração do repórter (...) Não pode ser considerada investigativa uma reportagem que revela uma investigação feita por autoridades que têm como ofício fazer investigações.” (NASCIMENTO, 2010, p.21).

Nossa premissa é a mesma da tese de Nascimento: não há reportagem sem apuração própria do repórter.

B.3 Indicador: Fontes

Hipótese: Reportagem é polifônica, escuta várias atores sociais, dá voz às fontes cidadãs

e usa o próprio jornalista como fonte primária.

Aqui vamos identificar as fontes da matéria. Fonte é de onde vem a informação. As fontes são locutoras da intriga na narrativa jornalística. Elas podem falar direta ou indiretamente no texto. Há três fontes básicas de informação: os olhos do repórter, quando ele próprio testemunha o fato noticiado; pessoas envolvidas direta ou indiretamente com o fato, incluindo aqui analistas; e documentos que podem ser obtidos diretamente pelo repórter, pela redação ou por alguma de suas fontes.

Analisar as fontes é analisar os conflitos que emergem no texto, a disputa de vozes que duelam pela hegemonia na narrativa. Não há fontes desinteressadas em jornalismo - vale tanto para a primeira das fontes, o repórter, quanto para quem escolhe “ajudá-lo” fornecendo informações. Esta relação entre fontes e jornalistas é complicada desde sempre, tanto do ponto de vista de quem informa quanto de quem é “vítima” da informação - o primeiro é fiador do repórter; o segundo seu prisioneiro.

A relação com as fontes é uma das áreas mais sensíveis da profissão. Nem o jornalista pode ser muito íntimo – pensando que é “um deles”, como dizia o experiente Joel Silveira – nem pode se distanciar demais senão deixa de merecer a confiança de seu informante” (JORGE, 2008, p.101-102).

Fontes falam em on ou em off. Uma mesma fonte pode falar dos dois modos num mesmo texto. Se está em on sua identidade é revelada, o que ajuda o leitor a associá-la a algum dos interesses envolvidos na intriga narrada. Se fala em off, dá a informação, tem interesse nela, mas o leitor não conhece sua identidade e, portanto, não consegue fechar o quebra-cabeça de interesses que cercam a matéria.

Apesar das questões éticas envolvidas, o off é um recurso apurativo valioso - na ótica da análise da narrativa, ele cumpre mais do que a função de denunciar. Como não vem entre aspas, o repórter é responsável pelo que está dito sem dizer. É como se o repórter falasse

através do off. “Informação em off é a que alguém nos dá na condição de não revelarmos sua identidade. É o melhor dos mundos para a fonte. Ela pode contar-nos uma verdade ou uma mentira sem correr riscos pelos que nos contou” (NOBLAT, 2002, p.63).

Nossa premissa é que a reportagem, pela natureza da sua narrativa, permite uma multiplicidade de fontes, e que por isso vai além de velhas dicotomias herói-bandido, denúncia-denunciado, vilão-mocinho, on-off. Dentro dessa multiplicidade, nossa hipótese é de que há algumas fontes que aparecem mais nas reportagens do que em outros gêneros. São elas as fontes testemunhais (os próprios jornalistas) e as fontes cidadãs - as vítimas, os derrotados, as minorias ou seus representantes.

B.4 Indicador: Técnicas de Apuração

Hipótese: Observação, leitura e entrevistas

Aqui vamos identificar as técnicas usadas pelo jornalista para obter as informações. Há três básicas: a observação, a leitura e as entrevistas. A observação jornalística exige olhos em grandes e pequenas angulares, atentos ao cenário, às suas minúcias, mas também aos movimentos, às vozes, aos diálogos. É um olho curioso, mas não fuxiqueiro, procura o sentido global e não o ruído do mexerico.

Outra maneira de obter informações noticiosas é por meio de leitura de documentos, arquivos, processos. Não é uma leitura qualquer. É leitura em busca de provas, de pistas, de evidências. O repórter busca no documento a comprovação do que pretende narrar, mas não deve se limitar a contar a “história do papel”. Deve confrontar o que lê com o que vê, como assinala Guillermoprieto (1999, p.60): “Reportagem não é escavar papéis. Reportagem é ir à vida”.

Já a entrevista jornalística, nas palavras de Cremilda Medina (2008, p.67) é “uma técnica de interação social, de interpenetração informativa que quebra isolamentos e serve à difusão de vozes, ao pluralismo informativo”, onde o repórter deve cumprir aquilo que Cunha (2012) diz ser a base do bom jornalismo: fazer as melhores perguntas. Do ponto de vista da narrativa, a entrevista tem papel dialógico, e traduz a ideia de que “o jornalismo como fenômeno social, tem sido portador da experiência de longo fôlego na arte de tecer o presente” (MEDINA, 2008, p.67).

Nossa premissa é de que a reportagem permite uma multiplicidade de técnicas apurativas que, combinadas, garantem uma melhor qualidade de informação porque usadas em conjunto se complementam, facilitando, até mesmo o processo de checagem de dados. Nossa hipótese é de que essa multiplicidade de técnicas influencia diretamente a narrativa da

reportagem. Ela não é declaratória – não é construída apenas sobre a declaração de entrevistados.

C. CATEGORIA ANALÍTICA: TEXTO  

Lead e sublead em parágrafos corridos, entretítulos a cada 20 linhas, a matéria seguia à risca a técnica da pirâmide invertida, que teoricamente permitia cortar o texto pelo pé sem maior prejuízo. Era uma boa regra mas funcionava como uma camisa de força. José Maria Mayrink

O texto jornalístico reflete todas as características, categorias e fases de produção noticiosa citadas anteriormente, mas a estrutura da narrativa não se resume a uma reprodução do que foi pautado e apurado. Ao sentar para escrever sua matéria, o jornalista tem a pauta na cabeça e a apuração em sua caderneta de anotações, mas sabe que precisará recorrer a recursos estratégicos para conquistar seu leitor.

O texto noticioso está num ponto de confluência entre dois planos de análise da narrativa – no da expressão e no da história. No da expressão, porque o analista terá que se debruçar sobre a superfície da linguagem usada pelo jornalista. E no da história, porque ele deve mergulhar no enredo narrado para encontrar as intencionalidades do narrador e suas estratégias narrativas.

Dada essa confluência de planos e a complexidade do trabalho analítico, o exame do texto é o procedimento metodológico mais demorado e por isso criamos um maior número de indicadores e hipóteses para decifrar a especificidade narrativa da reportagem. São eles:

C.1 Indicador: Estrutura

Hipótese: Narrativa da reportagem é descritiva, reveladora, interpretativa.Ela não

obedece à pirâmide invertida

Aqui vamos avaliar a “estrutura da narrativa” desde o lead à última linha,. Nossa

premissa é de que o texto da reportagem parte da descrição e chega a interpretação por meio de um série de estratégias textuais que priorizam a revelação e explicação, derrubando assim o modelo de pirâmide invertida que prioriza “o que” ao invés do “como” e “do por que”.

A combinação entre descrição, revelação e interpretação é um ponto importante de diferenciação entre a narrativa da reportagem e o texto da notícia como veremos na Terceira Parte da Tese – a notícia prioriza o “o que”, como afirma Edvaldo Pereira Lima (2004, p. 7): “a notícia segue fórmulas de construção que redundam na simplificação do relato em torno dos seus componentes o que, quem, quando, como, onde e por que”. Já a reportagem, tem