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INTRODUÇÃO DA PARTE 1 EM BUSCA DA IDENTIDADE TEÓRICA

CAPÍTULO 3 – TEORIA DOS GÊNEROS JORNALÍSTICOS

3.4 GÊNEROS JORNALÍSTICOS: MUITO ALÉM DE NEWS X COMMENTS

3.4.2 NEWS X COMMENTS: QUATRO SÉCULOS DE HISTÓRIA

Começamos resgatando a história do conceito de gêneros jornalísticos, uma história, aliás, que começa exatamente com o ímpeto didático-classificatório (PARRAT, 2001). Sonia Fernández Parrat, pesquisadora da Universidade de Santiago de Compostela, mostra que a teoria classificadora dos gêneros jornalísticos não nasceu como uma preocupação filológica ou literária, mas “sim como uma técnica de trabalho para a análise sociológica de caráter quantitativo das mensagens que apareciam na imprensa” (PARRAT, 2001, p.37).

A primeira iniciativa de classificar os tipos de informação publicados na imprensa ocorreu na Inglaterra, no começo do século XVIII, na redação do Daily Courant. Para evitar problemas com a Coroa Britânica, o editor Samuel Buckley, separou o conteúdo do jornal em

news (notícias) e comments (opinião). Dois séculos depois, a separação de Buckley começou

a interessar aos estudos sobre jornalismo e a sustentar toda uma gama de trabalhos que procura entender a imprensa a partir da classificação do que nela se publica.

A estreia do conceito de gênero jornalístico no mundo da pesquisa acadêmica data 1951 pelas mãos do pesquisador francês Jacques Keyser, encarregado pela Unesco de avaliar “comparativamente os padrões de codificação vigentes na imprensa diária” (MARQUES DE MELO, 2012, p.225). O trabalho de Keyser foi dividido em três fases. Na primeira, em 1951, ele retalhou 17 jornais de vários países. Na segunda, em 1962, examinou seis jornais europeus.

Nos dois trabalhos, “sua classificação dos gêneros jornalísticos se limitou a separar,

como fizera Buckley, os textos informativos (information) dos opinativos (articles)9”

(MELO, 2012, p.225,). Dois anos depois, Kayser revisou seu próprio trabalho para apresentá- lo em um curso de comunicação comparada em Quito, no Equador, e anotou a presença de quatro gêneros jornalísticos:

# Informativo – relatos de fatos excluindo juízo de valor por parte do jornalista;

# Opinativo – comentários dos fatos e exposição de ideias quatro variantes: editorial, artigo

assinado, artigo anônimo e artigos solicitados - do tipo a pedido;

# Misto – matérias resultantes de pesquisa, acrescidas de explicações dadas pelo jornalista

para seu melhor entendimento do texto;

# Miscelânea – serviços de utilidade pública, como obituários, cartas de leitores, e também

passatempos, quadrinhos, contos e folhetim.

Professor da Universidade de Paris, Keyser foi “pioneiro no tratamento dos gêneros jornalísticos do ponto de vista acadêmico” porque plantou o “verdadeiro germe dos estudos que se realizaram posteriormente sobre gêneros particularmente no Sul da Europa e em vários países da América Latina” (PARRAT, 2008, p.49).

Pouco depois dos primeiros escritos de Keyser, na França, um grupo de estudiosos da Universidade de Navarra, na Espanha, também começou a sistematizar os gêneros jornalísticos. Movimento semelhante ocorreu nos anos 50 nos Estados Unidos, provando que no campo da Comunicação, como acontece em todos os ramos da ciência, o conhecimento inovador é produzido quase que simultaneamente em várias partes do mundo, o que parece uma coincidência mágica, mas que remete à inquietação dos pesquisadores que, de certa forma, são movidos pelas mesmas dúvidas, e alimentados pela vontade de entender seu tempo.

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Já no começo dos anos 60, tanto no Novo quanto no Velho Continente, as aulas sobre gêneros jornalísticos nas jovens faculdades de jornalismo eram concentradas no ensino da escrita para jornais e revistas. Ensinava-se e aprendia-se que só havia dois gêneros de textos na imprensa: o dos fatos (factual) e o das opiniões (opinativo) - no fundo mesma cartilha de Mr Burkley que no século XVIII separou o Daily entre News and Comments.

A necessidade de ensinar redação jornalística em todos os currículos, explicava a ênfase na distinção entre notícias e comentários e a proximidade ao paradigma de Lasswell10, bem como ao paradigma anglo-americano que cunhou o axioma: “os fatos são sagrados, os comentários são livres”. Ainda que a realidade mostrasse que nem os fatos eram tão sagrados nem os comentários tão livres, era assim que se ensinava (BERGER;TAVARES, 2008, p.3).

Já no final dos anos 60, o modelo binário começou a ruir pela obra e graça de monstros sagrados da Linguística e da Teoria Literária, como Mikhail Bakhtin, Roland Barthes, Paul Ricoeur, José Maria Valverde, entre outros que contaminaram os estudos do jornalismo com profundas reflexões sobre as sutilezas escondidas nas entrelinhas do texto. Graças a esses pensadores, oriundos dos mais diversos campos das Ciências Humanas, os pesquisadores do jornalismo passaram a refletir sobre as palavras e sua relação com as coisas enunciadas e começaram a enxergar linguagem como um problema do ofício jornalístico.

Essa nova vertente de pesquisa causou um rebuliço nos mantras sagrados do jornalismo, a começar por um questionamento “radical no princípio sagrado do jornalismo – a objetividade” (BERGER;TAVARES, 2008, p.7), polêmico conceito que por mais de meio século esteve ancorado ao modelo binário News X Comments : “Como defender o axioma – “os fatos são sagrados, a opinião é livre” – depois de compreender que as coisas, os acontecimentos, não atravessam incólumes, através das palavras, a percepção mental do jornalista e do leitor?

A resposta é simples. A objetividade se tornou indefensável do ponto de vista conceitual. Já nos anos 70, a ideia de que o relato jornalístico é objetivo e reflete a realidade sem qualquer interferência das opiniões pessoais do jornalista (SCHUDSON, 2010) foi então superada por formulações mais complexas, como a de Gaye Tuchman e a de Michael Schudson.

Tuchman enxerga a objetividade como um ritual estratégico usado pelos jornalistas para se protegerem de eventuais críticas propalando falsas ideias de que seus relatos retratam objetivamente o real e que suas visões de mundo não interferem na produção do texto – os

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Paradigma de Lasswell, modelo criado em 1948 e que concebia o processo comunicativo como um ato que pode ser resumido com as seguintes perguntas e respostas: quem (emissor), diz o que (mensagem), através de que canal (meio) e com que efeito.

jornalistas invocam sua objetividade quase do mesmo modo que um camponês mediterrâneo põe um colar de alhos à volta do pescoço para afastar os espíritos malignos (TUCHMANN,

1993, p.75). Schudson pondera que a objetividade é uma “estranha exigência” e que parece

ter “sido destinada a se tornar tanto um bode expiatório como um crença” (SCHUDSON, 2010, p.186).