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INTRODUÇÃO DA PARTE 1 EM BUSCA DA IDENTIDADE TEÓRICA

O TEMPO METODOLÓGICO

1.3.2 ELEMENTOS VOCATIVOS DA NARRATIVA NOTICIOSA

Os elementos estruturantes são o corpo da narrativa. Os vocativos são a voz do texto. A voz narra e expressa o conflito. Ela pode ser explícita ou oculta. Aparece em diálogos, comentários e testemunhos aspeados. Pode se esconder estrategicamente na terceira pessoa, deixando a impressão de distanciamento e objetividade. Pode aparecer na primeira pessoa, dando sentido de testemunho. Jamais é uníssona. A narrativa jornalística é polifônica, com três tipos diferentes de vozes disputando as versões do conflito narrado: a do narrador (jornalistas e proprietários dos meios de comunicação), a das fontes e a dos personagens da notícia.

A voz do narrador é muita mais forte do que as outras. O círculo redacional - do

repórter ao “patrão” - escolhe quem vai falar, o que vai falar e como vai falar no texto da notícia. Há uma hierarquia interna entre os narradores – a voz do repórter nem sempre é a mais forte. Muitas vezes, o editor e a até a direção do veículo interferem na narração da história, interferência dificilmente perceptível ao leitor.

A voz dos veículos de comunicação quase sempre aparece oculta ou expressa em outra voz: a de um personagem da matéria ou mesmo de uma fonte em off - vale pontuar a exceção de editoriais, artigos ou nota comemorativas (aquelas matérias sobre prêmios e efemérides do jornal em que o repórter entrevista o patrão).

Por vezes, há embates intestinos entre os próprios narradores, tanto no círculo redacional, entre a voz do repórter e a do editor, como entre a voz da redação e a do veículo.

A voz da fonte é a voz dos mensageiros da informação. Pode ser o garganta profunda,

o agente da lei, um bandido, ou até exclusivamente os olhos testemunhais do repórter. A fonte fala em on ou em off. Em on, ela é personagem da matéria. Em off, ela é sujeito oculto, presente em cada linha, mas inacessível ao leitor.

Há fontes de todos tipos, públicas ou privadas, encarregadas de dar informações ou obrigadas a dar informações. O importante para analisar a narrativa é saber que não existem

fontes desinteressadas. Ninguém dá uma informação para a imprensa só porque o repórter pede.

É preciso destacar que o próprio repórter é fonte de sua matéria. Seus olhos são a fonte primária, aquela que testemunha, que investiga, mas que tem seu viés, seu ângulo. Aqui vale ponderar que esta Tese não considera que “interesse” melhora ou piora qualquer informação. Piora não saber que há interesse - melhora saber qual é o interesse.

A voz da personagem é a voz que traduz a intriga e o conflito que inspiram a matéria.

As personagens podem aparecer em posição de confronto, revelando duelos internos que também podem ser desiguais - seja porque o narrador optou por colocá-los em posição desigual, seja porque na vida real estão em posições desiguais.

A personagem noticiosa é profundamente diferente da ficcional, o que remete a questões éticas como veremos adiante. As personagens de romances nascem, vivem e morrem na imaginação de seus autores e de seus leitores. No jornalismo, as personagens existem na vida real. Transformar cidadãos em personagens é um dos mais complexos pontos da narrativa jornalística e consequentemente de sua análise.

A personagem jornalística tem como referente uma pessoa de carne e osso (...) O literato, em nome da liberdade estética e criativa, não se importa com a exatidão do que escreve, o que não se aplica ao jornalista, que não tem o livre arbítrio para construir a personagem jornalística. Além da criatividade, na construção da personagem convergem dados curriculares, testemunhos de pessoas, estereótipos difundidos num determinado meio social, a observação e interpretação da pessoa nos seus gestos, comportamentos e obras (RENAULT, 2011, p.57-58).

Em seu livro O quarto equívoco: o poder dos media na sociedade contemporânea (2004, p.140), o pesquisador português Mário Mesquita também alerta para essa enorme responsabilidade do jornalista: “A personagem jornalística, precisamente por não resultar de um mero trabalho de “cópia” ou “reflexo” da pessoa existente, mas da criatividade do jornalista, que lhe dá unidade, coerência interna e forma final, apela para o sentido de responsabilidade profissional”.

A diferença entre a personagem da notícia e a personagem da ficção não se resume a constatação de que uma existe na vida real e a outra nasce e mora na imaginação do escritor. Antônio Cândido, um dos maiores críticos literários contemporâneos, autor de mais de duas dezenas de livros sobre a gênese do romance, considera que a personagem é o “elemento mais atuante, mais comunicativo da arte novelística moderna”, mas reconhece que ela só adquire pleno significado no contexto, e que “portanto no fim das contas a construção estrutural é o maior responsável pela força e eficácia de um romance”(CANDIDO, 2009, p.55).

personagem, “ser fictício”, paradoxo sobre o qual repousa toda a criação literária, nas palavras do mestre paulista. “De fato, como pode uma ficção ser? Como pode existir o que não existe ?” (CÂNDIDO, 2009, p. 55, grifo do autor). O professor titular da Universidade de São Paulo responde às suas próprias perguntas de maneira categórica no texto a Personagem do

Romance, publicado na coletânea A Personagem da Ficção:

O problema da verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial. Podemos dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem que é a concretização deste (CÂNDIDO, 2009, p.55).

Cândido compara, o que é de extrema serventia para esta Tese, a personagem de ficção com o personagem real, retomando assim uma dualidade que Edward Morgan Forster, também usa em seu célebre Aspects of Novel, escrito em 1927 (FORSTER, 2005). Ali, o autor britânico aponta diferenças e semelhanças entre o Homo Sapiens e o Homo Fictus, e mostra a importância de diferenciá-los na relação com quem os observa. Para o Sapiens, o observador está sempre do lado de fora, jamais conseguimos entrar na mente e no corpo do outro, enquanto no Fictus o romancista nos leva para dentro do personagem, entramos em sua alma. Para o nosso objetivo aqui, uma das diferenças mais intrigantes entre os dois Homo vai além da observação: é a maneira como os interpretamos. “Na vida estabelecemos uma interpretação de cada pessoa, a fim de podermos conferir uma certa unidade à sua diversificação essencial, à sucessão de seus modos de ser. No romance, o escritor estabelece algo mais coeso, menos variável que é “a lógica da personagem” (CÂNDIDO, 2009, p.55).

Esta “lógica da personagem” é estabelecia com recursos de caracterização que dão unidade à criação literária. Mesmo as mais complexas e ambíguas criaturas que circulam nos romances têm sua unidade acessível pelas mãos de seu criador - na vida real, porém ninguém cria nossa complexidade e tampouco tem acesso integral a ela. Aqui, vale recuperar a famosa tipificação de Foster sobre personagens. Para ele, há duas: esféricas e planas. Esféricas são ambíguas e atormentadas. Planas são previsíveis, fabulares e submetidas à logica do bem e do mal. Nas palavras do autor, “A prova de uma personagem esférica é sua capacidade é a de nos surpreender de maneira convincente. Ela traz em si a imprevisibilidade da vida – traz a vida dentro das páginas de um livro. Se nunca surpreende é plana” (FOSTER, 1927, p.70).

Pois bem. E a personagem da notícia, é plana ou esférica? Como resultado de sua tese de doutorado, Renault (2011) diz que a narrativa do jornalismo tende a transformar personagens esféricas em planas. É uma transformação empobrecedora e quiçá seja um dos

grandes e insolúveis problemas da narrativa jornalística. Por questões inerentes à rotina do trabalho, à emergência do tempo, à limitação do espaço, à polaridade clássica da narrativa jornalística que divide o bem e o mal, o vilão do herói, o acusado noticiado da fonte acusadora, as personagens jornalísticas são reduzidas a descrições ligeiras, rápidas.

A personagem jornalística tende a identificar-se com as personagens planas de Forster, ou seja, ela é reduzida a alguns traços fundamentais, a algumas qualidades essenciais que permitam a sua identificação pelo receptor. Ela tem sua complexidade reduzida. Em vez de acumular dados que dificultem a identificação da personagem o narrador procura, quase sempre, exemplificar e confirmar repetitivamente os traços da ficha sinalética de onde partiu na descrição inicial. Mas, no nosso entendimento, nem sempre é assim (RENAULT, 2011, p.60).

A esperança escrita na última linha da citação de Renault é também a desta Tese. Aqui, espera-se mostrar que a dicotomia redutora e fabular da notícia que separa o bem do mal, o vilão do herói, necessita de personagens planas. Porém, quando examinamos a reportagem e não a notícia – diferenciação que iremos tratar na Terceira Parte da Tese -, esse redutor tende a ser minimizado e permite o uso de personagens esféricas.

Mas na concretude da produção da matéria jornalística, seja fazendo reportagens ou apurando notícias, o repórter se depara com um jogo de poderes vocativos mediado pelo real: o jornalista não pode, por exemplo, inventar uma frase da presidente da República dita numa coletiva, mas pinça aquela que considera a melhor aspa de acordo com toda uma teia de interesses objetivos e subjetivos – os seus, os do seu veículo, os da sua fonte e os que considera ser o do leitor.

Nas entranhas do texto, as vozes da história disputam a voz da História. É uma embate desigual em que o poder do mais forte, o narrador, no caso, o jornalista e sua sombra, o veículo, jamais é declarado. Ao contrário, sua força está exatamente nessa impressão de objetividade causada no leitor, nesse ritual estratégico narrativo de distanciamento, como já demonstraram importantes pesquisas das mais diversas vertentes.

A socióloga americana, Gaye Tuchman, aponta que a luta pela voz da narrativa não se dá apenas entre fontes e personagens, mas também ocorre dentro da própria estrutura redacional. Nas palavras de Tuchman (1983, p.44), “a avaliação da noticiabilidade é um fenômeno negociado, constituído pelas atividades de uma complexa burocracia, desenhada para supervisionar a rede informativa”.

Este mosaico de embates desiguais e multidirecionais entre narradores, fontes e personagens, todos interessados em exercer o protagonismo da enunciação da narrativa, exige do analista enorme cuidado metodológico, como será mostrado no capítulo sobre metodologia. Esse cuidado na análise é fundamental para esclarecer os conflitos que

antecedem o conflito narrado e que estão refletidos nele. Um duelo no qual fontes e personagens disputam a “verdade” entre si, mas também entre a verdade do veículo e a dos jornalistas. A síntese ocorre do embate pelo “poder da voz” nessa polifônica narração.

O detalhamento desse raciocínio será apresentado mais à frente na análise da reportagens de García Márquez e Ernest Hemingway e no capítulo final de detalhamento das características da reportagens e suas diferenciações em relação à notícia. Por enquanto, seguimos tratando de maneira geral a narrativa noticiosa na imprensa escrita. Seu últimos e riquíssimos ingredientes a serem apresentados são os elementos estratégicos da narrativa jornalística.