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INTRODUÇÃO DA PARTE 1 EM BUSCA DA IDENTIDADE TEÓRICA

CAPÍTULO 3 – TEORIA DOS GÊNEROS JORNALÍSTICOS

3.3 OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DA MÍMESES ÀS ASAS DO DISCURSO

3.3.2 A REVOLTA DA LINGUAGEM

Paralelamente a essa enorme turbulência nos círculos literários, começou a estourar no século XX uma grande revolução na Teoria dos Gêneros, retirando-a dos limites do texto e ampliando-a para o terreno da linguagem. Os analistas passaram a valorizar a forma “dentro do quadro geral do sistema literário, o qual, por sua vez, nunca estaria desligado da dinâmica do sistema social” (BULHÕES, 2007, p.37).

Todorov (1981, p.214) resume essa nova abordagem dizendo que ela pretende estudar a “literalidade e não a literatura”, proposta metodológica que funda a “tendência moderna dos estudos literários”. O autor nega, no entanto, as críticas de que esse novo jeito de abordar o texto literário despreze a obra em si. “Estuda-se as virtualidades do discurso literário. E do mesmo modo que para conhecer a linguagem, estuda-se primeiro as línguas, para ter-se acesso ao discurso literário, devemos toma-los em obras concretas”.

O primeiro passo deste novo olhar foi o chamado Formalismo Russo, nascido no começo do século XX, sob a liderança do linguista Valentin Voloshinov e do teórico literário

Pavel Medved. Para eles

,

arte exige forma e estrutura. “A forma está intimamente ligada ao

significado e por mais próximo que um romance esteja da realidade, ele é “o produto e o resultado de muitas decisões, que envolvem a forma e a estrutura do material que será apresentado ao leitor” ” (BONNICI, 2009, p.131).

O formalismo amadureceu dialogando com um dos mais brilhantes intelectuais da turbulenta Rússia dos anos 20, Mikhail Bakhtin, autor já citado nos dois capítulos anteriores sobre narrativa e conhecimento e que surgiu nas discussões sobre literatura na pós-revolução leninista. A biografia de Bakhtin é tão farta quanto sua obra.

Vítima de todo tipo de perseguição física e intelectual durante os desmandos stalinistas da União Soviética, Bakhtin colocou sua lente analítica sobre o diálogo e desvendou a polifonia do discurso literário. Após um profundo mergulho nas obras dos romancistas dos século XIX, ele concluiu que o romance é “um gênero que muda de forma constantemente e impossível de ser analisado fora do sistema onde está inserido” (PENA, 2008a, p.20).

Para Bakhtin – e também para os estudiosos reunidos no chamado Círculo de Bakhtin - os trabalhos sobre gêneros deveriam ultrapassar os limites literários e alcançar uma condição discursiva. Passariam assim de gêneros literários para gêneros do discurso, seriam divididos a partir de suas funções.

Aprendemos a moldar nossa fala pelas formas do gênero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos logo, desde as primeiras palavras, descobrir seu gênero, adivinhar seu volume, a estrutura composicional usada, prever o final. Em outras palavras, desde o início somos sensíveis ao todo discursivo [...] Se os gêneros de discurso não existissem e se não tivéssemos o domínio deles e fôssemos obrigados a inventá-los a cada vez no processo da fala, se fôssemos obrigados a construir cada um de nossos enunciados, a troca verbal seria impossível (BAKHTIN, 1997, p.285).

Ou seja, para o filósofo russo a troca verbal é o ingrediente fundamental de todo gênero discursivo e se queremos analisá-lo não podemos perder de vista o diálogo entre o texto e o leitor. A lição básica de Bakhtin é resumida de forma exemplar pelo francês Dominique Mainguenau em seu Análise de Textos de Comunicação (2011, p.66): “Todo gênero de discurso visa a um certo tipo de modificação da situação da qual participa. Essa finalidade se define ao se responder à questão implícita: ‘Estamos aqui para dizer o quê?’”.

O tipo de resposta, segundo Bakhtin, depende do tipo de gênero em questão. Para ele, há dois grandes grupos de gêneros: os primários e os secundários. Primários são os da comunicação cotidiana. Secundários, os da comunicação “construída”, elaborada e institucionalizada. Caso dos romances, crônicas, ensaios, “formações complexas porque são elaborações da comunicação cultural organizada em sistemas específicos como a ciência, a arte, a política” (MACHADO, 2005, p.155).

Marcia Benetti também examina a questão dos gêneros e aplica sobre olhos um olhar foucaultiano, quer dizer entende-os a partir das microrrelações de poder inseridas no discurso. Segundo Benetti (2008, p.4) “os gêneros secundários são vistos a partir de uma inscrição

histórica, social e cultural, pois os sujeitos do discurso existem em um determinado tempo e lugar – e é somente aí que podem enunciar e interpretar, no jogo que configura a prática discursiva foucaultiana.”

No Ocidente, as inquietações produzidas por Bakhtin e pelo Formalismo Russo encontraram acolhida nas diversas correntes estruturalistas que, a partir de Saussure, começaram a enxergar a Teoria dos Gêneros Literários com a ótica do discurso. “A escolha efetuada por uma sociedade entre todas as codificações possíveis do discurso determina o que se chamará seu sistema de gêneros”, diz Tzvetan Todorov (1981, p.16), filósofo e linguista búlgaro radicado em Paris, autor de uma obra densa e vasta, iniciada nos anos 60 sob a orientação de Roland Barthes e hoje leitura obrigatória para quem deseja se aventurar pela análise da narrativa.

Todorov, pesquisador que primeiro traduziu a obra do mestre Bakhtin, a quem considera o maior teórico da literatura do século XX, é um dos pensadores mais citados ao longo desta Tese graças à sua contribuição para a formulação de uma teoria contemporânea dos gêneros discursivos. Em Os Gêneros do Discurso (1981), ele mostra que todo discurso pressupõe um escolha cultural, social e subjetiva, e que por isso não há um discurso único. “Ele é múltiplo” (TODOROV, 1981, p.16).

Com clareza ímpar, o autor disseca a estrutura e a formação do discurso desde sua origem. “As frases não são mais do que ponto de partida do funcionamento discursivo: essas frases serão articuladas entre si e enunciadas em um certo contexto sociocultural; transformar- se-ão em enunciados, e a língua, em discurso” .

Para Todorov (2010), analisar uma obra literária sob a perspectiva do gênero requer alguns pressupostos por parte do analista. O primeiro deles é entender que o objetivo da análise é descobrir uma regra que “funcione para muitos textos”, não pelo que eles têm de específico, mas pelos que compartilham com outros. “Estudar La Peau de Chagrin a partir do gênero fantástico é completamente diferente de estudar esse livro por si mesmo, ou no conjunto da obra balzaquiana, ou na da literatura contemporânea” (TODOROV, 2010, p.8).

Enxergar a obra literária com as lentes do gênero pressupõe o entendimento, segundo Todorov, de que nenhuma obra literária nasce exclusivamente do gênio inspirado do escritor. Ela está inscrita numa linhagem, numa tradição, numa história. “Todo estudo da literatura participará, quer queira ou não, deste duplo movimento; da obra em direção ao gênero; do gênero em direção à obra” (TODOROV, 2010, p.11). Esse duplo pertencimento vale, aliás, para todo tipo de discurso quando observado com a perspectiva de gênero - ressalva que não elimina a pergunta básica deste capítulo: o que é específico dos gêneros discursivos literários

em relação a outros gêneros ?

Há quem responda que não há essa especificidade e que a divisão por gêneros caducou, como acusa Maurice Blanchot em Le Livre a Venir (1959, p.243-244): “Só importa o livro, tal como é, longe dos gêneros, fora das rubricas - prosa, poesia, romance, testemunho - sob os quais ele se recusa a se alinhar e aos quais nega o poder de lhe fixar o lugar e determinar a forma.”

O iconoclasta pensamento de Blanchot, no entanto, tropeça em problemas conceituais, como aponta Todorov, recorrendo ao pensamento de Gerard Genette, em Figures II, 1966, p.15: “O discurso literário se produz e se desenvolve segundo estruturas que só pode transgredir porque as encontra, ainda hoje, no campo de sua linguagem e sua estrutura”.

Para que haja transgressão é preciso que a norma seja perceptível (...) Não reconhecer a existência de gêneros equivale a supor que a obra literária não mantém relações com as obras já existentes. Os gêneros são precisamente essas escalas através das quais a obra se relaciona com o universo da literatura (TODOROV, 2010, p.13).

Reafirmar a importância de classificar por gêneros não é suficiente para responder às três perguntas colocadas no início do capítulo: os que são gêneros literários, quais suas especificidades e quais são eles. Northrop Frye, canadense, um dos mais importantes teóricos da literatura do século XX, responde que a especificidade fundadora do texto literário está na sua relação com a realidade. “O símbolo poético significa essencialmente a si próprio, em sua relação com o poema” (FRYE, 1967, p.80, tradução nossa).

Ou seja, o texto literário só representa a si mesmo e, ao contrário de outros discursos usados cotidianamente – inclusive o jornalístico - ele não tem uma relação referencial com o universo real. Está aí, portanto, a crucial demarcação do gênero literário em relação ao jornalístico, a sua relação com a realidade, ponto que será apresentado nas próximas linhas no item sobre gêneros jornalísticos.