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INTRODUÇÃO DA PARTE 1 EM BUSCA DA IDENTIDADE TEÓRICA

CAPÍTULO 1 – O JORNALISMO COMO NARRATIVA

1.2 A NARRATOLOGIA: EM BUSCA DA ALMA E DOS OSSOS DO NARRAR

A Narratologia compreende que narramos com a fala, com a escrita, com as imagens, com os gestos e com as palavras. Narrar também é um ato de construção social, uma ferramenta básica da vida societária. Narrando, construímos nossa identidade civilizatória. As

narrativas de uma sociedade contam sua história cultural política e econômica. Seus personagens são grandes heróis, terríveis tiranos e cidadãos comuns que cumprem jornadas parecidas em tempos e culturas diferentes, e que, por fim, compõem as páginas da História dos Povos. Claro que concretamente a trajetória social e cultural de cada povo é única, mas a Narratologia compreende que a forma de contar essa história socialmente construída tem elementos estruturantes narrativos universais.

Mas a constatação de que tudo é narrativa, de que ela é uma espécie de gêmea siamesa da humanidade, que está em todos os lugares e em todos os tempos, gera no pesquisador uma sensação de impotência diante de um monstro de infinitas faces: Como analisar algo tão genérico dentro de parâmetros minimamente acadêmicos ? Como identificar padrões, semelhanças, categorias, diferenças em um corpo analítico tão gigantesco ?

Roland Barthes compara a angústia do analista de narrativas, atônito com a infinidade de pontos de vista que pode adotar em sua análise (histórico, psicológico, etnológico, estético...) com o drama do pai da linguística, Ferdinand Saussurre, diante do “heteróclito da linguagem e procurando retirar da anarquia aparente das mensagens um princípio de classificação e um foco de descrição” (BARTHES, 2008, p.20).

O autor francês defende que toda narrativa partilha com outras narrativas uma estrutura acessível à análise e que ninguém pode narrar sem se referir a um sistema implícito de unidades e regras universais. Cabe ao pesquisador, portanto, encontrar essa estrutura, esse esqueleto invisível, compartilhado por uma e outras narrativas. Para ele, a saída metodológica para a armadilha generalizante imposta pela multiplicidade do narrar é exatamente achar esses esqueletos estruturantes. Onde encontrá-los ? “Nas narrativas”, responde Barthes, na página 21 de seu famoso texto Introdução à Análise Estrutural da Narrativa (2008), espécie de bíblia para quem começa a investigar a alma de textos literários.

Nesta espécie de autópsia das narrativas sugerida por Barthes, narratólogos contemporâneos passaram a identificar outros elementos fundamentais – além dos personagens e dos heróis - para a articulação do narrar, seja ele ficcional ou fático. Afinal, não existe história sem personagens. Mas sozinhos, eles não contam uma história. Uma história é feita de mocinhos e bandidos, de conflitos, de uma intriga, de um tempo próprio, de uma sequência de ações que dão unidade ao texto, de um narrador, de um leitor, de uma intenção do autor, de muitos argumentos, de cenas, de cenários e de tantos outros elementos estudados pela Narratologia, como veremos adiante.

Antes é preciso ressaltar que a Narratologia é a um só tempo teoria e metodologia. Ela é teoria porque enxerga a narrativa em si, com uma alma e muitos ossos, estruturas que a

sustentam, que a tornam maior que cada uma das narrativas. Ela é método porque exige do analista uma postura única em busca de sua configuração interna, capaz de registrar as estratégias, artimanhas e astúcias argumentativas do narrador ao organizar as sequências, o tempo, os personagens, o enredo, usando e abusando de mecanismos de verossimilhança para que a história nos pareça impressionantemente real, como assinala Motta (2013).

Aqui não começaremos acacianamente pelo início. Começaremos tratando do que liga o início ao meio e ao fim: a sequência. Uma narrativa exige sequência, peça fundamental para o encandeamento do texto e que lhe confere unidade textual. Essa unidade está ancorada na maneira como o autor monta sua sucessão de ideias. Uma ideia atrás da outra, um capítulo atrás do outro, um parágrafo amarrado a outro, processo que vai muito além da ordem das palavras e que alcança a estrutura profunda do texto, numa dinâmica funcional e sequencial.

A noção de sequência remete imediatamente à ideia de tempo, de temporalidade narrativa, conceito profundamente estudado por Paul Ricoeur em O Tempo e Narrativa, obra com três volumes. Ricoeur mostra que o tempo do narrar não é cronológico, ele não é o nosso tempo cotidiano. Ele é o tempo que molda a sequência da narrativa, e que só tem lógica dentro dela.

É nesse tempo de horas especiais que a trama da história se desenvolve, que os personagens circulam, que os heróis conquistam e que os vilões conspiram. É nele que ocorre a mágica da transformação de um problema numa solução. “A experiência do tempo estrutura-se em ações sucessivas cujo desenvolvimento numa intriga coesa se traduz numa espécie de dialética entre sucessividade e síntese” (MOTTA, 2013 p.71 ).

É nesse tempo paralelo que ocorre o desenrolar da intriga, do problema da história. E aqui vale ressaltar outro princípio universal das narrativas: intriga, o problema. Não há narrativa literária, jornalística, histórica nem científica sem uma intriga, sem um problema a ser resolvido.

A narrativa põe naturalmente os acontecimentos em perspectiva, une pontos, ordena antecedentes e consequentes, relaciona coisas, cria o passado, o presente e o futuro, encaixa significados parciais em sucessões temporais, explicações e significações estáveis. Faz o agenciamento dos fatos no processo de tessitura da intriga como um sistema, ou composição em um todo diagético que tem princípio meio e final do dizer de Paul Ricoeur (MOTTA, 2013, p.71).

A responsabilidade pelo relato dos acontecimentos que formam o quebra-cabeça da intriga narrativa é dos personagens, reais ou imaginários, elementos cruciais da narrativa já tratados anteriormente. São eles que contam a história, que dão vida a ela. Cabe a eles, passar da maneira mais crível possível o enredo da trama, executando assim, a chamada mimese do

real, expressão concebida por Platão e Aristóteles como imitação da realidade, mas que na teoria da narrativa contemporânea significa também refazer o real. Na mimese o homem “refaz o mundo uma vez mais” , através dos processos miméticos, a humanidade é capaz de “apanhar o mundo exterior em seu interior” (GEBAUER; WULF, 2004, p.38).

É um processo complexo que coloca em cena outro elemento fundamental das narrativas: o leitor, remetendo-se aqui a uma ideia de narrativa como um processo comunicativo e não como uma obra acabada. Significa que o sentido da narrativa é definido na interação entre o texto e o leitor, os dois interagindo silenciosamente e tecendo conjuntamente e narrativamente as histórias do mundo.

A qualidade dessa interação depende da eficiência da atuação mimética dos personagens, e, portanto, da capacidade subjetiva do autor. Quanto mais eficiente, maior verossimilhança e, por conseguinte, maior o efeito de real sobre o leitor. Sim, aqui entra mais uma peça do quebra-cabeça narrativo: a verossimilhança, conceito essencial e estruturante das narrativas em geral, e das jornalísticas em particular, como mostraremos mais adiante.

Não importa se estamos tratando de um texto realista de Graciliano Ramos, de um capítulo de Harry Potter, de uma reportagem de guerra de Hemingway ou de uma notícia escrita por García Márquez, é fundamental que o leitor entre na história, acredite nela, se emocione com ela, viva a experiência catártica única de ser transportado para um mundo que não é seu, mas que naquele momento é completamente seu. Para isso, o relato tem de ser crível.

Aqui, abre-se um parêntesis para uma diferenciação essencial para quem decide mergulhar na Narratologia, a partir de uma perspectiva que prioriza a narrativa enquanto interação comunicacional. Trata-se da diferença entre história e discurso. História é o desenrolar da intriga. Discurso é a interação entre esse desenrolar e o leitor, como mostra o linguista e filósofo Tzvetan Todorov (2008, p.218). “A obra literária tem dois aspectos: ela é ao mesmo tempo uma história e um discurso”.

Ela é história, no sentido em que evoca uma certa realidade, acontecimentos que poderiam ter ocorrido, personagens que se confundem com os da vida real (...) Mas a obra é ao mesmo tempo um discurso: existe um narrador que narra a história; há diante dele um leitor que a percebe. Neste nível, não são os acontecimentos que contam, mas a maneira pela qual o narrador nos fez conhecê-los (TODOROV, 2008, p.220-221).

Dessa interação entre narrador e leitor, surge mais uma característica estruturante das narrativas. A intencionalidade argumentativa. Quem narra deseja algo e tenta realizar esse desejo por meio de uma racionalidade argumentativa que se sustenta na verossimilhança, na

capacidade de o narrador contar algo como se o fato relatado realmente estivesse ocorrido e, de preferência, dando a impressão de que o narrador testemunhara o caso, tal é sua riqueza de detalhes, tal é seu domínio sobre o fato e suas circunstâncias.

Vale ressaltar que o argumento do narrador muitas vezes não transparece racionalidade, mas está assentado sobre ela. Isso porque “narrar é uma técnica de enunciação dramática da realidade, de modo a envolver o ouvinte na estória narrada. Narrar não é (...) contar ingenuamente uma história. É uma atitude argumentativa, um dispositivo de linguagem, sedutor e envolvente” (MOTTA, 2013, p.74).

O objetivo dessa sedução é simples: capturar o leitor, encantá-lo, transformá-lo usando o mais forte e suave dom, o da argumentação, provando, assim, que criar e contar história não é uma experiência unicamente estética. É também um mecanismo de convencimento, ponto essencial quando se trata da narrativa noticiosa, como veremos a seguir ao tratarmos especificamente da Narratologia Jornalística.

Antes, porém, vale reiterar que desvendar estratégias narrativas e relacioná-las com elementos universais é uma difícil tarefa intelectual que consome o talento dos analistas da Narrativa desde Propp. Aqui tentamos mostrar apenas alguns desses elementos. Não há no entanto, a pretensão de detalhar estes padrões, esforço já consolidado na literatura acadêmica. Guiados pelo formalismo russo, pelo estruturalismo francês e também pela nova crítica anglo-saxã, os decanos da pesquisa narrativa centraram todas suas investigações em catalogar constantes discursivas a partir da observação empírica dos textos. É neste contexto que nasce a Narratologia. Aos poucos ela consegue se livrar da antiga obsessão classificatória e da procura estruturalista pelos ossos da narrativa. Seus estudiosos já não estão apenas nos departamentos de Letras, de Linguística e de Teoria Literária. Há narratólogos na Antropologia, na Historiografia, na Pragmática, e até, claro nos estudos da narrativa jornalística, tema central desta Tese e que passamos a abordar agora.