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3.2 Síntese da evolução dos paradigmas de racionalidade

3.2.1 Antiguidade

Na Grécia, a moralidade era controlada pelo Estado, por via da veneração aos deuses como uma genuína razão de Estado, que utilizava a religião como instrumento de controle social. O pensamento era formulado a partir da lógica matemática e haurido na instância do absoluto.

Nesse contexto, Platão96 era algoz dos políticos, duramente criticados em

sua obra A República: situava-se de um lado o saber e de outro o exercício do poder. Em a Sétima Carta, Platão, 20 anos após A República, ratifica a idéia de que a comunidade dos filósofos verdadeiros e autênticos deveria assumir o governo do Estado, para livrar a humanidade da miséria. A idéia básica de Platão é que somente com os filósofos estava o conhecimento verdadeiro, imutável, bom e belo, que lhes seria revelado por desígnios divinos não-acessíveis aos demais, brotando daí duas idéias que servem de paradigma do filosofar: 1) há uma verdade, única e imutável, identificável exclusivamente mediante a razão; 2) a essa verdade (imutável) somente os filósofos têm acesso. Esse conhecimento – exclusivo dos filósofos – era entendido como metafísico: não resultava da concorrência de opiniões humanas formadas a partir dos sentidos, situando-se fora, de forma apriorística, num plano atingível somente pelo pensamento.

Cabe ponderar, então, que a matriz de racionalidade clássica é caracterizadamente metafísica, porque relega a um segundo plano o conhecimento do objeto singular, constitui a forma imperativa, não fundamentada, e por isso não justificada da uniformização de idéias no seio da sociedade civil. Em outros termos, a verdade está com uma elite – que tem o conhecimento – em face do que tem competência para dizer o que é verdade. Constata-se então que essa matriz restringe o conhecimento exclusivo a um grupo, onde é imperativamente conformado e, por isso, prestou tantos “serviços aos poderes absolutos”.

96

Platão - Atenas, 427-348-7 a.C. Em Platão a filosofia tem um fim prático, moral; é a grande ciência

que resolve o problema da vida; realiza-se, intelectualmente, através da especulação, do conhecimento da ciência, mas estende tal indagação ao campo metafísico e cosmológico, isto é, a toda a realidade; parte do conhecimento empírico, sensível, da opinião do vulgo e dos sofistas, para chegar ao conhecimento intelectual, conceptual, universal e imutável.

As idéias constituíram arquétipos das coisas da experiência. Em outros termos, tais arquétipos – ou formas de idéias – nada mais são do que conceitos. A idéia – por um conceito – rememora algo que sempre estava no absoluto. Hessen97

esclarece:

Esse mundo não é simplesmente uma ordem lógica, mas também uma ordem metafísica, um reino de entidades ideais. Ele está em relação, primeiramente, com a realidade empírica. As idéias são os arquétipos das coisas da experiência. Essas coisas obtêm seu ser-assim, sua essência peculiar, por “participação” nas idéias. Em segundo lugar, porém, o mundo das idéias está em relação também com a consciência cognoscente. Não apenas as coisas, como também os conceitos por intermédio dos quais nós os conhecemos, são derivados do mundo das idéias. Mas como isso é possível? É a essa questão que a doutrina platônica da reminiscência vem responder. Ela afirma que todo conhecimento é rememoração.

Sócrates98, nesse mesmo sentido, entendia que as coisas, fossem elas

éticas ou empíricas, deviam ser examinadas por um método dialético de abstração matemática, de forma a que se encontrasse uma só verdade. Aristóteles99,

entretanto, não concordava, postulando diferentes métodos para conhecer seres de diferentes espécies. Por serem diferentes, deveriam adotar-se metodologias diferentes. Surge então a lógica clássica, à qual se referiu no início do capítulo anterior.

Ainda segundo Aristóteles, os objetos éticos, ou o ser sem concretude material, são absolutamente diferentes dos objetos empíricos e, por isso devem ser submetidos ao conhecimento de forma diferenciada. Essa fundamentação quebra, ou ao menos nega a existência de uma só verdade, abstrata e absoluta, entificada num conceito. 100

97 HESSEN, Johannes, op. cit., p. 50. 98

Sócrates - Atenas, provavelmente, 470 a.C.- 399 a.C., tornou-se um dos principais pensadores da

Grécia Antiga; fundou o que se conhece hoje por filosofia ocidental. Foi influenciado pelo conhecimento de um outro importante filósofo grego: Anaxágoras. Seu método de transmissão de conhecimentos e sabedoria era o diálogo; através da palavra, tentava levar o conhecimento sobre as coisas do mundo e do ser humano.

99

Aristóteles de Estagira, 384 a.C. – 322 a.C. filósofo grego, considerado o criador do pensamento

lógico. Discípulo de Platão, prestou inigualáveis contribuições, destacando-se: ética, política, física, metafísica, lógica, psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia, história natural e outras áreas de conhecimento humano. É considerado como o filósofo que mais influenciou o pensamento ocidental. Para Aristóteles, a Lógica é um instrumento, uma propedêutica para as ciências e para o conhecimento e baseia-se no silogismo. O silogismo parte do universal para o particular; a indução, ao contrário, parte do particular para o universal.

100 “Ontologismo: Doutrina segundo a qual o trabalho do filósofo não começa no homem, mas em Deus. Não sobe do espírito ao Ente, mas desce do Ente ao Espírito”. ABBAGNANO, Nicola, op. cit., p. 728)

Essa oposição entre Platão e Aristóteles, possibilita, por um corte metodológico: fixar a discussão em torno do tema que atualmente tem ocupado tantos juristas renomados: descobrir a adequada hermenêutica para, numa interpretação sistemática, integrar situações conceituais singulares que envolvem o ser empírico e a lógica jurídica dos valores culturais, representados pelos princípios estruturados em conceitos formais universais.

Identifica-se, portanto, um marco importante: de um lado Platão, determinando a busca da solução na abstração, na idealização; de outro, Aristóteles, referindo que os objetos da natureza devem ser examinados sob uma ótica empírica, sem abrir mão da metafísica.

Essa discussão irá se repetir no curso do estudo, notadamente no capítulo sobre Hermenêutica, onde se terá que enfrentar a conceituação do evento, do fato jurídico, para se identificar a base impositiva, ou seja, a base de cálculo do que é renda, a partir de um conceito de renda universal.

Tem-se um início de compreensão do que é conceito universal pela simples leitura de uma frase contida no acórdão RE nº. 201.465-6 (retromencionado), em que o, então Ministro, Nelson Jobim afirma: “lucro não é um conceito ontológico, como se existisse nos fatos uma entidade concreta denominada Lucro Real”.

Vê-se, daí que a decisão foi moldurada unicamente a partir do conceito universal formalmente posto. O que se sustenta é que esse conceito é analítico e deve ser inferido a partir de um conceito singular, que tem sua estrutura em linguagem formada pelo procedimento verificatório da base de cálculo.

Trata-se aqui da distinção entre ôntico e ontológico. Ou seja, a renda deve ser estabelecida como um elemento ôntico. O ôntico é um ser real singular, formado em linguagem, por via da captação de elementos concretos (os elementos existentes empiricamente, possíveis de serem captados pela experiência); ontológico, entificado por abstração, somente existe em essência universal, que substitui o fato jurídico em forma de conceito, de natureza abstrata101.

101 Stein refere: “A ontologia é a concepção de uma determinada realidade que se apresenta como definitiva. Ontologia é uma teoria do ser e portanto, uma teoria que estabelece como o mundo é. No universo das teorias hermenêuticas e no universo das teorias do sentido, nós não trabalhamos com realidades ontológicas. Pela primeira vez, de maneira clara, eliminam-se os mundos paralelos da filosofia. Sempre que se dizia que a filosofia trabalhava com o supra-sensível, como o mundo divino, com o mundo ideal, etc.” STEIN, Ernildo. Op. cit., p. 41.

Por exemplo, a propriedade empírica de um objeto é uma propriedade ôntica; o ente abstrato posto em essência é ontológico: é a formação de um conceito a partir de um a priori que passa a ser uma abstração mental (segundo Tugendhat, trata-se de uma concepção lógica situada no psicologismo).

Com esses comentários deixa-se marcada a importância de manter o foco na origem dos paradigmas, que influem na formação lógica das razões de decidir, por via de conceitos meramente formais, representativos de um gênero ou tipo, afastados do concreto. Com esses conceitos formais não se alcança a individualização de uma ocorrência.

Aristóteles, novamente contrariando Platão, deita as bases da forma de identificar o analítico, quando descredencia os sábios a fazerem afirmações definitivas sobre questões éticas, inerente aos seres em ação – os mutáveis – e invoca o conhecimento de peritos para tal fim. Aqui, em regiões ônticas específicas, se contrapõem também o pensamento idealista (Platão) e o realista (Aristóteles). Ao contrário de Platão, Aristóteles busca, junto ao cidadão, idéias para conciliar as opiniões dos sábios com a opinião de muitos, exatamente por considerar fundamental a práxis da vida. A esse propósito, Hessen102 refere-se a Aristóteles:

Seguindo suas inclinações empiristas, ele (Aristóteles) deslocou o mundo platônico das idéias para a realidade empírica. As idéias não constituem mais um mundo pairando no vazio, não se encontram acima das coisas, mas nelas, são as formas essenciais das coisas. Elas nos apresentam o núcleo essencial e racional das coisas, que as propriedades empíricas envolvem como uma membrana. A partir desse pressuposto metafísico, Aristóteles procura dar solução ao problema do conhecimento. Se as idéias estão postas nas coisas empíricas, não faz mais sentido falar numa visão pré-terrena das idéias no sentido platônico.

Em outras palavras, o conceito abstrato de idéias estrutura-se num vazio, mas dentro das próprias coisas empiricamente. Esta idéia é retomada pela Fenomenologia, que será comentada adiante.

Pela contemplação do imutável, o ser humano busca atingir o conhecimento metafísico, que tem natureza especulativa, e visa encontrar as virtudes éticas, atitudes, hábitos, valores humanos consolidados, costumes, formando o que modernamente denominamos cultura. Entre esses elementos culturais está o substrato social, que se forma no correr dos tempos numa sociedade que busca, por

via da repetição de paradigmas específicos, destacar hábitos valorativos de ações socialmente relevantes, como padrões de conduta específicos, “arquétipos de idéias”, que moldam uma determinada convivência social e que são identificáveis por processos científicos verificatórios.

Na antiga Grécia, os sofistas, que conheciam a convivência social de inúmeras nações, formavam uma terceira corrente de pensamento e entendiam que todas as regras sociais decorriam não de uma dedução do absoluto, mas de mera convenção social, adotada segundo as conveniências dos que decidiam103.

Aqui se mostram as primeiras marcas da teoria contratualista, que serviu de paradigma essencial da teoria política, passando a girar em torno do direito natural, notadamente a partir de Thomas Hobbes104 e que se manteve como forma de

justificar a relação entre os cidadãos e o Estado, praticamente até a atualidade. Por volta do século IV da era cristã, com Agostinho105, iniciava-se novo

momento na história da filosofia, que deixaria o platonismo voltado ao estudo de Deus e da alma. No lugar do ente supremo imutável, que constitui o a priori da doutrina de Platão, adota-se o Deus cristão como axioma além do qual nada existe, e no qual se encontra a verdade superior, imutável, a condição e a origem de toda a verdade particular.

Agostinho, de certa forma, já diferencia o conhecimento adquirido através dos sentidos e do intelecto, tal como reconheceram os racionalistas e os empiristas a partir da Renascença, pois localiza no homem dois sentidos: o que capta o bem e o que se coaduna com o mal, entificado pelo que é pecado.

103 Desenvolve-se, com esse pensamento, a idéia de existência de um sistema de normas superiores às normas instituídas pelos cidadãos. Essa dualidade de sistemas normativos (normas naturais x normas convencionadas) representará a base de toda doutrina jus naturalista. GAIANO FILHO, Itamar, op. cit., p. 13.

104

Thomas Hobbes - 1588-1679, matemático, teórico político, e filósofo inglês, autor de Leviatã (1651) e Do cidadão (1651). Na obra Leviatã, explanou os seus pontos de vista sobre a natureza humana e a necessidade de governos e sociedades. Sua filosofia política foi uma resposta para os problemas que o método cartesiano introduziu na filosofia moral. Hobbes argumenta que não se pode conhecer nada sobre o mundo exterior a partir das impressões sensoriais que temos dele.

105 Aurélio Agostinho – 354-430. Agostinho de Hipona ou Santo Agostinho, bispo católico, teólogo e filósofo. Figura central no cristianismo e na história do pensamento ocidental. Muito influenciado pelo platonismo e neoplatonismo, particularmente por Plotino. Agostinho foi importante para o batismo do pensamento grego e sua entrada na tradição cristã e na tradição intelectual européia. Acreditava que Deus existe fora do tempo e no "presente eterno"; o tempo só existe dentro do universo criado. O pensamento de Agostinho foi também basilar em orientar a visão do homem medieval sobre a relação entre a fé cristã e o estudo da natureza.

Agostinho entendia que, para conhecer as coisas por via empírica, havia uma luz física iluminando os sentidos; para conhecer as coisas por via do conhecimento intelectual, era necessária uma luz espiritual, a qual provinha de Deus como verdade única e imutável, promovendo-se, assim, uma transferência das idéias platônicas para o plano da fundamentação da escolástica.

No Verbo de Deus existem, pois, as verdades eternas, as idéias, as espécies, o princípio formal das coisas; trata-se dos modelos racionais abstratos e estruturadores, em forma de autêntica matriz de racionalidade psicológica, dos seres e das coisas existentes como essência, nos paradigmas abstratos construídos pelos idealistas contemporâneos.

Dessa forma, o paradigma do conhecimento se estrutura sobre um homem que, pela alma, tem acesso ao verbo divino e consegue captar, por via do espírito, o conhecimento da verdade. 106

O Verbo – objeto posto em linguagem – era a realidade existente, tendo-se então os pilares mestres do ontologismo teológico. Vê-se então, claramente, os caminhos de sujeição do homem, por via de uma uniformização do controle da concepção de idéias posto a serviço da Igreja. Tem-se aí a forma de convencimento da população, por meio da lógica fundada no psicologismo.

Agostinho, com fundamento nas escrituras, adota o axioma Deus, a origem da existência, o a priori, reconhecendo que no espírito do homem havia uma presença particular de Deus, que constituía a via racional de acesso ao divino. Reconhecia também o a posteriori, empírico, as imperfeições das coisas manifestadas pelos sentidos.

A transição entre o platonismo e o cristianismo fundamenta-se, pois na ortodoxia cristã, num axioma que reconhece um Deus único como o plano do poder racional infinito, eterno, imutável, posto espírito, consciência, vinculada ao homem como decorrência de um livre criador divino das coisas.

106 Hessen afirma: “O conhecimento simplesmente ocorre quando o espírito humano recebe as idéias do Nous, sua origem metafísica. Essa recepção é caracterizada por Plotino como uma iluminação. “A parte racional de nossa alma é sempre preenchida e iluminada a partir do alto.” Este pensamento é acolhido por Agostinho e modificado no sentido cristão. No lugar do Nous, entra o Deus pessoal do cristianismo. As idéias convertem-se nos pensamentos criativos de Deus.” HESSEN, Johannes, op. cit., p. 51.

Hessen dá conta de que esta idéia seria retomada no século XIX pelo filósofo Gioberti107, denominando esse paradigma de ontologismo108:

No século XIX, o filósofo italiano Gioberti irá retomar essa idéia. Segundo ele, conhecemos as coisas com uma visão imediata do Absoluto em sua atividade criadora. Por partir do ser real absoluto, Gioberti chama seu sistema de ontologismo. Desde então, essa designação tem sido aplicada a Malebranche e a doutrinas afins, de modo que hoje se entende por ontologismo, num sentido geral, a doutrina da intuição racional do absoluto como fonte única, ou pelo menos principal, do conhecimento humano.

A idéia cristã do pecado admite os desvios de moralidade como o mal que age contra a vontade de Deus, ente dotado de inteligência, admitindo, dessa forma, uma vontade contrária aos desígnios de Deus, posta no homem. Instala-se, aqui, mais uma vez uma bipolaridade – homem-pecador e homem-divino ou homem- animal-irracional e homem-racional.

Por isso, o homem-animal é dotado de racionalidade, uma vez que busca o conhecimento através de Deus e situa-se além dessa racionalidade. Reconhece-se então, a existência do supra-racional, onde se fundamenta a lógica de Port-Royal que, contudo, ao invés de denominar esse “supra-racional” de “Deus” absoluto, o denomina de Razão.

Essa transição entre o conhecimento da fundamentação teológica para a justificação antropológica, mantém, pois, essa bipolaridade do conhecimento que fundamenta grande parte do pensamento moderno. As idéias de Tomas de Aquino109 mantêm a mesma matriz teológica, não modificando os paradigmas

filosóficos anteriores a ponto de terem destaque no que aqui interessa.

107

Vincenzo Gioberti-1801-1852, filósofo e político italiano. Na história do "Risorgimento Italiano" a

obra política e filosófica de Gioberti teve grande eficácia. Quando jovem, pareceu ter pertencido à sociedade secreta chamada "Circoli" que visava à liberdade e à independência italiana. A sociedade foi logo descoberta e dissolvida, mas Gioberti continuou a exercer sobre o jovem clero e os laicos, o seu poder de ação repleto de idéias anti-monárquicas.

108 HESSEN, Johannes, op. cit., p. 52. 109

São Tomás de Aquino - 1227-1274, tido como santo pela Igreja Católica, frade dominicano e

teólogo italiano. A partir de São Tomás a Igreja tem uma teologia (fundada na revelação) e uma filosofia (baseada no exercício da razão humana) que se fundem numa síntese definitiva: fé e razão. Um dos maiores mestres da Igreja, conseguiu alcançar um profundo entendimento da espiritualidade cristã; tentou mostrar que a filosofia e a religião não podiam competir: era dois caminhos que levavam a um mesmo fim; tinha como objetivo mostrar a existência de Deus, usando a razão. Escreveu dois livros e procurou unir a filosofia de Aristóteles à fé.