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Ser racional nada mais é do que formular sistematicamente elementos de um mesmo contexto, para obter uma visão coerente de um todo a partir de suas partes. Ou seja, a verdade deve ser estabelecida por critérios específicos, que garantam a fundamentação em elementos criticáveis, postos de forma que possam resistir a um confronto de idéias, voltado à justificação de fundamentos: “Uma interpretação dominante no mínimo deve ser mais provável que outra”. Stein209

ainda acrescenta:

No momento em que falo de uma racionalidade do ser humano, numa racionalidade do conhecimento, ligo essa racionalidade ao problema da verdade. Verdade como propriedade daquilo que é dito – propriedade, portanto, específica de proposições ou sentenças dentro de um universo lingüístico expresso por uma linguagem descritiva. Racionalidade, portanto, está ligada à verdade. Onde não há verdade não há racionalidade.

Com esses elementos, se forma um outro núcleo de compreensão que será necessário mais adiante, quando se enfrentar o procedimento para verificar o que é renda sob o critério da realidade. Trata-se do objeto empírico que, para ser conhecido, carece de uma análise, de uma explicação: explicar é abrir as dobras, o que às vezes é simples e outras, carece de complexos processos de captação gradativos. Tais processos de captação (de desdobramento nos seus elementos da verdade) são universais, porque por meio deles se poderá captar a realidade que se instala como singular e, assim, a formulação do processo em si constitui uma região ôntica específica. A este propósito leciona Manfredo Oliveira210:

Enquanto hermenêutica, radicaliza-se a superação da metafísica, que, em sua essência, a partir dessa postura, nada mais é do que a permanente tentativa de negação da finitude, superação da temporalidade. Em síntese, metafísica é a pretensão a uma verdade absoluta, e isso significa para a hermenêutica autonegação da finitude.

O que se quer, ao final, é demonstrar que a perseguição da verdade singular não se harmoniza com a construção conceitual genérica, por via da qual molda-se uma síntese ideal, a partir de uma abstração mental, encobrindo elementos essenciais e acidentais do fato concreto. Nesse processo hermenêutico, a abstração da realidade se situa no lado oposto da Fenomenologia hermenêutica, que busca a primeira aproximação da realidade do singular. Retornando ao objeto “renda”, para que haja controle do poder de tributar, no caso de incidência nos casos concretos, terá que se restringir ao que é renda – concreta – em cada caso de tributação. São diretas as palavras de Paulo de Barros Carvalho: 211

O conceito que se contém na hipótese haverá de representar o acontecimento de um fato, mediante o oferecimento de critérios que nos permitam identificá-lo. Para tanto, é mister sabermos de sua estrutura central, bem como das circunstâncias de espaço e de tempo que haverão de condicionar seu nascimento.

Diante desse contraponto, que aos poucos forma um plano de argumentação, busca-se examinar a racionalidade nos seus três níveis, a saber: 1) o senso comum; 2) o ideológico, e 3) o científico.

210 STRECK, Lenio luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 2 ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 161. Cfe. Oliveira, Manfredo, op. cit., p. 231.

211 CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma tributária. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 123- 124.

Em todo pensamento sempre haverá argumentos que são afirmados a partir do senso comum. Dentre eles se insere o bom senso, como um estágio de pensamento mais elaborado criticamente; haverá também argumentos que têm conteúdo ideológico postos, às vezes, de forma escancarada e, outras, de forma encoberta por argumentos de neutralidade e que visam impor idéias de interesse da pessoa ou do grupo. Entre esses se inserem, v.g., alguns argumentos – que estão se tornando rotina no país – que invocam razões “puras de estado” (como as justificadas por Maquiavel), em que são advogadas e às vezes definidas causas tributárias em favor do Estado, em face da perda de arrecadação.

Essa divisão se prestará como meio de estabelecer e explicar (desdobrar), didaticamente, os critérios, hermeneuticamente justificadores das verdades alegadas sob a ótica da interpretação. Utilizam-se, para tanto, estratégias didáticas que permitem chegar passo a passo nas suas proximidades, por via de um debate dialético mais agudo.

Cabe, então, lembrar que, quando se enfrenta a forma de conhecimento dos pressupostos factuais, instituídos como núcleos de controle do poder de tributar do Estado que, se ocorridos, implicam a relação jurídica, não se fala de uma realidade qualquer. Terá que se estabelecer o evento que, se ocorrido como fato social, desencadeia a relação jurídica. Pela enumeração das formas de pensar, exclui-se do contexto da racionalidade a possibilidade de se laborar sem critérios objetivos, porque, sem haver uma demarcação por uma estrutura hermenêutica que conduza à interpretação, não poderá haver uma justificação. A regra, então, é identificar a estruturação técnica, metodológica do pensamento.

Refere Ernildo Stein, a propósito:

Quando usamos os instrumentos disponíveis, fazemos uma interpretação metódica – sistemática que é o campo das ciências propriamente humanas. Na interpretação gnosiológica são analisadas as estruturas hermenêuticas do próprio conhecimento. 212

Segundo Pedro Demo213, o discurso orientado pelo senso comum tem

caráter intersubjetivo, mas é posto de forma não-metódica, afirmado a partir de uma

212 STEIN, Ernildo, op. cit., p. 50.

213 Pedro Demo refere que: O critério de distinção do senso comum é o conhecimento acrítico, imediatista e crédulo. O homem simples da rua também “sabe” de inflação, mas seu conhecimento é diferente do daquele do economista, que é capaz de elaborar um a teoria da inflação, discutir causas e efeitos. (op. cit., p. 18)

espontaneidade, às vezes, até de uma ingenuidade. Em termos genéricos, o conhecimento sem critério metodológico, afirmado o senso-comum, não se importa com o controle da verdade; é simplesmente um redizer de idéias aceitas acriticamente por um grupo de pessoas ou comunidades maiores, a partir do que se ouviu dizer e do que se acredita ser, sem qualquer indagação quanto a sua veracidade. Em outros termos, sem obedecer a qualquer paradigma que estruture sistematicamente o conhecimento.

Pedro Demo214 identifica esse conhecimento ideológico esclarecendo que,

“enquanto o senso comum manifesta uma visão ingênua, o conhecimento ideológico é tendencioso, não encarando a realidade assim como ela é, mas de propósito a apresenta assim como gostaria que fosse em face de seus interesses”.

Pela enumeração dos elementos ausentes no pensamento orientado pelo senso comum, para reconhecer o caráter científico, há que se promover um estudo profundo, que tenha “compromisso com a verdade”, um rigor lógico afirmado por um senso crítico. Não basta haver uma comunidade (mesmo científica) que estude o tema, ou um órgão que tenha competência definidora de sentido, e que, na sua maioria, concorde com uma determinada conclusão em forma de um reconhecimento paradigmático. É necessário que as conclusões repousem em base teórica, hermeneuticamente formulada, construída a partir de paradigmas de racionalidade específicos de apreensão, ainda não refutados, de captação de sentido adequado e materialmente criticável, do objeto.

O pensamento racional pode se subdividir em científico, metafísico e teórico instrumental. Recorda-se, para manter o foco no objeto no presente estudo que, se adotou como hipótese inicial que a renda posta constitucionalmente (como base impositiva do respectivo imposto), constituída por elementos empíricos e, como tal, não pode ser conceituada abstratamente; dependendo, para ser apurada, de um procedimento de verificação que concretize renda a partir de um conceito singular. Trata-se, então, de um instrumental cientificamente estruturado que visa exatamente certificar se em cada caso ocorreu renda e, caso tenha ocorrido, estabelecer sua quantificação.

Fazendo-se uma figuração proposta (sempre perigosa no contexto científico), representa-se empiricamente a água. Quimicamente, a água é uma

substância (objeto natural) e é formada a partir da formula H2O. Trata-se, então, da identificação genérica – ou universal – de seus elementos. A forma de descrição dessa substância fica, então, centrada numa formulação química, núcleo de uma matriz ôntica, indicativa de sua composição por uma metodologia da análise química específica, que permita constatar-se empiricamente a presença da água sob o critério da verdade. Não se tem forma lógica metafísica – racionalmente pura – para constatar esse fato. Não se pode dizer que é razoável afirmar que se trata de água. Por isso, sem que se faça a análise (química) adequada, através de um procedimento neutro verificável, não se tem condição para afirmar se há, fisicamente, presença de água. O processo de verificação será formulado por um processo tal que se tenha um encadeamento de condutas – critérios de ação que ao final permitam que se afirme a composição da substância. Assim, a fórmula genérica H2O é implicada por um processo de análise, por via de uma decomposição de seus elementos, cientificamente estruturada, por constatar se esta (fórmula) ocorre no caso singular submetido à constatação.

Por esta via, em outros termos, quer-se constatar – pelo procedimento químico (identificado) – se o conceito universal de água se realiza, ou ocorre no caso singular que se busca conhecer. Aliás, esses processos de verificação química são fundamentais à tributação, para efeito de classificação de mercadorias importadas e na tributação de alguns produtos industrializados no IPI.

Pode-se afirmar, pois, que o conhecimento de um determinado objeto depende da articulação sistemática como um todo, submetendo ao debate crítico seus elementos formadores e estrut uradores de conteúdo, a partir de metodologia adequada à compreensão de conteúdos; que seja, também, suficiente e permita uma avaliação crítica e reconstrutiva da atividade da captação da realidade.

Mantendo-se no exemplo do DNA, o que permite estabelecer a veracidade sobre seus elementos é um procedimento de verificação específico, conhecido pelo cientista e posto a público, para que possa ser repetido como forma de contestabilidade. Assim, para captar qualquer realidade singular, inferida a partir de um conceito universal, se impõe a adoção de processos de verificação adequados, absolutamente neutros, o que, como se verá, ocorre também no processo de apuração da renda. Trata-se, então, de um proceder analítico.

Há que se adotar uma metodologia, preponderantemente sistêmica, que permita examinar os diversos planos dos objetos, separando os que podem ser

conhecidos por via de uma experiência conceitual genérica, e os objetos concretos, sujeitos à análise empírica.

Outra região ôntica carece de uma forma específica de orientação do pensamento: a que estrutura o procedimento verificatório, de natureza instrumental, acima mencionada; um instrumental que tem como objeto estabelecer os procedimentos técnicos que, adotados, direcionam, justificam e fundamentam o conhecimento da verdade. Refere, acerca do tema, J. A. Lima Gonçalves:

A vinculação do ato da administração verificadora consistiria precisamente neste ser fiel às características da realidade constatada, trazendo-a – essa realidade – para o plano normativo por meio de um enunciado de significação, vocacionado à produção de certos efeitos jurídicos na prevenção – inerente ao ato administrativo – de que o ato traduz o acuramento da realidade.215

Os procedimentos técnicos, de forma geral, devem ser formais e constituem- se por via de uma sucessão de atos específicos sistemática e criteriologicamente encadeados, através dos quais se fundamenta e se justifica a constatação da verdade empírica. Esses processos não se orientam pelo vetor verdadeiro ou falso, não são razoáveis ou menos razoáveis como as verdades metafísicas; estão localizados fora da análise empírica e também da matriz de racionalidade metafísica. São avaliados a partir de outro paradigma específico: ou se prestam ao fim a que se destinam ou não.

No direito tributário – em face do princípio da estrita legalidade – este procedimento verificatório deve estar previsto em lei. Em face disso, a estrutura legal deste instrumental deve se adequar à metodologia que conduza à obtenção da verdade criticamente verificável. Ou seja, o horizonte axiológico a que o legislador deve estar voltado para estabelecer este procedimento e o encadeamento sistemático de critérios – na acepção de pré-solução técnica – para alcançar um determinado fim. Por isso, as normas estruturantes desse procedimento instrumentalizador devem ser vistas sob a ótica da neutralidade, encerradas no contexto do adequado ou inadequado.

De fato, para Hume, todos os objetos da investigação humana dividem-se em duas grandes classes: as relações entre as idéias e as coisas de fato. As relações entre idéias “podem ser descobertas com uma operação pura

215 MELLO, Celso Antônio Bandeira de (Org.). Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba. Direito tributário. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 162.

do pensamento, sem depender de coisas que existem em algum lugar do universo”.

Portanto, as verdades dessa natureza (que constituem a geometria, a álgebra, a aritmética e, em geral, a matemática) não precisam de averiguação, mas sua verificação está à disposição do homem a qualquer momento e sem recurso a confirmações experimentais. No que concerne aos conhecimentos da realidade de fato, ao contrário, o seu único fundamento é a relação entre causa e efeito. Mas, por sua vez, o fundamento dessa relação é a experiência, e se perguntarmos qual é o fundamento das conclusões tiradas da experiência, a resposta a ser dada, segundo Hume, é que esse fundamento nada tem de racional, mas é simples instinto. 216

Resta claro que cada ser deve ser captado por um método específico: v.g., não se chega ao DNA de uma pessoa pelo método racional puro, nem pela Teologia. Por isso, não se pode tentar apreender os objetos dessa região ôntica, todos imanentes ao sistema jurídico, pelo positivismo metodológico apoiado em conceitos universais. Trazendo esse aspecto para o plano da decisão jurídica, afirma-se que não se pode cogitar à possibilidade da decisão jurídica sobre a existência ou inexistência de um determinado ser, sem justificar e fundamentar criteriologicamente tal afirmativa a partir de uma singularidade.

A mera opinião do magistrado, para negar, ou afirmar, a verdade do conhecimento relativo a um ser empiricamente existente não constitui verdade racionalmente justificada. A opinião do magistrado, nesses casos, se inclui no âmbito do conhecimento formulado no plano do senso-comum, justificada pela crença na formulação absolutamente subjetiva.

Em outros termos, trata-se de uma afirmação subjetiva que não se coaduna com a forma racional de dizer o que é, considerando sempre que o racionalmente estabelecido tem compromisso com a demonstração da verdade; por isso, uma vez existindo uma estrutura de um pensamento hermeneuticamente estruturado para estabelecer o conhecimento de um objeto, por uma via empírica, o Poder Judiciário não pode simplesmente negar sua aplicação. Para negá-la há que se estabelecer um contra-argumento justificado, fundamentado racionalmente a sua rejeição. Por isso, estabelecer uma verdade por via de um procedimento inadequado é laborar no plano ou do senso comum, ou do ideológico. Isto é, quando há procedimentos que podem confirmar a verdade, estes devem ser utilizados pelo judiciário.