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4.1 História política

4.1.4 Surgimento do cidadão contemporâneo

O homem passa a ser responsável por si, e como tal, sua sorte assume interesse absolutamente individual. Com o reconhecimento da liberdade religiosa, o Estado perde um importante código de controle ético.

147 “A teoria teológica do poder foi certamente proclamada pelos defensores da monarquia absoluta: no curso do século XVII uma das doutrinas mais difundidas era denominada “direito divino dos reis”. Mas a origem divina do poder foi proclamada também pelos defensores do Estado democrático: vox populi vox Dei. Na afirmação que o poder deriva de Deus, de fato não está incluída também a afirmação de que o poder tenha que pertencer a um príncipe mais que ao povo. Seguramente, o que vale para os fins de compreender o desenvolvimento do Estado moderno é exatamente a passagem da soberania do príncipe para a soberania do povo; e esta passagem acontece independentemente da mudança de opinião sobre a origem do poder.” BOBBIO, Norberto, op. cit., p. 18-19.

A luta contra os fundamentos filosóficos da igreja iniciou-se muito antes da Renascença, quando se preparava o caminho para a fundamentação do conhecimento moderno; junto com a liberdade civil e religiosa se constrói a liberdade de expressão, como parte integrante dos regimes democráticos que surgem149.

A moralidade religiosa condenava os aspectos da vida privada, entre eles a ganância, que eram fundamentais ao desenvolvimento econômico. Por isso, o enriquecimento das classes emergentes buscava sua libertação do poder escolástico, pela independência econômica pessoal, emergindo daí um novo homem, livre das amarras da Igreja e do Estado (vale dizer da religião e da ética), tal como surgiu no mundo, livre por natureza. Da grande fonte de poder contra a submissão da igreja brota, então, uma sociedade civil, em cujo seio passa a se conformar, no curso de séculos, a política fundada em nova cidadania, em busca da formação de um estado em que o homem fosse livre para pensar, falar, se autodeterminar.

A classe média passou, então, a dar sustentação política às monarquias absolutas, que buscavam sua independência, essencialmente, da igreja. Era de interesse das elites desse movimento a abolição total das regras morais religiosas, as quais condenavam a acumulação de grandes fortunas e que dificultavam o estabelecimento dos fundamentos do desenvolvimento da economia. Agrava-se a luta contra a igreja católica, inicia-se a instituição de outras igrejas, e emergem então as correntes religiosas reformadoras, na sombra dos monarcas.

Ao mesmo tempo, o Absolutismo necessitava de uma normatização que dissolvessem antigos laços com as competências legislativas e permitisse aos soberanos estabelecer ordenamentos que os perpetuassem no poder de forma segura. Emergem, então, os Estados com seu ordenamento jurídico como fonte secundária (uma vez que o direito natural, os costumes, e os costumes regionais das comunidades, tinham precedência hierárquica), mas que gradativamente passaram a buscar a condição de única fonte de poder, o que consolida o poder absoluto dos reis.

Desses movimentos, destaca-se a cisão entre a Igreja e o Estado, com conseqüente libertação deste em relação àquela. Ao mesmo tempo, a Ciência conquista gradativamente a sua autonomia, e a filosofia passa a se isolar do poder

da Escolástica. Surge então, a transição do divino – plano em que a verdade do ser repousava no eterno – para a razão humana.

No campo político, surgem as obras de Maquiavel, entre as quais se destaca O Príncipe, escrita em 1513, e publicada postumamente em 1532, cujo foco é combater as virtudes, libertando os governantes da moralidade e indicando o caminho político da máxima vantagem, fundado numa nova concepção de uma “razão de Estado”. As virtudes antes impostas pela igreja, que a mantinha na condição de controladora e justificadora do Estado, foram combatidas abertamente, como se observa: 150

a virtude é um poço onde se enterra o futuro constituído por modas, costumes e ideologias não questionadas. A pessoa virtuosa é dirigida pela coletividade e passa a ser o que a sociedade quer. Os obstáculos criados pelas virtudes são verdadeiros bloqueios ao livre agir e pensar.

A obra de Picco Della Mirandola (1546, um escrito denominado Acerca da Dignidade Humana) destaca a individualidade do ser humano e dá ênfase à liberdade humana, mostrando a inexistência de barreiras metafísicas que predeterminam o homem ontologicamente151. O homem como ser individual, é livre,

dono de seu destino e responsável por si mesmo. Manifesta-se esse autor contra as amarras da moralidade e do domínio do Deus externo – cristão.

Segundo Mirandola, o homem possui o poder de se autodeterminar e, desse modo, coloca-se acima do mundo físico-biológico. Inscreve-se aqui o problema da responsabilidade moral. 152

Mas com que objectivo recordar tudo isto? Para que compreendamos, a partir do momento em que nascemos na condição de sermos o que quisermos, que o nosso dever é preocuparmo-nos, sobretudo, com isto; que não se diga de nós que estando em tal honra não nos demos conta de nos termos tornado semelhantes às bestas e aos estúpidos jumentos de carga. Acerca de nós repita-se, antes, o dito do profeta Asaph: “Sois deuses e todos filhos do Altíssimo”. De tal modo que, abusando da indulgentíssima liberalidade do Pai, não tornemos nociva, em vez de salutar, a livre escolha

150

MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 43. 151

Maria de Lurdes Sirgado Ganho, refere num comentário inicial a obra de Picco della Mirandola (PICO, p. 27-28) “enquanto o animal, devido à natureza que lhe é dada à partida, só pode ser animal e o anjo só pode ser anjo, o homem tem quase o poder divino de se constituir segundo aquilo que quiser ser: pode degenerar até aos brutos e pode regenerar-se até aos anjos, mas a possibilidade de viver como os animais ou como os seres espirituais, depende inteiramente de si mesmo, isto é, da sua escolha. Esta tese, para a época, é verdadeiramente notável e peculiar, o homem, ser de natureza indefinida, com a possibilidade de ser tudo, está condenado a escolher, está condenado à liberdade, por parte de Deus. É porque tem de escolher, o homem é autor de seu destino. Eis o grande milagre”. MIRANDOLA, Giovanni Pico Della. Discurso sobre a dignidade do homem. Textos filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1998.

que ele nos concedeu. Que a nossa alma seja invadida por uma sagrada ambição de não nos contentarmos com as coisas medíocres, mas de anelarmos às mais altas, de nos esforçarmos por atingi-las, com todas as nossas energias, desde o momento em que, querendo-o, isso é possível. (sic)

O projeto de homem desenhado por Picco Della Mirandola pode ser assim resumido: cada um tem o direito de ser um projeto de si, o que é, aliás, a regra social que está na raiz da consciência das pessoas na era contemporânea.

A luta pela liberdade política contemporânea se iniciou firmando um novo paradigma, que adota o homem como ser racional e livre para se auto-assumir. Desta nova posição é que eclodiu o movimento que aos poucos foi controlando o Estado através da sociedade civil. Trata-se de uma manifestação que brota no seio social, a partir da razão e da consciência de cada ser humano, instigados pelos seus líderes que, em forma de coletividade, buscam se autodeterminar.

Maquiavel153 tinha como objeto essencial a libertação do exercício do poder

dos governantes das amarras da moralidade religiosa.

Como se verifica no início da Renascença se instala o Absolutismo, mas as idéias de luta por uma troca do paradigma de um Estado justificador da via social, para um Estado necessário, estavam plantadas.