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4.1 História política

4.1.2 Os cristãos

Pela concepção Agostiniana o intelecto humano era, como em Platão, iluminado pelo divino, por via da alma que estava vinculada ao espírito que provinha de Deus. Essa matriz de inteligibilidade constitui, pois, a gênese psicológica do conhecimento, em que o espírito humano está em relação imediata com o inteligível e por isso, de certo modo, tem a intuição do inteligível. Têm-se aí as raízes da justificação do Racionalismo psicológico, adotado pela denominada lógica de Port- Royal (mencionada no capítulo 2) daquela época, e a indicação de que a razão era a moduladora dos objetos ônticos, tal e qual os “encontrava” no plano absoluto.

Essa captação originária pela psique, denominada ontologismo, historicamente, tem sido o centro do debate que se pretende ancorar o pensamento num ponto limite, entre as quais se destaca o “a priori” por via de conceitos abstratos144.

Tomás de Aquino, que nasceu em 1227, separa-se de Agostinho por praticamente oito séculos, e com ele a escolástica toma novos rumos. Tércio Sampaio Ferraz Júnior145 refere:

É verdade que a soberania, enquanto direito fundante da ordem jurídica, era limitada pela idéia de soberania divina, ou seja, de um poder político que encontrara sua fonte e seu limite em Deus. A potestas deriva-se dessa suprema auctoritas, interpretada conforme o ensinamento da Igreja que, por isso mesmo, atuou, na prática, como uma limitadora do poder político. De qualquer modo, porém, a concepção jurídica do poder, ensaiada pelos juristas medievais por meio de suas técnicas dogmáticas e fundada na

144 Hessen refere: “Segundo o a priorismo, nosso conhecimento apresenta, como o nome dessa tendência já diz, elementos que são a priori, independentes da experiência. Essa também era decerto a opinião do Racionalismo. Enquanto este, porém, considerava os fatores a priori como conteúdos, como conceitos completos, esses fatores são, para o a priorismo, de natureza formal. Eles não são conteúdos do conhecimento, mas formas do conhecimento. Essas formas recebem seus conteúdos da experiência – aqui, o a priorismo separa-se do Racionalismo e aproxima-se do Empirismo.” HESSEN, Johannes, op. cit., p. 62.

noção de soberania, foi uma visão circular e eminentemente ética, no sentido de que o respeito à lei devia ser algo primário nas relações de governo: os objetivos do poder são o bem comum, o bem comum é a obediência às leis que o poder prescreve.

Tomás de Aquino pregava que o homem é forçado a viver em sociedade em face de sua natureza social e política. Dentre esta vivência, pela ordem, a primeira sociedade é a família e, segunda o Estado, do qual depende o bem comum dos indivíduos. Tomás de Aquino, de certa forma, admitia que o homem não era um meio para o Estado, mas que o Estado tinha como função ser um meio para a realização do indivíduo, entendido sempre dentro dos paradigmas escolásticos da época. Mas mesmo assim, o Estado mantinha a função repressiva, a econômica, a organizadora e a espiritual que se manifestava na moralidade.

Assim, se na era platônica, a polis era o centro polarizador, tendo o homem como elemento polarizado, para Tomás de Aquino (mencionado no capítulo anterior), o homem vai se deslocar, ainda de forma tênue, em direção ao centro, onde ele passa a ser reconhecido como ser essencial, o que é concretizado pelo Iluminismo.

A este propósito, refere Itamar Gaiano Filho: “A Igreja Católica absorveu grande parte da filosofia grega, especialmente da filosofia platônica, para desenvolver sua teologia dogmática em bases racionalmente aceitáveis, [...]”146.

Percebe-se, então, um marco essencial na concepção contemporânea, da contraposição do interesse público, em que o Estado é posto contra à coletividade e cada indivíduo tem garantido seu interesse a certos direitos que conformam sua cidadania; o Estado é o centralizador do equilíbrio entre estes dois pólos de direitos e deveres. Os direitos naturais – que modernamente estão consagrados na Constituição – constituem um tipo de direito advindo dos substratos históricos, que passavam a ser reivindicados diante do Estado e que se consagram em garantias individuais.

No período medieval, a igreja exercia um jugo sobre a moralidade individual e social, controlando tanto as pessoas como os reis e soberanos. Essa influência começa a perder força, à medida que o homem passa a se assumir como ser político, mas permaneceu por séculos como forma de controle social: como punição capital a quem tivesse a coragem de enfrentar o poder escolástico, mantendo-se até

hoje a excomunhão como penalidade máxima da não-obediência à moralidade católica. O poder de Deus era delegado aos clérigos que, pela sua condição de representantes de Deus na terra, justificavam o poder absoluto dos reis. Contra a libertação deste jugo se levantaram os movimentos políticos da classe média emergente147. Cabe lembrar, na esteira de Tércio Sampaio Ferraz Junior148 que:

Desde a idade Média, pode-se, pois, dizer, o pensamento jurídico se fez essencialmente em torno do poder real. E a recuperação do direito romano serviu-lhe como instrumento de organização. No continente europeu, o poder real tendeu a um centralismo crescente, tendo sido o direito romano, absorvido pelas universidades, o instrumento apropriado para a centralização.

Tal mudança de paradigma decorria dos movimentos civis que deslocavam o homem para o centro na teoria do conhecimento, à medida que o indivíduo se liberta de Deus como causa de todas as coisas, modifica também a ótica quanto a sua relação com o Estado. Assumindo sua razão, passa a reconhecer sua autonomia, cortando sua dependência com o Absoluto, buscando a liberdade de forma deliberada. Entretanto, à medida que alcança a liberdade civil, o homem é abandonado pelo Estado, é deixado aos cuidados de cada qual – a liberdade tem seu preço.