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Para efeito do presente subtítulo, relembra-se, a base de cálculo do imposto sobre a renda, tal qual ela emerge no mundo social, em cada hipótese concreta, gera uma relação tributária.

Tal compreensão emerge diretamente do texto constitucional e há limites rígidos impostos ao próprio legislador ordinário. Em face disso, cabe à Corte Suprema – em última instância jurisdicional – estabelecer limites intransponíveis a este legislador, com vistas a que cada cidadão tenha protegidos seus direitos e garantias.

Assim, o termo renda, por ser um conceito constitucional, penetra no plano normativo sem ter sido objeto de qualquer deformação por normas jurídicas de

63 O que certamente não deve ser confundido são os predicados: “verdadeiro” e “verificado” (=”reconhecido como verdadeiro”), sobretudo porque “verificado” é um predicado implicitamente relacional: uma proposição é verificada por uma ou várias pessoas. TUGENDHAT, Ernst; WOLF, Ursula, op. cit., p. 174.

hierarquia inferior onde se instala como conceito genérico. A renda, nesse sentido, se estabelece a partir da realidade social mediante a contraposição dos direito contratuais, que constituem eventos empíricos, que impulsionam o processo de produção de renda tributável. Antes da moldura de significação constitucional, existe somente o pré-jurídico.

Não há, então, que se considerar qualquer efeito da linguagem jurídica que não seja o constitucional. Renda, então, é signo originário por via do qual se estabelecem os limites ao poder de tributar, e há que se encontrar a matriz dos seus elementos ônticos, a partir da sua compreensão técnica no contexto da sociedade civil. Cabe então ressaltar que os arts. 109 e 110 do CTN contribuem na definição dos conceitos constitucionais como meras pré-compreensões. Esse mesmo entendimento se aplica também no que tange aos art. 43 e 44 deste Código, que enunciam elementos componentes da renda e que devem se submeter à significação do termo renda, enunciado no art. 153, III da Constituição.

A esse propósito, cabe afirmar que a ciência, até para se conformar como tal, necessita de metodologias de percepção, verdadeiros processos técnicos, científica e sistematicamente ordenados para estabelecer a verdade sobre objetos. Essas técnicas são estabelecidas, criticadas e modificadas à medida que evoluem. Quando estão disponíveis, como ocorre no caso da quantificação de renda, devem ser obrigatoriamente utilizadas pelo intérprete, mesmo porque previstas dentro do sistema jurídico para que sejam tidas como instrumentos jurídicos. A diferença é que constituem o modo de aplicação que organiza a verificação das ocorrências que implicam renda.

A ciência, essencialmente quando trata dos objetos empíricos, desenvolve teorias, cuja finalidade exclusiva é a de serem aplicadas como instrumentos, delas decorrendo as descobertas das estruturas empíricas que estavam postas na organização dos elementos internos do ente. Quando essas teorias passam a ser reconhecidas como científicas pela comunidade, devem ser obrigatoriamente adotadas por disposição constitucional, a não ser que se queira laborar no plano da ficção idealizada por meras conjecturas.

Conhecido o procedimento verificatório, impõe-se que a renda seja estabelecida em cada caso de forma real, como uma exigência constitucional. É por meio deste controle do real, que decorre da contraposição dos ativos e passivos patrimoniais, num período que se estabelecem os limites ao poder de tributar. Então,

a Carta apóia-se no caráter real do evento renda por via implícita, mas, impõe ao intérprete que estabeleça a base de cálculo e adote o devido procedimento para tal fim, indicando inclusive os critérios da universalidade e da generalidade como estruturas fixas desse procedimento (art. 153, § 2º).

Diante desses argumentos, evidencia-se que a jurisprudência, antes de se concretizar, deve estar fundamentada em métodos científicos que busquem acesso à verdade, a qual emerge em cada caso concreto, essencialmente, quando o pressuposto que desencadeia a relação jurídica é um evento, mesmo porque o primeiro critério da racionalidade é a busca da verdade. Com tais argumentos, justifica-se a exclusão do estudo, na presente tese, de questões inerentes à valoração axiológica contida em princípios.

Racionalidade pode ser então conceituada como a garantia de um pensar correto como verdade, com fundamentação e justificação material. Existe outra corrente que se apóia em axiomas ou num a priori estabelecido como uma idéia limite, que se fundamenta em um pressuposto, sem que, muitas vezes, se explique o vetor de racionalidade originário adotado. Esse vetor passa a ter importância no presente estudo por consistir uma forma de pensamento, cujo paradigma não se aceita como matriz de racionalidade aplicável no presente estudo porque se origina exclusivamente no pensamento: trata-se da transcendentalidade, porque decorre do pensamento que se torna “real” por via da linguagem idealizada sem qualquer justificação material. Santaella64 leciona, a propósito:

Retomemos, porém, a questão do pensamento e prática científica que aqui nos propusemos desenvolver, para o que novamente nos apoiamos em palavras de Srour: Assim, o conhecimento científico desdobra-se em dois planos. No plano de ‘conhecimento abstrato’ de qualquer fenômeno que ocorre universalmente em qualquer época e qualquer sítio; no plano do ‘conhecimento concreto’ de um objeto concreto e individual insubstituível. Em qualquer sociedade humana, por exemplo, encontraremos homens e mulheres, ritos e técnicas, valores e crenças, instituições e símbolos, meios de trabalho e matérias-primas, relações de produção e sanções, etc. Mas este homem singular e esta mulher precisa, este valor determinado e esta instituição característica, este tipo de relação de produção e este gênero de instrumento de trabalho, esta crença específica e esta sanção exata, são fenômenos absolutamente inconfundíveis, absolutamente históricos. Os

conceitos que expressam então generalidades abstratas são conceitos formais; os que expressam fenômenos concretos são ‘nomes’, conceitos singulares (ou empíricos segundo Althusser). Em suma, a prática cognitiva se desenvolve em duas frentes indissociáveis: produz conceitos formais, ou seja, conhecimentos abstratos de objetos que não têm existência concreta porque são generalidades

abstratas, e investe-os na produção de conceitos singulares, isto é, conhecimentos concretos de objetos reais e únicos. (grifo nosso)

Constata-se, mais uma vez, na lição acima, que estão postos em planos diferentes dois conceitos: os formais, compostos, por uma síntese abstrata; e os singulares, que se referem a objetos concretos singulares.

Também já se mencionou que o conceito singular é moldado por inferência, por um trânsito, de uma essência formal para uma situação concreta. No caso sob enfoque, ocorre o mesmo fenômeno: tem-se um conceito genérico do que é renda – acréscimo de direitos ao patrimônio de uma pessoa – conceito esse que deverá ser investido na produção de um conceito singular, estabelecido pelo procedimento verificatório da base de cálculo.

Cabe reafirmar que o conceito provoca uma pré-compreensão que se mostra de duas formas. Uma, tênue, organizadora da compreensão, aberta à necessária confrontação crítica, que será organizada pela base de cálculo captada do ser singular, na sua finitude. Outra, ao invés de se deixar conduzir pela compreensão dos elementos do ser, a partir do seu estar no mundo, aplica o conceito como está, sem utilizá-lo como inferência. A entificação do conceito, previamente formado na mente, é que terá a prioridade absoluta de estruturação e organização da existência do ser, resolvendo-se um caso singular a partir de um conceito genérico sem promover a inferência.

Miguel Reale65 refere, a esse propósito:

Devemos colocar-nos em um estado de disponibilidade perante o objeto, no sentido de procurar captá-lo, na sua pureza, assim como é dado na consciência, sem refrações que resultem de nosso coeficiente pessoal de preferências, para poder descrevê-lo integralmente, com todas as suas qualidades e elementos, recebendo-o “tal como se oferece originariamente na intuição” (descrição objetiva).

No caso da transcendentalidade clássica, identifica-se a pré-compreensão, posta em forma de paradigmas e idealizada a partir de elementos justificados por implicação formal para, pelo raciocínio lógico, estabelecer a significação aplicável ao caso.

65 REALE, Miguel, op. cit., p. 362.

Ocorre, muitas vezes, que o sujeito, adotando um núcleo de pré- compreensão racionalizado, busca, no plano fenomênico, mera justificação da pré- compreensão, adotando os elementos que convêm à estrutura do seu conceito.

Pretende-se evidenciar-se que na abstração reside o problema fundamental da formação de conceitos. Então, há uma ótica bipolar sobre conceitos: um, universal, entificado pela abstração racional e que toma o lugar do ser, encobrindo suas particularidades – é o ente que atinge, pelo conceito, uma idéia do ser universal, abstrata, e passa a ser considerado como tal, por uma determinada comunidade científica, encobrindo todos os indícios de ser singular finito66; o outro,

ótica do conceito singular, que mediatiza o ser em linguagem por via de inferência67

do conceito – da idéia – da pré-compreensão universal, a tempo presente, em que se encontra a verdade do ser finito, considerando a situação de cada ser, inserido no seu tempo e transposto ao conhecimento, por via de linguagem descritiva.

Assim, definir um ser é sempre encontrar uma síntese de idéias que permita sua percepção em linguagem, a qual cristaliza definição do ser e pereniza-o como objeto concreto. Assim, o ser, construído empiricamente, a partir do momento presente, não-entificado, não-perenizado, passa a ser mediado em linguagem pré- formada, não pela entificação do conceito universal, mas pela descrição de cada individualidade, que parte da matriz de elementos contidos no conceito universal.

A entificação do conceito em forma de paradigma é uma garantia de segurança previamente formada intersubjetivamente, a qual assegura a uniformização do sentido dos conceitos por uma síntese de elementos – um conceito entificado termina com a indagação sobre cada ser singular. Caso se fizesse uma prévia descrição do ser singular, esta serviria tão somente para justificar o conceito. O ser seria confundido com um conceito abstrato e sua existência, representada de forma petrificada.

Com a bipolaridade de conceitos, acima descrita, pode-se melhor compreender a Fenomenologia Hermenêutica, no que se refere ao “ser”. Trata-se de

66 Esclarecedora a lição de Tungendhat: “Todo conceito está no lugar de um sendo-deste-modo de algo. Se, portanto, Aristóteles diz que o ente seria o que há de mais geral, ele entende por ente não os objetos (caso em que o “ser”, como se disse acima, estaria no lugar da existência), mas sim suas determinações, e, neste caso, “ser” estaria no lugar da cópula”. TUGENDHAT, Ernst; WOLF, Ursula, op. cit., p. 160.

67 Inferência. No latim medieval, encontra-se em muitos lógicos o termo infere, que designa o fato de, numa conexão (ou consequentia) de duas proposições, a primeira (antecedente) implica (ou melhor, contém por “implicação estrita”) a segunda (conseqüente). ABBAGNANO, Nicola, op. cit., p. 562.

uma filosofia que busca surpreender, pela linguagem, o evento em sua singularidade. Stein68 refere-se ao tema afirmando:

Sempre chegamos a algo como algo, isto é, a linguagem traz em si um duplo elemento, um elemento lógico-formal que manifesta as coisas na linguagem, e o elemento prático de nossa experiência de mundo anterior à linguagem, mas que não se expressa senão via linguagem, e este elemento é o como e o logos hermenêutico.

Santaella69 refere a este propósito:

É no homem e pelo homem que se opera o processo de alteração dos sinais (substratos físicos dos objetos do mundo) em signos (substratos fenomenais da consciência). Porque é capaz de perceber ritmos, repetições no encadeamento (ação e reação) dos fenômenos, o homem os traduz em normas, leis e os representa em fórmulas.

Assim, há um conflito entre um conceito atemporal e o conceito singular, que mediatiza o instante histórico, o que ocorre a cada momento. A busca de segurança, pela possibilidade de uma previsibilidade do mundo, firma-se em conceitos de validade eterna porque a abstração, a idealização tem um fator preponderante de imutabilidade. A garantia de que a mera pré-idéia sobre os seres futuros se transforma em compreensão definitiva no momento de captação da realidade, efetivamente, enseja certa forma de indicação ao eterno, o que “permite uma noção de segurança”. 70

Sem dúvida, pela entificação, a comunidade científica instalou um poder de impor significações conceituais que implicam o controle sobre os receptores dessa significação. No caso específico das decisões do STF, esse controle se manifesta de forma absoluta; a partir das súmulas passa a impor a significação conceitual que adota Errado ou Certo – fundamentando ou não, justificando ou não justificando, a todos os órgãos de prestação jurisdicional no País. Daí a importância dos critérios de racionalidade que devem informar suas decisões.

A virtualidade decorrente da necessidade de formação de uma compreensão relativa a cada ser singular não cria instabilidade, uma vez que o conceito genérico será inferido no conceito singular por via de sua matriz ôntica – posta em essência mínima – enriquecida conceitualmente por elementos da singularidade. Mas a

68 STEIN, Ernildo, op. cit., p. 21. 69 SANTAELLA, Lúcia, op. cit., p. 165.

diferença desse modelo é que a cada momento de captação de sentido ocorre um pensar crítico, impondo que a compreensão definitiva, posta em paradigmas, consolide o conhecimento racional firmado em torno de teses e como tal assegurem a certeza jurídica de forma mais estável no tempo.

Há que se considerar que a inferência do universal ao singular em cada caso genérico (no caso aqui tratado – renda) se dará por via de critérios, já que haverá somente um modo de proceder a esta implicação. No caso da renda, requer-se um procedimento que será submetido à intersubjetividade em caráter paradigmático. O paradigma em torno do procedimento, uma vez sistematicamente estabelecido e reconhecido como eficaz aos fins a que se destina, sem dúvida ensejará a certeza necessária ao sistema jurídico, e por ele se guiarão os legisladores, a administração e os órgãos do Judiciário.

Cabe ainda acrescentar que, a formação das duas correntes de pensamento bipolar, acima descritas, foi impulsionada no final do século XX, convertendo-se em dimensão física e sensível de um ser biológico dotado de psiquismo (objeto da psicologia). Contemporaneamente, já se conhece a formação do pensamento por meio de técnicas dominadas pelas ciências neurobiológicas, que muito têm auxiliado na formação da compreensão como o pensar característico de um ser vivo que chegou a uma forma determinada de evolução racional.

Com isso, quer-se introduzir um tema que será aprofundado nos próximos capítulos, com vista a demonstrar que o isolamento dos sentidos e da racionalidade, que causam a separação da corrente empírica e dos racionalistas clássicos, não passa de um equívoco. O homem não é um ser animal, ao qual se juntaria o racional em forma de uma bipolaridade: a racional e a empírica. O homem tem, simultaneamente, as características intrínsecas à animalidade, que capta pelos sentidos e à racionalidade, que capta objetos por via exclusiva das idéias. Essas duas características co-participam da sucessão vivencial e da formação do conhecimento, pela captação simultânea promovida pelos sentidos e pela razão. Anota Stein71 a esse propósito:

(...) nossa condição humana enquanto seres racionais constituídos por esta dupla racionalidade: a racionalidade que dá conta da verdade ou da falsidade daquilo que falamos e a racionalidade que dá conta do fundamento das nossas ações.

71 STEIN, Ernildo, op. cit., p. 10.

A forma de pensar remete a uma só forma do sensível, ou seja, uma forma de pensar fisicamente o mundo: é sensível e engloba tanto os sentidos (parte animal) como a racionalidade (que classicamente se entendia constituir o supra- sensível).

Adiante, mostrar-se-á que o sensível e o supra-sensível estão presos como uma característica humana; são elementos imanentes do ser humano, que se denominam por via de uma conceitualização não-clássica.

Para se entender os dois pensares, que se confrontam no plano da teoria do conhecimento, refere-se: o primeiro, o clássico pensa lógico-psicológico e capta o sentido pela alma, consciência – são lugares que se encontravam além da sensibilidade (onde operam os vetores da preferência pessoal) – segundo a filosofia clássica, existem dois planos, o sensível e o supra-sensível. O termo supra-sensível decorre do fato de se usar o termo sensibilidade para denominar conhecimento formado pelos sentidos, denominou-se, então, o conhecimento metafísico de supra- sensível. O segundo modo de pensar parte do homem como sendo sentidos e racionalidades, como um só elemento, o que elimina o plano supra-sensível.

Já de acordo com o pensamento científico, e nas ciências, o pensar lógico e sua manifestação se dão pelo conceito formal e abstrato. Trata-se, na verdade, da transição metafísica, de caráter teológico, para a região ôntica da antropologia, onde Deus, ou o plano absoluto, é substituído pela razão.

Essa transição inicia-se com a Renascença quando houve também, não por acaso, a transição entre os paradigmas da lógica clássica para a lógica de Port- Royal (1662) que, segundo Tugendhat, formula a concepção sobre o conhecimento a partir de um racionalismo psicológico.

Nos capítulos seguintes, a tônica será a de mostrar os caminhos que separam as duas matrizes de racionalidade e suas formas específicas de conceitualização, para que se forme uma pré-compreensão de elementos que serão retomados no capítulo V, da hermenêutica. Ressalta-se a este propósito a lição de Carlos Maximiliano72: “(...) Hermenêutica. Esta se aproveita das conclusões da

Filosofia jurídica; com o auxílio delas fixa novos processos de interpretação; enfeixa- os num sistema (...)”.

72 MAXIMILIANO, Carlos, op. cit., p. 13.