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APRENDIZADOS DA ITINERÂNCIA

No documento A Escola da luta pela terra (páginas 31-33)

A Escola Itinerante marca o significado e o lugar da educação e da escola na vida das pessoas, com processos construídos e vivenciados pelos sujeitos que deste contexto fazem parte, conduzindo sonhos, fazendo lutas e produzindo conhecimentos.

Nas crianças e nos adultos, a marca da escola se concretiza na imagem das diferentes atividades e dos muitos espaços em que ela se concretiza. As vivências da luta organizada em movimento, os estudos proporcionados, ocupam o lugar na construção de significados que referenciam aprendizados e interrogam a função social da escola.

A necessidade de construir e reconstruir os espaços da escola na itinerância foi mostrando ao longo da história os caminhos possíveis de construir e relacionar a caminhada da luta pela terra com os estudos escolares, por meio de exemplos concretos vivenciados constantemente.

Ao organizar os estudos da Escola na Itinerância é necessário considerar o universo de conteúdos que cada momento apresenta, como a de uma marcha rumo ao latifúndio, por exemplo. Nas “paradas” para

descanso acontece a organização das estruturas do acampamento e da escola, são feitas discussões nos núcleos e a formação por meio de estudos com as famílias. Na escola, o trabalho pedagógico é planejado e toma a dimensão de rever e registrar o que vivenciam durante a marcha. É momento de criar e recriar por meio das atividades desenvolvidas, superando as dificuldades, construindo saberes e aprendizados.

Os momentos de dificuldades são sempre mais complexos de serem trabalhados. Nem sempre é fácil falar sobre a dura e árdua realidade enfrentada. É propósito da escola dialogar sobre o assunto para entender os movimentos contraditórios que existem na dialética da luta de classes. Desta forma, é preciso canalizar as tensões em processos educativos, superando os desafios, e com isso compreendê-los e enfrentá-los.

Inúmeros são os exemplos que poderíamos citar de como acontecem as intervenções pedagógicas. Tomemos como referência a marcha Sepé Tiarajú, rumo ao coração do latifúndio, cujo objetivo era pressionar a desapropriação da Fazenda Southal26. Essa marcha durou mais que três meses

e teve início em junho de 2003, com 800 participantes, mulheres, homens e crianças, e passou por várias cidades do centro sul do estado, denunciando o latifúndio e ampliando o diálogo sobre a Reforma Agrária com a sociedade.

A marcha ainda não havia chegado à cidade de São Gabriel e encontrava-se no município de Cachoeira do Sul. Nesta ocasião, circulavam pelas ruas da cidade um panfleto anônimo27 cujo conteúdo28

causou muita indignação aos marchantes e aos que defendem a Reforma Agrária. Este panfleto, altamente discriminatório e racista, provocou reflexões e debates nos diversos espaços de reuniões, formações e nos meios de comunicação, provocando as mais variadas reações.

Na escola, o panfleto serviu para muitos dias de estudo e discussões, pois as crianças liam atentamente as palavras escritas. Em suas afirmações buscavam compreender o por quê daquilo tudo, levantavam hipóteses de quem o havia escrito, ouviam e faziam comentários sobre o conteúdo lido. Também relacionavam ao debate as reportagens com a posição das autoridades de São Gabriel sobre o assunto.

Ao mesmo tempo em que os marchantes eram elogiados e acolhidos pela coragem e pela bravura de estar na marcha em condições precárias, enfrentando o rigor do inverno com frios e chuvas intensas, presenciavam também a crueldade explicitada pelos defensores do latifúndio.

Nesta marcha refletiram o por quê marchar, nos locais de paradas, estudavam: o território

26 Fazenda localizada no município de São Gabriel fronteira sul do estado, com mais de treze mil hectares de terra. A luta antiga pela desapropriação se concretiza ao final de 2008 com a conquista de parte da área para assentamentos.

27 Este panfleto está registrado no livro de Frei Sergio Gorgen (2004).

28 “Gabrielenses e seus apoiadores dizem não à invasão - Povo de São Gabriel, não permita que sua cidade tão bem conservada nesses anos seja agora maculada pelos pés deformados e sujos da escória humana.

São Gabriel, que nunca conviveu com a miséria, terá agora que abrigar o que de pior existe no seio da sociedade. Nós não merecemos que essa massa podre, manipulada por meia dúzia de covardes que se escondem atrás de estrelinhas no peito, venham trazer o roubo, a violência, o estupro, a morte. Estes ratos precisam ser exterminados. Vai doer, mas para as grandes doenças, fortes são os remédios. E preciso correr sangue para mostrarmos a nossa bravura. Se queres a paz, prepara a guerra, só assim daremos exemplo ao mundo que em São Gabriel não há lugar para desocupados. Aqui é lugar de povo ordeiro, trabalhador e produtivo. Nossa cidade é de oportunidades para quem quer produzir e não há oportunidade para bêbados, ralé vagabundos e mendigos de aluguel.

Se tu gabrielense amigo, és proprietário de terra ao lado do acampamento, usa qualquer remédio de banhar o gado na água que eles usem para beber, rato envenenado bebe mais água ainda. Se tu, gabrielense amigo, possuis uma arma de caça calibre 22 atira de dentro do carro contra o acampamento, o mais longe possível. A bala atinge o alvo mesmo a 1200 metros de distância”. Fim aos ratos. Viva o povo gabrielense!.

geográfico, a quilometragem percorrida nos dias de caminhada, as características da vegetação, os costumes regionais, as culturas, entre outros. São aprendizados significativos construídos nas aulas e que possibilitam compreender a realidade vivenciada. Por serem trabalhados de forma criativa, envolvendo um conjunto de saberes, ajudam a amenizar as influências negativas, como esta causada pelo panfleto.

A comunidade escolar foi também se apropriando deste novo jeito de organizar a luta e a vida escolar, pois as situações concretas fazem as pessoas se posicionarem. Na marcha é possível dialogar com a sociedade sobre a vida, a esperança, os aprendizados e as perspectivas que a luta pela terra viabiliza.

A escola é reconhecida pela sua própria forma de funcionar e dialogar com a comunidade, pois acompanha a itinerância do acampamento e vai construindo referenciais pedagógicos que apontam perspectivas sobre o papel da escola nos movimentos sociais. As pesquisas apontam a Itinerante como um novo jeito de fazer educação. Os aprendizados se multiplicam. Desde colocar outro imaginário de escola a ser construído como a forma de organizá-la e conduzi-la, rompendo com a estrutura escolar das “quatro paredes” e reconstruindo a cada dia uma escola em movimento, indo além do seu papel historicamente construído.

No documento A Escola da luta pela terra (páginas 31-33)