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PLANEJAMENTO: UMA NOVA FORMA DE VER A ESCOLA E CONSTRUIR O SABER

No documento A Escola da luta pela terra (páginas 104-106)

A educação no Movimento Sem Terra diz respeito à dimensão cultural presente no cotidiano da vida social de seus sujeitos. Procura valorizar as múltiplas relações humanas que a comunidade acampada ou assentada se insere. Tendo a realidade como base concreta de estudo, entendendo que o próprio Movimento, na maneira pela qual se organiza, já demonstra na experiência histórica seu processo de educação. Para consolidar a educação, foi preciso partir da execução de um planejamento escolar que responda as necessidades em que se encontra: que plano de aula é possível construir na prática pedagógica? Que conteúdos são socialmente úteis à vida desses educandos? Que currículo possibilita à ação próxima a realidade?

Se o currículo é movimento, realidade, construção e transformação do conteúdo em ação, logo, há uma proposta clara de educação no campo nas Escolas Itinerantes. Dessa maneira, o currículo tem a função de qualificar o ser humano na produção da existência na terra, construindo conhecimentos necessários para intervir com qualidade e dignidade. A elaboração e ação do plano de aula, e o planejamento, devem respeitar a dinamicidade que é construída na coletividade. Isto é, os educadores se reúnem semanalmente ou mensalmente para discutir, debater e identificar os avanços, limites e desafios e, por fim, traçar as

diretrizes para as próximas práticas em sala de aula.

Dentre os desafios do Movimento na escolarização em acampamentos estão a mobilização da comunidade em torno da luta pela Reforma Agrária, reiterar a mística em torno da educação da sua base, organizar as famílias para o trabalho coletivo e cooperado, e pressionar o Estado para que viabilize as condições materiais para o funcionamento da escola e a formação permanente dos educadores.

Na Escola Itinerante no Piauí, o currículo tem função de construir o conhecimento com os educandos a partir da realidade. Ao término da pesquisa de campo na, e com a comunidade pelos educadores, se realizam momentos de socialização com análise e debate dos dados levantados. A partir da sistematização dos dados coletados na pesquisa, é extraída uma questão problema e, portanto, se elabora o eixo temático, por meio do trabalho interdisciplinar, para propor os conteúdos que serão abordados na comunidade e na escola. Esse processo é significativo para as reflexões sobre o currículo e na elaboração dos planos de aula . Segundo uma das educadoras:

“Entender a realidade não é um ato de passar a mão para alguns problemas que vão surgindo na vida do acampamento. É entender da vida dos alunos que se dá com a nossa relação que temos com a prática social, vividas nos acampamentos. É através do interesse de entender essa realidade que vamos, aos poucos, mudar, por meio de orientação, e colocar a situação de nossa prática no acampamento para dentro da sala de aula. Precisamos então trabalhar na escola um plano de aula onde as pessoas se sintam responsáveis: sentem, conhecem, pensam e fazem parte do que lhes são de interesse”. (Percina dos Santos. Acampamento Herdeiros de Che, 2009).

O exemplo de uma prática social na formação e escolarização ocorreu na comunidade Herdeiros de Che, que, ao promover um mutirão de limpeza, envolveu toda a comunidade acampada com as seguintes atividades: recolher o lixo; varrer o pátio dos encontros e assembleias; fazer o embelezamento e a ornamentação dos espaços e podar árvores. No dia seguinte, a escola promoveu uma celebração religiosa em que as crianças participaram da leitura de trechos da Bíblia, dos pedidos de benção, na oração e na animação dos cânticos. Por outro lado, os educadores cuidaram do almoço comunitário e todas as famílias se responsabilizam pela confraternização do acampamento.

Na parte da tarde, a comunidade se reuniu para estudar os princípios éticos que norteiam o acampamento e o MST. Em seguida, foi debatida a trajetória da vida e os valores de Ernesto Che Guevara, que dá nome ao acampamento. A discussão foi mediada e problematizada pelos educadores da escola. Já no período da noite, a comunidade assistiu a um filme, seguido de um churrasco comunitário.

A lição extraída é de que é possível a comunidade fazer parte do processo de ensino e aprendizagem, em uma dinâmica de respeito à cultura como fonte de produção do conhecimento. Todavia, a aula na Escola Itinerante é mais que ler e escrever, calcular, brincar, desenhar e pintar. É criar e recriar o mundo, inventar e reinventar a própria vida no acampamento. Ou seja, busca refletir as relações sociais e a vida no acampamento, transformando a realidade em conteúdo socialmente útil à vida de cada sujeito que dela faz parte.

Na Escola Itinerante Odair Carvalho de Sousa, no acampamento de Barras, outra prática pedagógica é planejada e executada a partir do social: a fabricação de medicamentos caseiros. Os educandos

pesquisam os tipos de plantas medicinais existentes no território do acampamento e as receitas caseiras para cada tipo de enfermidade e prevenção.

A pesquisa de campo é uma importante atividade prática, na qual os educandos observam o solo, a vegetação, o espaço geográfico, os rios, enfim, o meio ambiente de modo geral, e refletem sobre sua relação e da comunidade com a natureza.

Após a coleta de sementes e das plantas medicinais, todos organizam os recursos recolhidos na escola e explicam o que descobriram. Para melhor entendimento da função de cada planta, contamos com a participação do representante da Associação de Produtores de Remédio Caseiros do Assentamento Marrecas (Grecam), para realizar uma oficina de composição dessas plantas.

Os educandos produziram alguns medicamentos que ficaram disponíveis para o conjunto da comunidade acampada. Todo o processo da pesquisa teve continuidade em sala de aula, pois a função de cada planta virou conteúdo de sistematização do conhecimento dos educandos. Este é um exemplo concreto de que é possível a realidade virar conteúdo de alfabetização e escolarização, isto é, fazendo com que a vida da comunidade se insira no contexto escolar.

A Escola Itinerante propõe realizar ações novas, não mecanicistas, mas a partir do método dialético que relaciona teoria e prática, numa relação dialógica entre educando, educador e mundo social. Desta forma, o currículo presente no planejamento ratifica um diálogo com a estrutura prevista na filosofia da Escola Itinerante, expressa por uma educadora:

A Itinerante é um projeto novo, é uma experiência muito boa, é uma nova forma de educar trabalhando a vida dos educandos. Isso constrói uma aprendizagem com mais facilidade e mais rápido. Mas desenvolver as atividades como tem que ser feitas é muito difícil, por que, nunca trabalhamos dessa forma antes, e a escola que fomos formados é tradicional, agora sabemos que é possível com a prática. (Djanete Oliveira Araújo, Educadora da Escola Itinerante, 2008).

Portanto, precisamos explicar e construir as aulas a partir da vida dos trabalhadores, para melhor compreender as relações sociais. Não se transforma o mundo, se a vida cotidiana não mudar, se a prática social não mostrar a diferença. A educação não pode ser revolucionária se não conseguir projetar a revolução cotidiana na comunidade, caso contrário, tudo ficará à mercê dessa sociedade a qual estamos submetidos. Enfim, a escola, a educação e o cotidiano, mudam se os sujeitos determinarem que eles precisem mudar, e se puserem a agir.

No documento A Escola da luta pela terra (páginas 104-106)