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ESCOLA ITINERANTE: DO ÁRDUO E DO BELO

No documento A Escola da luta pela terra (páginas 111-115)

épocas e contextos, é que este lugar, hoje conhecido como escola, relaciona-se com o aprendizado da língua escrita e a apropriação de conhecimentos que demandavam um tempo maior para assimilação. A origem e desenvolvimento da escola também se ligam à certa separação entre ensino e trabalho, ou seja, quando o aprendizado não acontece no mesmo tempo e espaço do trabalho, mas em lugar separado, a escola inaugura um tempo e um espaço próprios para ensinar e aprender. Para que isso fosse possível, significava que deveria haver certo excedente social, isto é, estando asseguradas as necessidades fundamentais de sobrevivência de uma sociedade, permite-se que alguns de seus membros possam não estar batalhando pela sobrevivência imediata. Por isso, em seus primórdios, a escola era um “luxo” destinado há poucos membros da classe dominante.

Marilena Chauí (2000) indica que, em grego, escola é scholé, que significa ócio, ou seja, a escola era o lugar do não trabalho, de quem podia viver no ócio, do trabalho de outros. O excedente social se acumulou de tal forma, que hoje “todos” podem passar algum tempo na escola. Entretanto, como o excedente produzido social e coletivamente é apropriado de forma privada, as classes dominantes podem passar mais tempo na escola, e os mais pobres precisam trabalhar para sobreviver e, por isso, podem ficar menos tempo estudando.

Com o advento do capitalismo é que a escola passa a ser entendida como uma necessidade para todos. Por que isso acontece? Porque, com o capitalismo, ocorreu uma grande mudança nos processos produtivos, constituindo-se uma grande revolução em relação à forma de produção artesanal do feudalismo. Neste, o aprendizado para o trabalho ocorria no próprio local de trabalho (oficinas dos artesãos, na roça dos camponeses), e o aprendizado consistia basicamente em adquirir habilidades manuais (ainda muito utilizadas pelos sapateiros, pedreiros, bordadeiras...). Com a fábrica capitalista, entretanto, estas habilidades manuais foram, e ainda são, usurpadas dos trabalhadores e incorporadas nas máquinas; os trabalhadores tornam-se apêndice da máquina, tendo que trabalhar ditados por seu ritmo e estrutura. O trabalho, aponta Marx (1999), torna-se simples, igual e social, ou seja, a máquina simplifica ao máximo sua execução, permitindo que praticamente qualquer um possa fazê-lo (igual), mas cujas condições são criadas pelo conjunto/totalidade do trabalho humano (social). Trata-se, portanto, do trabalho abstrato2.

Vê-se que não falamos de um trabalho/profissão específicos, falamos da forma de trabalho capitalista generalizada. Aprender a ler e a escrever torna-se algo fundamental para o trabalho da fábrica e com a dinâmica de vida urbana. Com a aplicação direta da ciência nos processos produtivos e uma revolução tecnológica permanente, os trabalhadores precisam dispor de uma formação básica, rudimentar, das letras e das ciências, para adaptar-se aos novos processos produtivos e com eles operar. Por exemplo, ler instruções e manuais, anotar, ter noções de proporção, química, física e biologia, base de diversos ramos da indústria. O conhecimento aprendido na escola nem sempre se relaciona diretamente com as necessidades da fábrica. Para chegar à escola, o conteúdo passa por diversos filtros e mediações e, na escola capitalista, fragmenta- se, desconecta-se da materialidade da qual ela se origina, mas sem dúvida guarda muitas relações com o mundo do trabalho e as aprendizagens a ele necessárias.

2 Todo trabalho é, de um lado, dispêndio de força humana de trabalho, no sentido fisiológico, e, nessa qualidade de trabalho humano igual ou abstrato, cria o valor das mercadorias. Todo trabalho, por outro lado, é dispêndio de força humana de trabalho, sob forma especial, para um determinado fim, e, nessa qualidade de trabalho útil, concreto, produz valores de uso (MARX, 1999, p. 68).

Retomando aos primórdios do capitalismo, ao dizermos acima que a escola tornou-se uma necessidade deste modo de produção, não significa dizer que ela foi desejada e saudada por toda a classe burguesa. Ao contrário, ela foi combatida por muitos deles e vista como perigosa, isto é, que poderia instruir demasiadamente os trabalhadores ao ponto em que estes se revoltassem e não aceitassem mais sua condição de miséria e submissão. Frente a esta polêmica, Adam Smith, famoso teórico liberal e economista clássico inglês, sugeriu que o conhecimento deveria estar na escola, porém “em doses homeopáticas”. Ou seja, não se deveria ensinar todo o conhecimento existente, mas apenas aquele estritamente necessário para a produção e consumo nos limites do capital. Portanto, a escola não oferece apenas uma formação cognitiva, mas também comportamental, ética e política. Aponta-se que a escola também se estruturou para adaptar as crianças ao trabalho fabril e à sociabilidade capitalista, tanto adestrando o corpo – imobilizado e contido nos longos períodos na escola para mais facilmente adaptar-se à fabrica – quanto promovendo comportamentos e valores como a obediência, a ordem e disciplina próprias desta forma social. Então, a escola forma para a sociabilidade burguesa, não apenas no conteúdo que transmite, mas também na forma como se estrutura3. No MST discutimos bastante o conteúdo político da escola, repassado não

apenas pelas matérias, mas pelo autoritarismo, centralização, homogeneização, etc. Entretanto, precisamos compreender melhor esta questão, pois nossas experiências de escola demonstram como é difícil romper com o formato e o conteúdo da escola capitalista.

Frente às divergências na classe dominante apontadas acima, em cada país se travou uma batalha específica para que a escola se instituísse para todos. No contexto europeu, os sistemas nacionais de ensino remontam aos anos de 1800. No Brasil, somente a partir de 1930, com a industrialização, é que iniciamos a constituição de um sistema nacional de educação. Estes sistemas passam por constantes reformas em sua organização geral e em seus métodos pedagógicos. Estas alterações decorrem das citadas mudanças nos processos produtivos e na luta de classes. Recentemente, no Brasil, vimos os empresários, representados na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), exigindo “maior qualidade” na educação, atualizando a escola aos novos tempos. O que eles exigem é que a escola se ligue mais às novas necessidades do mercado de trabalho, que tem sofrido grandes mudanças.

Como dissemos, a escola é o local onde a população vai adquirir esta formação básica, necessária para o trabalho e a sociabilidade burguesa. Entretanto, não significa que a escola realiza toda a formação para o trabalho. Esta ocorre também na empresa, na fábrica, nos locais de trabalho, em cursos profissionalizantes e de aperfeiçoamento específicos, e é indispensável para cada situação concreta. Outra questão importante é que a formação “mínima” necessária para o mercado de trabalho capitalista varia muito de acordo com as funções, como os chamados trabalhadores qualificados, semi-qualificados, especialistas, etc. Assim, o tempo que os trabalhadores destes respectivos setores passam na escola e a qualidade da formação recebida pode ser muito diferente. Entretanto, com a crescente complexificação do processo produtivo, este “patamar mínimo” da formação tende a se elevar. Se acompanharmos o que se passa no mercado de trabalho capitalista, vemos que o ensino fundamental tem sido insuficiente, diferente do que foi outrora. Agora, o mínimo é o nível médio (este tende a se tornar obrigatório) e até mesmo cursos

3 Sobre isso ver: Freitas, L. C. Crítica da Organização do Trabalho Pedagógico e da Didática, 7ª ed. Campinas: Papirus, 2005.

profissionalizantes. Nas mais diversas áreas, o domínio da computação é essencial, com isso evidencia- se o quanto a escola se relaciona com o mundo (e o mercado) de trabalho, cujas alterações vão exigindo mudanças nos processos educativos das mais diversas ordens.

Entretanto, como se coloca a escola em face do crescente desemprego? Ela deve formar para o trabalho ou para o desemprego? Sem dúvida, hoje, do ponto de vista do capital, a escola, e ainda mais a escola de qualidade, não necessita estar disponível para todos. Porém, como o capitalismo aparenta ser uma forma de sociedade democrática, ele não pode deixar uma parcela da população sem escola. Isso mostraria o quanto esta sociedade não é igualitária (veja entretanto que o ensino médio não é disponível para todos). Mas há tempos, o capitalismo arranjou uma alternativa para este problema. Ele oferece uma escola de péssima qualidade para a maior parte dos trabalhadores. Como dissemos, a escola, desde seus primórdios na sociedade burguesa, fornece instrumentos elementares de formação para o trabalho e para a vida nesta forma de sociedade. Oferece o necessário para que a maior parte das pessoas se reproduza na condição de trabalhadores, explorados e submetidos à esta lógica. É claro que a sociedade dividida em classes desenvolve suas contradições em todas as esferas da vida social. A educação e a escola também são espaços de disputa e de projetos educacionais distintos, cujo embate resulta a educação que temos: hegemonicamente burguesa devido à forma de produção da vida se dar sob tais parâmetros. Com o crescimento do excedente de trabalhadores (exército industrial de reserva ou desempregados), o conhecimento na escola vai sendo ainda mais precarizado, até tornar-se quase um “faz de conta”. Na atualidade, a ausência de conhecimento elaborado e profundo na escola, por exemplo, se reveste com uma falácia democrática: a de que os conteúdos são autoritários, desligados da realidade da criança, etc.. Portanto, o que propõem é a valorização do local, dos conhecimentos que as crianças já possuem, da importância de respeitar sua cultura. Estas questões também são objeto de crítica à escola tradicional feita por educadores progressistas, mas para estes, a cultura popular e o conhecimento que a criança já possui é ponto de partida da escola, mas que jamais poderia ficar apenas nisso. Diferentemente das perspectivas conservadoras, travestidas de novidade educacional, este discurso é utilizado para esvaziar a escola de uma de suas funções essenciais – a socialização de conhecimentos significativos. Ora, se é para ficar naquilo que a criança já possui, em sua realidade local, não precisa ir à escola: a criança já possui! A escola precisa oferecer o conhecimento e a cultura elaborados, que não estão acessíveis espontaneamente para o estudante. Isso não quer dizer que este conhecimento elaborado deva ser ensinado de qualquer maneira, imposto e decorado, e que não devam ser buscadas mediações com a realidade da criança. O que temos hoje é em nome de um discurso democrático de respeito às diferenças, a negligência da escola em oferecer aquilo que é uma condição para a efetiva inserção social e, com isso, a manutenção das diferenças que viram desigualdade.

Tome-se, por exemplo, os dados alarmantes que indicam que milhares de estudantes concluem a 8ª série, mas não sabem interpretar um texto e fazer contas elementares (INEP, 2001). São semi- alfabetizados. À isso, Kuenzer (2004) denominou de inclusão excludente, ou seja, a criança está na escola, mas não aprende. Portanto, somos levados a concordar com Saviani (1999), para quem a transmissão de conteúdos significativos e relevantes, é fundamental, “justamente porque o domínio da cultura constitui instrumento indispensável para a participação política das massas” (p. 66). Para ele, “a transformação

da igualdade formal em igualdade real está associada à transformação dos conteúdos formais, fixos e abstratos [por exemplo, da escola tradicional], em conteúdos reais, dinâmicos e concretos” (p. 74). Ou seja, se os conhecimentos elaborados são relevantes e de igual importância, que eles não sejam ministrados de maneira fragmentada, descolados da realidade concreta em que vivemos. Na proposta de educação do MST, o conhecimento elaborado é de fundamental importância para entender a realidade que nos cerca e o mundo em que vivemos, e eles são requisitados pelos processos de luta, de trabalho e de cultura. O ensino deve “partir da prática e levar ao conhecimento científico da realidade” (MST, 1992), é preciso despertar para a importância da história e da ciência de que muito precisam os trabalhadores.

Não há dúvida, entretanto, que uma escola articulada aos interesses dos trabalhadores não deverá somente rever a forma de trabalho com o conhecimento escolar, afinal, a escola não ensina apenas estes, mas também os conteúdos políticos, sociais, valorativos e éticos. Estes conteúdos também estão presentes na escola que serve ao capitalismo no sentido de formar para esta perspectiva. Isso está embutido de forma implícita ou explícita, sendo elitista e excludente, promovendo a competitividade, desenvolvendo o autoritarismo e a submissão, a resignação e o medo, etc. Enfim, a escola forma para os papéis sociais que diferentes setores e classes sociais desempenham. A escola que interessa para os trabalhadores deve eliminar este conteúdo que forma uns para dominar e outros para serem dominados, e promover a igualdade social, o respeito, a solidariedade e a cooperação, entre toda a humanidade. Para isso, precisa rever toda sua forma de organização e formar para saber comandar e ser comandado, para a participação efetiva, para a organização coletiva e à auto-organização (Pistrak, 2000). Enfim, deve educar para novos valores éticos e padrões de comportamento condizentes com a sociedade que se pretende construir. Estas questões são complexas e exigem nossa atenção permanente, estudo e experimentação prática. No MST, já temos um bom acúmulo neste sentido e é preciso que avancemos na construção de uma nova forma escolar.

No documento A Escola da luta pela terra (páginas 111-115)