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ESCOLA QUE APRENDE E ENSINA EM LUTA: MARCAS E REFLEXÕES

No documento A Escola da luta pela terra (páginas 45-50)

A Escola Itinerante no Paraná tem se firmado como uma escola pública, com a participação da comunidade acampada em movimento, que caminha junto com Sem Terra na esperança de uma vida digna com terra, saúde e educação. Em sua trajetória, esta escola foi evidenciando questões as quais deveria responder para materializar outro formato de escola.

Convém registrar que esse projeto de escola é fruto do acúmulo de experiências escolares desenvolvidas no decorrer dos 26 anos do MST, construídas nos diferentes processos de lutas, discussões e interações junto às comunidades Sem Terra. Nesse momento, buscamos sistematizar algumas marcas que se expressam na Pedagogia do MST e na especificidade das Escolas Itinerantes no Paraná. Essas marcas são dimensões, nem sempre evidentes, que ganharam força na trajetória dessa escola, e que caracterizam as particularidades das Itinerantes neste estado. As marcas também revelam as contradições que emergiram nessa caminhada, e nossa tentativa de superá-las. É sobre estas marcas que refletimos a seguir:

desde as primeiras Escolas Itinerantes. Ela vem se constituindo como a escola do Sem Terra, que reflete e incorpora o movimento desta realidade, em específico, dos acampamentos onde se insere.

O acampamento é um território de luta permanente que se configura a partir dos sujeitos e da organização coletiva que envolve os Sem Terra, como protagonistas da sua história. Também é um espaço de aprendizado e vivência de valores humanos que unificam o grupo de famílias que lutam por objetivos comuns.

A vida no acampamento está sujeita às circunstâncias conjunturais da própria luta pela terra, o que exige posturas, ações e organização. A Escola Itinerante vive a dinâmica dos acampamentos e não pode ficar alheia às contradições desta prática social. Estas condições têm proporcionado às Itinerantes aprendizados que a escola convencional pouco proporciona.

Outro aprendizado importante é de que, na luta pela terra, a Itinerante tem se firmado como uma “ferramenta de luta”, por estar nos acampamentos que questionam a propriedade privada. O fato de existir escola nos acampamentos, por vezes, fortalece a luta desses trabalhadores, bem como é uma ação simpática diante da sociedade, uma vez que é uma instituição aceita por ela. No entanto, sabemos que a forma escolar capitalista não dá conta da formação que pretendemos, todavia, por estar nesse contexto e ser gestada pelos trabalhadores, tende a contrariar alguns aspectos da sociedade capitalista.

Neste sentido, o esforço que essa escola faz é de cumprir com sua especificidade de ensinar a ler, escrever, calcular, enfim, de possibilitar o acesso ao conhecimento elaborado (científico, filosófico, artístico). Contribuir também para a sistematização dos saberes vividos no contexto atual e socializar práticas educativas que contribuam com a formação humana. Desta forma, a escola pode ser vista como uma ferramenta a favor dos trabalhadores e das transformações que estes pretendem realizar.

A escola como resistência se expressa em alguns exemplos por nós vivenciados em acampamentos que enfrentaram conflitos mais diretos com o poder do latifúndio, como foi o caso da Escola Che Guevara, que viveu três despejos e continuou resistente aos incessantes ataques das milícias armadas. Ou pela Escola Sementes do Amanhã, em que suas crianças foram protagonistas na resistência à tentativa de um despejo. Estas escolas foram alvo de desmobilização por forças da burguesia na perspectiva de enfraquecimento das famílias acampadas. Por vezes, a escola, nos acampamentos em que a luta está mais acirrada, é combatida, pois ela materializa a organização comunitária e fortalece vínculos orgânicos internos.

Deste processo se expressa outra marca da escola: a relação com a comunidade acampada

e a organização coletiva, que ocorre no processo de gestão que envolve a comunidade nos processos

pedagógicos da escola, desde a construção física, a definição dos temas de estudos, a avaliação escolar, os trabalhos de manutenção, a preparação da merenda, entre outros. Ao exercitar a gestão coletiva na escola, essas famílias a incorporam como parte da organização dos acampamentos.

Tal questão vem sendo evidenciada nestes dois últimos anos (2008-2009), com a unificação de diferentes acampamentos do MST no Paraná, propiciando a junção de famílias de espaços distintos. Esta circunstância tem favorecido a continuidade da Escola Itinerante, pois, ao formar outro acampamento, as famílias que vivenciaram a experiência de Escola Itinerante reivindicaram a organização dela nestes territórios.

Um exemplo dessa preocupação foi expressa em uma das caminhadas da Escola Itinerante Zumbi dos Palmares. Ainda em 2008, mais de 40 famílias se deslocaram para o município de Jacarezinho, em uma área de pré-assentamento. Em um primeiro momento, a organização da escola não foi uma das preocupações iniciais da coordenação do acampamento, porém, na primeira semana de ocupação, mesmo a prefeitura disponibilizando transporte escolar, as famílias exigiram a organização da Escola Itinerante neste espaço.

Isso também ocorreu no acampamento Herdeiros da Luta de Porecatu, quando em outubro deste mesmo ano, mais de 300 famílias ocuparam o complexo de terras improdutivas pertencentes ao grupo Atala10 . Novamente, a preocupação inicial não foi a organização da escola, todavia foi fomentada

pelas famílias com crianças em idade escolar.

Tais fatos evidenciam que a experiência vivida pelas famílias de se envolver nos processos organizativos e pedagógicos da escola tem produzido significados importantes, pois elas, ao assumirem a escola como sua, dão outro sentido a escola, distinto daquela instituição alheia aos trabalhadores camponeses. Nesse aspecto Knopf (2008, p.40) aponta:

No acampamento, há uma necessidade real que tensiona para a construção de outro imaginário de escola, ou podemos dizer ainda, que direciona um olhar a escola para além dela mesma e, embora havendo estranhamento, devido, historicamente não participarem efetivamente dela, agora se inverte a lógica, se faz necessário o protagonismo dos sujeitos acampados, por isso ela torna-se ainda mais estranha. Porém, são esses momentos que demarcam a possibilidade de construir uma concepção de escola onde os sujeitos da comunidade ajudam a pensar e conduzi-la.

Diferente do início, em que famílias estranhavam a presença da escola no acampamento, por ainda não compreenderem como poderia funcionar uma escola naquele meio, com uma estrutura física igual aos seus barracos de moradia, com um método de ensino diferenciado, com sua efetiva participação, os exemplos apresentados demonstram que, ao se envolverem na gestão coletiva, as famílias foram percebendo a seriedade e a importância da escola na formação de seus filhos.

Outra marca da Escola Itinerante é o vínculo com à realidade. A educação e a formação dos sujeitos não se dão somente na escola. No caso dos Sem Terra, ocorre também nos demais processos organizativos da luta (mobilizações, congressos, cursos de formação etc.), porém a escola tem sua especificidade.

Na Itinerante, a educação acontece até mesmo nas ações que o acampamento realiza na perspectiva de compreender o mundo e também, é claro, nas atividades educativas específicas como estudos e interpretação de temas, apropriação e aperfeiçoamento da língua escrita. Entre essas ações, podemos destacar um momento em que a Escola Itinerante Carlos Marighella propôs-se a trabalhar com o tema referente à Marcha Nacional do MST, na oportunidade em que o acampamento estava em mobilização para a marcha a Curitiba (PR), no ano de 2005. Esta realidade foi estudada na escola, por meio das seguintes questões: O que é uma marcha? Como ela se organiza? Qual o percurso dos marchantes e o que eles pretendem com ela? Nesta oportunidade, a escola retomou as marchas já realizadas pelo Movimento. Esse

tema, oriundo da organização do acampamento, desdobrou-se em textos argumentativos, descritivos, em conhecimento histórico, geográfico, matemático, artísticos, entre outros.

Em relação às atividades específicas de leitura e escrita nas Escolas Itinerantes, há um incentivo permanente à leitura crítica da realidade e à elaboração escrita articulada a uma função social, por meio da produção de cartas a educandos de outras escolas, textos reivindicatórios - como a carta elaborada pelas crianças da Escola Itinerante Ernesto Che Guevara, em protesto aos ataques sofridos pelas famílias do acampamento 8 de Março, do município de Guairaça. A carta foi lida durante o ato público de denúncia à violência sofrida pelas famílias, organizado pelo Movimento, no dia 12 de agosto de 2008, no município de Terra Rica.

Desta forma, a Itinerante pretende se articular à vida, porque ela é a própria vida. Por isso, busca formas de trabalhar o conhecimento não fragmentando em disciplinas estanques. A necessidade desta junção, conhecimento e vida, constitui-se como um ponto forte na caminhada desta escola, todavia, ainda existem questões a serem superadas e que serão retomadas adiante no texto.

Na caminhada da escola, outra marca que evidenciamos é a forma como a Escola Itinerante

em luta se faz escola pública. Foi pela luta social que conquistamos sua legalização, passando a ser

mantida pelo Estado - SEED, e gestada pela comunidade acampada. Como afirma Camini (2006), “é uma escola teimosa, dirigida pela teimosia lúcida dos trabalhadores Sem Terra que ainda exigem que este governo a financie, o que de novo, há muitos desagrada”. Concordando com essa citação, afirmamos que temos o direito de acessar a escola pública, financiada pelo Estado, porém, cabe aos trabalhadores educar a sua classe para outra postura diante das relações de submissão e exclusão vividas na escola capitalista.

Ao conquistar a Escola Itinerante como política pública e propor seu projeto político pedagógico alternativo, o Movimento tem provocado a Secretaria de Educação a pensar a escola pública da forma como ela está constituída, especialmente as escolas do campo. Neste diálogo, busca-se afirmar que os movimentos sociais, como é o caso do MST, luta para “ocupar” a escola pública e transformá-la em uma ferramenta da classe trabalhadora. Todavia, essa relação não ocorre sem tensões e contradições.

Neste campo da política pública, a partir do exercício de buscar fazer uma escola comprometida com a formação dos trabalhadores, identificamos outra marca da Escola Itinerante do Paraná que são os

Ciclos de Formação Humana.

Reconhecendo os limites da escola capitalista, seriada, fragmentada, centrada na sala de aula, temos buscado construir e implementar o Projeto político-pedagógico, tendo por base os Ciclos de Formação Humana11 . O qual organiza os educandos em agrupamento por idades, sendo o primeiro ciclo

(4 a 5 anos), o segundo ciclo (6 a 8 anos), o terceiro ciclo ( 9 a 11 anos), o quarto ciclo (12 a 14 anos) e o quinto ciclo (15 a 17 anos).

A organização por ciclos não significa apenas estruturar os educandos em agrupamentos, mas tem como referência outra concepção de avaliação, de formação humana. Outra perspectiva de trato do conhecimento, buscando a superação do conhecimento distante das questões atuais da vida e visando contemplar uma formação omnilateral, ou seja, que busque desenvolver o ser humano em suas diversas

11 O que não significa uma progressão automática e sim de fato, criar novas possibilidades para que o educando ao passar pela escola possa se apropriar do conhecimento. E que diferente da seriação não seja ele o culpado por seu fracasso escolar.

dimensões, tais como o desenvolvimento das capacidades humanas superiores, a relação com a arte, a vivência coletiva na organização do trabalho, o desenvolvimento de diferentes emoções, entre outros. Uma das formas de realizar essa formação tem sido por meio dos Tempos Educativos.

Os tempos educativos como tempo leitura, recreio, oficina, vídeo, trabalho, reunião de núcleos, entre outros são vivenciados em algumas escolas que dão, a estes tempos prioridades diferentes, de acordo com suas necessidades. Percebemos que, quando estas atividades não estão bem articuladas à totalidade da organização do trabalho, ao longo do ano perdem a intencionalidade e tornam-se mecânicas, diminuindo sua potencialidade educativa.

Consideramos que para efetivar essa proposta de escola, a formação dos educadores

itinerantes apresenta-se como um grande desafio, especialmente porque a formação por eles recebida

está relacionada com a escola capitalista, por nós, contestada. No processo formativo, consideramos as especificidades dos educadores. Os que são acampados com pertença ao Movimento que atuam na Educação Infantil e nos anos Iniciais do Ensino Fundamental e os que são do quadro próprio do magistério do Estado e atuam nos anos finais e Ensino Médio.

Os educadores dos anos iniciais são escolhidos pela organicidade do acampamento a partir de alguns critérios12 estabelecidos junto às famílias acampadas. Estes educadores têm a vivência da luta

do acampamento e podem melhor compreender sua lógica organizativa e, geralmente, por esta condição, se envolvem mais com o projeto de escola. Fator este importante para conseguir relacionar os conteúdos escolares e dimensões da vida social e material dos educandos.

Em sua maioria, estes educadores não entram na escola instruídos de metodologias de prática de ensino. Passam a aprender o exercício da docência e compreender a luta dos Sem Terra por meio da escola e, ao mesmo tempo, são integrados em cursos formais de educadores como: magistério, pedagogia, licenciatura, geografia, entre outros.

Por morarem próximos da escola, eles conseguem desenvolver e intencionalizar um processo de formação permanente. Para isso, também há um programa de formação local, com a realização de estudos coletivos semanais que propiciam uma formação continuada, com o objetivo de formar educadores que se identifiquem com a tarefa de educar e que se comprometam organicamente com esta função.

A maioria destes educadores aprende a planejar e ministrar aulas a partir do processo de vivência no acampamento, estudos e planejamentos coletivos, ou seja, desde a formação local e continuada.

O planejamento coletivo é um ponto forte do trabalho pedagógico das Escolas Itinerantes. Na Educação Infantil e anos iniciais do Fundamental, o planejamento se dá de forma coletiva, com a participação de educadores e comunidade na divisão de tarefas. A atuação no trabalho pedagógico é de responsabilidade do coletivo de educadores e não apenas do educador da turma. Estes coletivos possuem autonomia na definição da ordem dos temas e conteúdos, metodologias e estratégias de ensino, a partir das metas de aprendizagem e o plano de estudos de cada ciclo. Sendo assim, o planejamento coletivo é um elemento central no pensar e prever estratégias na escola.

Nos anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio atuam os educadores da rede Estadual

12 Ter escolaridade adequada para o exercício do Magistério, dedicação ao estudo, aprovação da indicação dos pais e da comunidade acampada.

de Ensino, contratados por meio do Processo Simplificado de seleção (PSS). Essa forma de contratação do professor na Itinerante, geralmente, não permite que o educador retorne a escola no ano seguinte. A cada ano o trabalho na escola precisa ser retomado, fator que prejudica a continuidade dos processos organizativos e pedagógicos.

Estes educadores lidam com outra especificidade no trato com o conhecimento na escola e encontram também limites no processo, marcado pela fragmentação em que se formaram.

O fato do mesmo educador trabalhar em mais de uma escola, diminuindo seu tempo de convivência com os educandos e comunidade, também é um limite evidenciado, o que pode ocasionar o trato descontextualizado com o conhecimento. Tais preocupações tem sido debatidas com a SEED na busca de superar tais dificuldades. Não é nossa intenção nesse texto culpabilizar os professores de fora e nem exaltar os professores de dentro. Entendemos que ambos podem contribuir se tiverem condições materiais para tal, compromisso com a escola, e estiverem abertos a novos processos coletivos de formação, que em algumas vezes, contrariam sua própria formação.

A rotatividade dos educadores é um limite nas Escolas Itinerantes, tanto os que moram e os que não moram no acampamento. É notável a rotatividade também na natureza do acampamento, bem como em questões objetivas e subjetivas ainda não evidenciadas.

DESAFIOS DA ESCOLA ITINERANTE

No documento A Escola da luta pela terra (páginas 45-50)