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Por que dizem ignorar-te Por que dizem ignorar-te

No documento Huberto Rohden - Deus.pdf (páginas 49-54)

Por que dizem ignorar-te...

Vezes sem conta, Senhor, tenho ouvido falar em homens ateus e antiteus, homens que te negam e homens que te odeiam. Entretanto, não me convenci até hoje da existência de semelhantes homens. Pois como poderia alguém negar, de consciência tranquila, precisamente aquilo que é a quintessência da Realidade? Como poderia odiar o que é a infinita plenitude de toda a Bondade? O que tenho encontrado, nos caminhos da minha peregrinação terrestre, são homens ateístas, isto é, homens que se dizem ateus ou antiteus e que desta sua atitude paradoxal fazem até uma filosofia e um credo – tão imensa é a babel de certas almas...

Tenho encontrado ateístas aristocráticos – e antiteístas demagógicos. Uns, serenos e calmos, como linda tarde de inverno – outros, inquietos e agressivos, como tempestade de verão.

E nenhum deles era realmente ateu nem antiteu...

Assim como o ódio não é, muitas vezes, senão a manifestação dum grande amor incompreendido ou atraiçoado – assim é também o chamado ateísmo desses homens um profundo e descompreendido teísmo, uma espécie de “escrita especular ”, que, invertida, deve ser lida no espelho, reinvertida, a fim de dar sentido...

Esses homens dizem não te conhecer – porque se desconhecem a si mesmos, e através do seu falso Eu enxergam falso o seu Deus... Pois, afinal de contas, ninguém vê as coisas como elas são em si, mas assim como ele é ou julga ser...

Há muitos ateus à flor dos lábios – não há ateu no fundo da alma...

Se um chamado ateu estivesse intimamente convencido da não-existência de Deus, deixaria de guerrear esse Deus ou esse não-deus – porque ninguém hostiliza o que não existe. Só se agride o que é agressível por ser real. O espalhafatoso ateísmo do ateu é prova do seu teísmo. Só um teísta pode fazer praça do ateísmo. Um verdadeiro ateu, se existisse, faria do seu ateísmo silêncio absoluto e sobranceiro desdém, sem perder uma palavra na agressão de um inimigo inexistente.

Se ateus houvesse, seria o diabo o rei dos ateus – quando ele é, de fato, um decidido teísta. Tão grande teísta é ele que procura revoltar todos os seres contra a infinita Realidade, Deus. Ah! se Satã pudesse ser ateu!... Se pudesse convencer-se da não-existência de Deus!... Seria o fim do seu inferno e o início do seu paraíso... O ocaso do seu tormento e a alvorada da sua beatitude... Por ora, continua a grande noite... Mas Satã é por demais inteligente e realista para ser ateu, para negar a mais inegável das realidades... Ele é o teísta número um dentre todos os inimigos de Deus. O teísmo é o fundamento de seu feroz satanismo.Estar convencido da suprema Realidade, e não querer adorar essa Realidade, atingi-la só com a inteligência glacial e não com os ardores do coração – que horroroso tormento deve ser!... que agonia metafísica esse eterno conflito entre o “entender” e o “querer”... Ser teísta da inteligência e ateísta do coração – eis o inferno dos infernos!... Desejar a inexistência da suprema Realidade, e estar convencido da sua eterna e indefectível existência – como tolerar esse dualismo atroz dentro do próprio Eu?...

Um diabo ateísta e ateu deixaria de ser diabo, e deixaria de sofrer no seu inferno...

Homem que fosse realmente ateu devia ser mais satânico que Satã, devia ser um supersatã, um ultradiabo – suposto que tivesse suficiente inteligência para esse ateísmo satânico e esse satanismo ateu...

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Mas... por que há tantos homens que se dizem ateus?... Serão mentirosos todos eles?... Quererão todos eles enganar a humanidade com o seu pretenso ateísmo?

Não, eles não são, por via de regra, enganadores – porém enganados, auto- iludidos. Iludidos pelas penumbras do próprio ego, pela eterna esfinge do seu subconsciente.

O homem, esse “desconhecido”...

E essa ilusão radicada no próprio ego encontra, não raro, abundante alimento e adubo no ambiente social e religioso em que vivemos.

O deus que esses ateus negam é um pseudo-deus, um não-deus, um fantasma criado pelo ego e nutrido pela sugestão do ambiente. Engendram um deus à sua imagem e semelhança, e guerreiam esse aborto da sua filosofia, e investem contra essa caricatura da divindade com o mesmo furor grotesco com que certo cavaleiro medieval arremetia contra um batalhão noturno de inimigos – que não eram senão moinhos-de-vento...

O deus do ateu é sempre um “deus moinho-de-vento”, um “deus-caricatura”, um “deus-fantasma”, um pseudodeus moldado pela inteligência e pelo coração de seu autor...

O Deus real e verdadeiro não pode ser objeto de negação e de ódio da parte do homem, uma vez que esse Deus é a afirmação da Suprema Verdade e do Bem absoluto – objetos necessariamente afirmáveis pela inteligência e pela vontade. Não é possível que a inteligência, no seu estado normal, negue a Verdade conhecida como tal, nem é possível que a vontade não adulterada odeie o Bem que, como tal, se lhe apresente.

A inteligência só pode rejeitar a não-verdade, assim como a vontade só pode recusar o não-bem.

O que o chamado ateu nega é o deus da sua filosofia e do seu ambiente religioso. Esse deus cruel, mesquinho, vingativo, fraco, antropomorfo, choroso, amargurado, sem sorte nas suas obras, derrotado por seu inimigo, como inúmeras vezes aparece nas páginas da nossa literatura religiosa – esse deus não pode, naturalmente, ser afirmado nem amado por um sincero cultor da divindade, porque esse deus nem existe no mundo real, senão apenas na imaginação doentia dos seus infelizes autores... E bom é que não exista esse pseudodeus... Se existisse, devia todo homem sincero ser ateu...

* * *

Muitos são os homens “religiosos” – poucossão os homens “bons”.

É tão fácil ser “religioso”, no sentido comum da palavra – e é tão difícil ser “bom”, na verdadeira acepção do termo...

Para ser “religioso” basta praticar determinados atos cultuais que as religiões prescrevem a seus adeptos como necessários ou convenientes. Quem os pratica é considerado “religioso”, quem não os pratica é chamado homem sem religião, herege, ateu...

Mas, para ser bom, requer-se mais, muito mais. Ninguém é bom pelo fato de fazer isto ou aquilo – bom só é o homem pelo fato de estar em harmonia com o Infinito. Só uma atitude interna, um hábito permanente, um determinado modo de ser do Eu central é que faz o homem bom, e nunca um simples complexo de atos externos.

Pode um homem ser “religioso”, no sentido comum da palavra, e não ser bom – mas o homem verdadeiramente bom é sempre um homem profundamente religioso.

Do ser “religioso” dum homem ou dum povo pode-se fazer cadastro e levantar estatística – mas quem poderia crear um padrão ou elaborar um catálogo do

ser-bom dum homem ou dum grupo humano?... O fariseu no templo de Jerusalém exibiu a Deus magnífica estatística de sua religiosidade – mas voltou para casa “não ajustado”...

Ser-bom é algo tão delicado, profundo e sublime que não pode ser colhido nas malhas duma definição nem instituição humana.

Se fosse tão grande o número dos homens bons como o dos homens “religiosos”, talvez não houvesse quem se dissesse ateu. O homem “religioso” acha suficiente entender-se com Deus, ser bom diante dele – ao passo que o homem realmente bom tem de entender-se também com os homens, o que é muito mais difícil do que o entendimento com Deus. Para se entender com Deus, infinita Retitude, basta ser reto e bem-intencionado, traçar o seu pensar e agir como linha paralela à grande paralela da vontade de Deus. Mas para não entrar em conflito com as mil e uma linhas tortas dos homens, e isto sem entortar a própria consciência, requer-se uma geometria tão engenhosa e uma ginástica tão heróica que só mesmo um homem intimamente bom a consegue realizar sofrivelmente. E assim, dominados pela lei da inércia e do menor esforço, milhares de homens preferem ser “religiosos” a serem bons, porque isto é difícil, e aquilo relativamente fácil. Muitos chegam ao ponto de se sentirem como que dispensados de serem bons pelo fato de serem “religiosos”. Capitalistas da “religiosidade”, tornam-se verdadeiros indigentes da bondade – e abrem falência diante de Deus... Mas como são considerados, oficialmente, homens “religiosos”, levam ao chamado ateísmo muitos daqueles que quiseram ver homens cuja religiosidade culminasse em pura, perfeita e sincera bondade.

O homem “religioso” julga desobrigar -se diante de Deus, cultuando-o, segundo certos ritos e em determinados períodos, nas alturas de Garizim ou no templo de Jerusalém – ao passo que o homem bom se julga obrigado a cultuar a Divindade, sempre e por toda a parte, “em espírito e verdade”, sobre a ara duma benevolência perene e universal. É tão fácil subir, de vez em quando, ao monte Garizim, ou entrar no templo de Jerusalém – mas é imensamente difícil levantar dentro do próprio Eu um altar em que arda, perenemente, o fogo sagrado da bondade sincera amparado por mãos de solícita Vestal...

O chamado ateu bem quisera ser teísta se visse nos teístas protocolares uma religiosidade tão pura e grande que culminasse em sincera bondade... Quisera ver-lhes o credo explodir numa deslumbrante floração de ética... Quisera ver a estática rigidez dos dogmas eclesiásticos vibrar na elasticidade dinâmica duma luminosa benevolência... Quisera ver a árvore divina da fé coberta da viridente fronde de humana solidariedade... Quisera, numa palavra, ver nos teístas um indissolúvel consórcio entre o ser-religioso e o ser-bom...

Mas como o deus de milhares de homens “religiosos” é incompatível com o Deus do homem bom, afastam-se muitos bandeirantes da Divindade desse

deus arbitrário e convencional dos homens “religiosos” e vão em busca dum Deus no qual não possam apenas crer, mas que possam também amar sinceramente...

E dizem-se ateus...

É natural e óbvio que esses peregrinos do Absoluto e esses insatisfeitos cultores dum Ideal longínquo sejam, não raro, detestados como hereges e tachados de ateus pelos confessores da religiosidade oficial e protocolar. E, por fim, acabam eles mesmos por considerar-se ateus, eles que no seu insatisfeito teísmo sofrem mais dolorosamente a nostalgia de Deus e o tormento do Infinito do que os clássicos cultores da religiosidade. Afastam-se, não raro, dessa religiosidade burocrática e põem-se a bater ínvias florestas e vastas solitudes, em demanda do “Deus desconhecido”... Esses “ateus”...

“Não estás longe do reino de Deus” – disse Jesus a um desses bandeirantes do espírito. E a respeito de outro, afirmou: “Não encontrei tão grande fé em Israel...”

É triste o estado do homem falto de bondade – tristíssimo o estado do homem saturado de “religiosidade” e vazio de bondade. É que o homem “religioso” dificilmente se convence da sua indigência ética, em face da sua abundância dogmática; sendo milionário de atos cultuais, não acredita na sua mendicidade ética... Acumulou, através de anos e decênios, enorme capital de atos religiosos, verdadeiras montanhas de valores dogmáticos-litúrgicos, a ponto de se sentir como credor de Deus. Experimenta em si tão forte plenitude cultual que se julga pouco ou nada obrigado a praticar, ainda por cima, atos de benevolência.

Tipo clássico desse homem saturado de religiosidade e vazio de ética eram aqueles dois funcionários eclesiásticos que o divino Mestre delineou na parábola do “bom samaritano”. Vinham do tempo de Jerusalém, onde, por espaço duma semana, tinham praticado abundância de liturgia e cerimônias cultuais, e julgavam, assim, supérfluo praticarem ainda um ato de caridade para com o malferido viajor à beira da estrada de Jericó – e passaram de largo, na complacente convicção da sua religiosidade – ao passo que o samaritano, herege do credo, não se sentiu tão seguro capitalista espiritual e credor diante de Deus, e, impelido pela consciência da sua vacuidade, praticou sincera benevolência para com um homem desconhecido.

E esse herege é apontado por Jesus como modelo do homem espiritual, ao passo que os dois irrepreensíveis cultores da religiosidade oficial são condenados como homens sem espiritualidade.

No documento Huberto Rohden - Deus.pdf (páginas 49-54)