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Minha querida ex-deusa naturaMinha querida ex-deusa natura

No documento Huberto Rohden - Deus.pdf (páginas 69-74)

Minha querida ex-deusa natura

Quando em mim despertou o primeiro amor da minha vida ainda não vivida, verifiquei que esse amor era impessoal, intransitivo, sem determinado objeto externo.

Nenhum impulso de fora acendera em mim essa ignota centelha, nascera ela do meu próprio Eu, do íntimo quê da minha natureza.

“Geração espontânea”, esse amor, gerado simplesmente pelo Eu, sem o concurso de um Tu...

Para a gênese do amor concorrem, geralmente, três fatores: o sujeito, o ato e o objeto. No meu primeiro amor só havia sujeito e ato. Amava intensamente, com todo o dinamismo próprio da zona elementar da minha meninice em transição à adolescência.

Entretanto, não podia esse amor ficar, por muito tempo, assim, intransitivo. Encontrei um objeto.

Quando relembro aqueles tempos, verifico com estranheza que esse primeiro objeto do meu amor adolescente não era um ser humano determinado e conhecido como tal – mas era a Natureza, ou algo que dentro dela me fascinasse.

Não seria essa Natureza uma inconsciente camuflagem de algo mais definido?...

Enamorei-me panteisticamente dessa misteriosa “deidade” que habita no seio de todas as coisas, sobretudo no eterno sonambulismo das plantas e no semidormente psiquismo dos animais...

Por que me apaixonei pela alma da Natureza?...

Será por que não conheci infância e, instintivamente, queria fazer da grande e silenciosa Natura minha mãe terna e afetiva?

Quando, decênios mais tarde, li o livro Um Homem Acabado, de Papini, e vi que esse homem não tivera infância, mas como ele diz “nasceu velho” evoquei os meus anos crepusculares e reencontrei-me, em parte, na infância glacial do pequeno Toscano.

Oh! como te amei, incônscia mãe Natura!... Lancei-me em teus braços!... Aconcheguei-me a teu coração!... Cingi-te a meu peito!... Cobri-te de ósculos!... Fiz-te mil carícias... Segredei-te ao ouvido os nomes mais belos e queridos... Senti-me como teu filho dileto, ó mãe Natura...

Sobre as ondas imperceptíveis do instinto, procurava eu numa infância tardia beber as águas duma fonte que para meus lábios infantis não haviam jorrado quando jorrar deviam... Quis, por assim dizer, desnascer, voltar às entranhas da Natureza, a fim de poder renascer, nascer de verdade, para uma vida mais autêntica e humana que aquela que eu vivera, ou pseudovivera... Quis, inconscientemente, retificar numa segunda infância os erros que a primeira infância cometera contra mim – à minha revelia...

É esta a filosofia com que, mais tarde, procurei explicar o inexplicável daqueles meus amores para com a Natureza. Entretanto, confesso a minha insuficiência: não compreendo a última razão de ser desta minha grande afeição cósmica. A mais profunda e verdadeira raiz do amor está na zona noturna do subconsciente – e todo o meu ser era, nesse tempo, um vasto subsolo crepuscular do meu Eu posterior, consciente. O despertar do intelecto é apenas o início da consciência; mas esta transição das trevas à luz é gradual e paulatina, como o desmaiar da noite, o entressorrir da aurora e a plena vigília do dia.

Eu, embora acordado, era ainda uma espécie de semidormente, quase um sonâmbulo de olhos abertos. Nessa zona crepuscular se movia então a minha vida psíquica, porque a vida espiritual propriamente dita dormia ainda.

Faminto e sedento duma infância não vivida, adivinhei a minha afinidade com esse mundo dormente e eternamente crepuscular, que chamamos Natureza. Procurei, nesse mundo silente, o meu lar materno, o meu jardim d’infância...

* * *

Mas... a Natureza que eu tanto amava não correspondia aos meus amores de adolescente infantil. Não me dava confiança. Fugia de mim. Fechava-me as portas para seus mistérios íntimos...

E, quanto mais fria e negativa se mostrava a formosa “deusa Natura”, tanto mais ardente e positivo se tornava o meu amor, a minha paixão por ela... Por que não me queria como filho, quando eu lhe queria tanto como mãe?

Por que não me deu ao menos um simulacro de infância, para compensar aquela que infância não fora?...

Naquele tempo sofri imenso com essa atitude repulsiva da natureza em face das minhas declarações de amor.

Hoje, após alguns decênios de experiências externas e internas, agradeço-lhe a recusa. Se, naquele tempo, me tivesse a Natureza compreendido e feito a vontade – não teria eu acabado por me despersonalizar e diluir em seus misteriosos fluidos? não teria desaparecido, qual frágil onda, no oceano cósmico da Natureza impessoal?

Quem sabe se essas potências sinistras que regem os ínferos da zona noturna do mundo subconsciente não chegariam a descristalizar o cristal da minha personalidade consciente?

Se eu, ainda em princípios de minha evolução, sorvesse em cheio o dulcíssimo veneno da Natureza, sucumbiria, talvez, à sua vasta e profunda tragicidade... A Natureza é como o olhar da serpente: paralisa com seus eflúvios mágicos a resistência de quem ouse fitar-lhe temerariamente as negras pupilas...

Mais tarde, muito mais tarde, depois de atravessar oceanos de dores e decepções, voltei aos meus primeiros amores de adolescente; regressei ao seio da Natureza – e ela me recebeu de braços abertos... Desvendou-me espontaneamente os seus segredos... Convidou-me para entrar no santuário de Ísis...

Eu a amava, e amo-a ainda, como naquele tempo; mas, agora, amo-a como ciente e iniciado. E ela me corresponde, porque sabe que, na qualidade de ciente e iniciado, as minhas auras sintonizam com as pulsações do seu coração e vibram com as vibrações das suas artérias.

A vida, de insciente, me fez ciente... A dor, de profano, me fez sagrado... O amor, de cego, me fez vidente...

Por isto, reina entre nós uma grande e sincera amizade, uma profunda e silenciosa compreensão, uma afeição mútua que tem a serenidade outonal da amizade e a veemência primaveril do amor...

Um amor amigo...

Uma amizade amorosa...

* * *

E, para que tudo acontecesse assim como aconteceu, foi necessário, meu Deus, que eu naufragasse ao furor de grandes tempestades e fosse pelas ondas bravias dos teus mares, arrojado às praias tranquilas da tua grande paz...

O veneno mortal se me tornou medicina vivificante...

Estendeu-se o arco-íris do teu sorriso sobre o dilúvio das minhas lágrimas... Amanheceu nas nuvens sanguíneas do meu ocidente a serena alvorada do teu

oriente...

Tangeram os teus sinos divinos sobre os meus vastos campos de batalha... Cantaram os anjos de Belém em todos os Gólgotas da minha vida...

Após o grande naufrágio – arribei a Cosmorama...

Descobri que habitas nessa mística e silenciosa catedral da Natureza, onde a tua presença é intensa e dinâmica, querida e íntima...

Todas as coisas grandes são taciturnas e anônimas – e como podia o teu habitáculo deixar de ser a mansão do silêncio anônimo?...

O silêncio da Natureza é um reflexo e símbolo da tua infinita quietude, ó dinâmica Divindade!... Sob as frondes dormentes das árvores sinto a afinidade que há entre este silêncio e o teu eterno mutismo.

Parece-me, por vezes, que entre estas duas quietudes, a tua, meu Deus, e a da tua Natureza, existe apenas um véu muito tênue... Se meus sentidos conseguissem romper essa gaze sutil – que aconteceria? Ver-te-ia eu face a face? atingir-te-ia com as potências específicas do meu Eu humano?...

Os ruídos profanos do mundo são espessa muralha que se ergue entre mim e ti – o silêncio na Natureza é uma delgada cortina que se move ao mais ligeiro sopro...

Por isto era o teu Messias tão amigo da solidão do ermo e do silêncio das montanhas...

Por isto haurem os teus arautos forças sobre-humanas na larga quietude que passam a sós contigo...

Nessa discreta osmose recebe o vácuo humano algo da divina plenitude... Nessa diatermia celeste regeneram-se, à luz ultravioleta do Sol divino, as células depauperadas do meu organismo espiritual.

Nessa atmosfera puríssima inalam os pulmões de minh’alma, semi-asfixiados, o ozone vital dos grandes espaços azuis...

Por isso, meu Deus, eu amo a tua misteriosa mensageira, em cuja alma vives e palpitas tu mesmo, a tua potência, a tua sabedoria, a tua beleza, o teu amor, a tua infinita realidade...

No documento Huberto Rohden - Deus.pdf (páginas 69-74)