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53artes úteis Ao mesmo tempo, ele desprezava a validade das práticas artesanais como funda-

No documento As ambiguidades da doutrina (páginas 55-59)

mento para a produção de bens industriais, práticas que, mais tarde, foram associadas posi- tivamente ao design, porém de maneiras diferentes, em pelo menos três situações distintas: (1) pela própria Lina Bo Bardi, cerca de uma década após o fechamento do iaC, quando de sua atuação como diretora do Museu de Arte Moderna da Bahia; (2) pelos professores do Departa- mento de Teoria e História da Arquitetura da fau-usp, ainda nos anos 60 e (3) a partir de mea- dos dos anos 90, em função do debate sobre a identidade do design brasileiro, especialmente por meio atuação das jornalistas Adélia Borges e Maria Helena Estrada, já comentada na seção anterior. A rejeição ou incorporação do artesanato, bem como o reconhecimento ou refutação da ligação entre as práticas do designer e do arquiteto, constituem etapas do processo de au- tonomização do campo estudado. No que diz respeito à relação entre design, arquitetura e artesanato, Bardi comenta:

vale a pêna lembrar um pensamento do célebre arquiteto francês – um dos pioneiros da arquitetu- ra contemporânea – Auguste Perret, que disse: ‘Móvel ou imóvel, tudo o que ocupa o espaço – pert- ence ao domínio da arquitetura.’ E, de fato, nêsse sentido o desenhista industrial é um arquiteto (…) E é justamente isso que o I.A.C. visa: – a formação de desenhistas industriais com a mentali- dade de arquitetos. (…) Preciso ainda dizer que o I.A.C. não pretende formar especialistas (…) mas pretende antes de mais nada, equipar os alunos com uma atitude e orientação que os capacite de analisar e resolver qualquer problema técnico ou artístico, que tiverem que enfrentar no vastíssimo ramo do artezanato do século 20: O Desenho Industrial. (revista habitat: 1951, n. 03)

A indústria não pode trabalhar com os moldes do artesanato: os resultados dessas experiências foram cópias indecorosas, não correspondendo em geral às exigências do custo e do material. O que é preciso é uma escola nacional de desenho industrial, capaz de formar artistas modernos. Modernos no sentido de conhecer os materiais, suas propriedades e possibilidades e, portanto, as formas úteis e expressivas que requerem. Novas ligas metálicas, materiais plásticos, sintéticos, es- tão paulatinamente substituindo os velhos materiais, madeira, bronze, barro. Transferir as formas TXHGLJQL¿FDPRVJUDQGHVPDWHULDLVGRSDVVDGRVLJQL¿FDWUDtODV(FRQWLQXDQGRSHORFDPLQKR antigo, não será possível encontrar o novo. Desde tempos estamos repetindo: não formando, a SUySULDLQG~VWULDVHXVQRYRVDUWLVWDVQmRFRQVHJXLUiEDVHDUVHVREUHDOLFHUFHV¿UPHVHDSURSULD- dos. (bardi apud leon: 2006)

No que diz respeito aos mecanismos garantidores da legitimidade do iaC, Bardi procurou FRQIHUtORVSRUPHLRGD¿OLDomRGHVHXLQVWLWXWRDSUHVWLJLRVDVHVFRODVHVWUDQJHLUDVFRQIRUPH divulgado na revista Habitat, o curso foi adaptado do “célebre curso do Institute of Design de

&KLFDJRGLULJLGRSHORDUTXLWHWR6HUJH&KHUPD\HWW VLF HIXQGDGRHPSRU:DOWHU*UR- pius e Moholy-Nagy como uma continuação do famoso Bauhaus de Dessau”, representando,

portanto, “as principais idéias da Bauhaus, depois de seu contato com a organização indus-

trial norte-americana.”

Conforme discussão apresentada no capítulo 5, desde meados dos anos 90, a adoção de pedagogias estrangeiras para o ensino brasileiro de design vem sendo severamente questio-

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nada por alguns segmentos do campo, sob a alegação de que o Brasil detinha, nos anos 50/60, características culturais e demandas estruturais completamente incompatíveis com o ensino de viés modernista desenvolvido na Europa, e que foi supostamente adotado às cegas no Bra- sil. Nos anos 50, no entanto, pelo menos no entender de Pietro Bardi e das pessoas ligadas ao iaCDHVSHFL¿FLGDGHEUDVLOHLUDSDUHFLDVHUSOHQDPHQWHUHFHSWLYDjTXHOHPRGHORGHHQVLQRTXH tinha a virtude de associar as melhores características das escolas assumidas como parâmetros (leon 1RTXHGL]UHVSHLWRj¿OLDomRSHGDJyJLFDGRiaC-masp – à Bauhaus/Dessau e ao

Institute of Design de Chicago –, o que estava de fato em jogo não era a adoção de um modelo

de ensino, conforme manifestava Bardi, nem tampouco a fundamentação política de caráter social-democrata proposta por Gropius e Moholy-Nagy para aquelas duas escolas, mas a no- breza cultural (bourdieu: 2008a) que ambas as escolas e seus mentores adquiri-ram após sua absorção pela cultura americana no segundo pós-guerra.

Teria sido justamente por isso que Bardi conseguia conciliar, sem constrangimentos, a social-democracia de Gropius e Moholy-Nagy com sua admiração ao trabalho de Raymond Loewy, designer francês radicado nos Estados Unidos, severamente combatido pelos mod- HUQLVWDV FRQYLFWRV SRU DVVXPLU TXH XPD GDV ¿QDOLGDGHV GR GHVLJQ HUD DODYDQFDU DV YHQGDV através da sedução dos consumidores pelas formas agradáveis e aerodinâmicas dos produtos. As posições de Loewy, condizentes com as expectativas do empresariado americano e com o

american way of life, chocavam-se frontalmente com as concepções esquerdistas de arte, ar-

quitetura e design professadas por Gropius e Moholy-Nagy, para quem a educação, o projeto e DSURGXomRGHREMHWRVGHYHULDPWHUXPD¿QDOLGDGHPDLVKXPDQLVWDHKROtVWLFDGRTXHXWLOLWD- rista e voltada ao lucro (leon: 2006).

$GHVSHLWRGHVVDLQFRPSDWLELOLGDGHHGDVGL¿FXOGDGHVFRQFUHWDVHQIUHQWDGDVSRU*URSLXV e Moholy-Nagy em solo americano para a condução das escolas que dirigiam, no momento da

Páginas da revista Vogue, QDTXDO¿JXUDDUHSRUWDJHP “Tributo à Bauhaus´GHPRQV trando o prestígio cultural do qual ainda desfruta a escola alemã Bauhaus.

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fundação do iaC-maspD%DXKDXVHVHXVFULDGRUHVMiWLQKDPVLGRGHYLGDPHQWHUHVVLJQL¿FDGRV

nos termos da cultura de consumo norte-americana, processo iniciado em 1929 pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, com a promoção de algumas exposições de grande importância. Assim, se na origem da Bauhaus as preocupações de seus integrantes eram de caráter indisso- FLDOYHOPHQWHHVWpWLFRHSROtWLFRD³¿OWUDJHP´GDTXHOHVLGHDLVSHOR0R0$WUDWRXGHWUDQV¿JXUi ORVDWUR¿DQGRVHXVIXQGDPHQWRVSROtWLFRVHDPSOL¿FDQGRDLPSRUWkQFLDGRYDORUHVWpWLFRGRV REMHWRVJHUDQGRXPDHVWLOtVWLFDTXHWLQKDD¿QDOLGDGHGHRSRUVHjRXWUD±DGRstyling, que era DVVRFLDGDjYXOJDULGDGHGRPHUFDGR$HVWpWLFDFRQVDJUDGDSHOR0R0$¿FRXFRQKHFLGDFRPR

Good Design, e seus princípios estéticos – bastante assemelhados ao cânone modernista –,

baseavam-se na ausência de ornamentações, no respeito às formas geométricas puras, no uso de uma paleta cromática reduzida e no uso não-subversivo de matérias-primas; esses princí- pios rivalizavam com a estética do chamado styling que, por sua vez, era assumida como um mecanismo de sedução para atrair os consumidores e alavancar as vendas (Woodham: 2004, 177).

As imagens do lado esquerdo (barbeador da Braun e mobília desenhada por Marcel Breuer nos anos 20) representam os ideiais da boa forma, em contraposição aos ideias da estética do styling, represen- tada pela imagem acima (uma encera- deira, desenhada pelo designer francês Raymond Loewy)

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Ao adotar a Bauhaus e o Institute of Design como matrizes do iaC-masp, Pietro Bardi teria sido motivado por uma propriedade simbólica particular de ambas as escolas, especial- mente forte naquele momento e precisamente no contexto norte-americano: a associação en- tre a nobreza cultural (bourdieuD GD%DXKDXV±RXGDTXLORTXH¿FRXFRQKHFLGRFRPR “estilo Bauhaus”, construído pelo MoMA mediante a fusão dos pressupostos éticos e estéticos originais na noção de Good Design – e a operatividade dos métodos projetuais difundidos no

Institute of Design, afeita a atender aos interesses mercantis americanos.

A reputação positiva das duas escolas matrizes do iaC-masp, que conjugava nobreza cul- tural e pertinência empresarial, era conveniente a Bardi na medida em que seu projeto im- plicava o combate às elites conservadoras de então, por meio do combate aos seus hábitos e gostos, ligados ao ecletismo e à noção de artes decorativas, pela proposição do gosto moderno. Tendo isso em vista, leon (2006) compreende que o lugar destinado ao designer formado pelo iaC-masp era junto das elites empresariais, como responsável pelo trabalho intelectual de con- ¿JXUDURVREMHWRVHWDPEpPSHODDWXDOL]DomRFXOWXUDOGDFODVVHHPSUHVDULDORTXHVyHUDSRV- sível mediante a circulação de tais pretendentes pelo universo da alta cultura, condição provida por Bardi no iaC e no masp, o que conferia aos designers o mesmo estatuto dos artistas.

Tratava-se portanto, muito mais de uma luta entre duas frações da classe dominante bra- sileira, travada por meio da arte e dos estilos de vida (bourdieu: 2008a), do que da defesa dos ideais originariamente socializantes da Bauhaus. Com efeito, em nenhum trecho de seus dis- cursos sobre o iaC Bardi evocava o caráter utópico do design ou o seu papel emancipador; para ele, o que estava em questão era a disseminação de sua ideia de bom gosto, em íntima conexão com o chamado “espírito contemporâneo” e com o poder econômico ligado aos industriais (leon: 2006).

No que diz respeito ao fechamento do iaC-masp, Leon explica-o a partir das interpreta- ções de Florestan Fernandes, Celso Furtado e Novais e Mello sobre o empresariado paulistano, descartando as hipóteses de que o encerramento da escola tenha ocorrido devido à sua pre- cariedade, ou à uma suposta disposição anti-capitalista – tais como eram os ideais originais da %DXKDXVDVVXPLGDSRU%DUGLFRPRXPDGHVXDVPDWUL]HV±HGHVFDUWDQGRSRU¿PDKLSy- tese de que não haveria no Brasil público consumidor receptivo (tanto em termos econômicos TXDQWRHPWHUPRVFXOWXUDLV jVQRYLGDGHVDGYLQGDVGDTXHOHWLSRGHDWXDomRSUR¿VVLRQDOMi que a população urbana e a classe média brasileiras estavam em acelerada ascensão, tendo seus gostos e hábitos fortemente abertos à renovação. Leon lembra, ainda, que a quantidade de HPSUHVDVSRWHQFLDOPHQWHLQWHUHVVDGDVQRWUDEDOKRGRGHVLJQHUHUDVLJQL¿FDWLYDQmRUHVLGLQGR nesse fator a razão fechamento do iaC.

Para essa autora, o fechamento do instituto é tributário dos seguintes fatores: (1) a capa- cidade intelectual limitada do empresariado paulistano para compreender os efeitos do ensino artístico sobre a produção industrial; (2) a vigência da noção de arte como sendo totalmente

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