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CAPÍTULO 3 2005, O ANO EM QUE O GOVERNO QUASE CAIU

3.6 AS IRONIAS DO ENUNCIADOR

A ironia de Veja é basicamente uma figura de linguagem “pela qual se diz o contrário do que se pensa, com intenção sarcástica” (Cherubim, apud Márcia Benetti, 2006). A ironia trabalha de maneira dialógica ou intersubjetiva, o que significa que ela exige que o interlocutor se posicione de um determinado modo, sob pena de o efeito simplesmente não se concretizar.

Segundo a autora, existe na produção do discurso uma atitude potencialmente irônica, já que a construção do sentido irônico depende, além de quem ironiza, também do interlocutor ou leitor. Existem basicamente quatro modos (Cherubim apud Benetti, 2006) de expressar a ironia, sendo a antífrase e o sarcasmo os modos mais comuns.

“A antífrase exprime idéias antitéticas por meio de palavras de sentido contrário, e o sarcasmo configura-se como uma ironia desqualificadora, ofensiva ou até mesmo injuriosa. A antífrase não é necessariamente desqualificadora, e pode-se recorrer a ela para construir um sentido positivo – quando, por exemplo, alguém diz “Fulano é horroroso”, querendo dizer que Fulano é, na verdade, tão bonito que sua beleza é óbvia. Já o sarcasmo, que se constrói de modo mais explícito, é sempre um deboche altamente crítico parêmia, outro modo de expressão desta figura de linguagem, é o recurso de repetir, de modo debochado, um ditado popular que encerre em si mesmo o caráter irônico – como na expressão “ensinar o padre a rezar missa”, por exemplo. E o eufemismo é a modalidade pela qual se abranda um sentido que originalmente poderia ser tomado como grosseiro ou chocante. Evidentemente identificar a ironia, em especial a eufemística, exige, de parte do analista, uma avaliação criteriosa do sentido geral do texto” (Benetti, 2006)

Se a ironia quer significar o contrário do que diz literal ou explicitamente, então precisa indicar ao leitor que ali existe uma espécie de farsa ou simulação. Precisa indicar o que se costuma denominar contexto de incongruência (entre um sentido positivo e um negativo, por assim dizer) ou, dito de outro modo, precisa construir as marcas de uma literalidade que deve ser recusada pelo interlocutor. A ironia é um tipo muito específico de discurso da ambigüidade, entendendo-se aqui a ambigüidade como uma estratégia: “Longe de ser apenas um procedimento estilístico inefável, ela [a ambigüidade] se torna fonte de estratégia discursiva e elemento constitutivo de poder” (Ferreira apud Benetti, 2006).

“Em suma, para a que ironia surta efeito, é absolutamente indispensável que os sujeitos do discurso tenham as mesmas referências. Nunca existe uma sinalização do tipo ‘aqui vai uma ironia’, pois está subentendido que os interlocutores se reconhecem como seres inteligentes e capazes de localizá-la. No movimento em que o sentido-primeiro, literal, é recusado e substituído por um sentido-segundo, até então ausente, constrói-se um campo de implícitos que funciona como um jogo. Aqui só joga quem possui, além de todas as outras informações concretas dispostas pelo discurso, esta capacidade incomum de compreender pelo avesso” (Benetti, 2006)

Para a autora, ironia é um poderoso recurso de formação de opinião. Além de lutar para definir uma agenda pública e os critérios de relevância do conhecimento – o que vale a pena saber –, Veja, ao usar a ironia, exercita o poder de dizer: “isto é imoral, grotesco ou simplesmente ridículo; e você, leitor, evidentemente não pensa (não pode pensar) diferente de nós, pois pensar diferente de nós tornaria você imoral, grotesco ou ridículo”. O enunciador irônico, ao ridicularizar algo, imediatamente institui um parâmetro de normalidade, indicando o que seria aceitável ou razoável. A ironia, segundo Márcia Benetti, se movimenta sempre sobre um eixo de moralidade.

“O ironista não é imoral: ao contrário, ele obriga a imoralidade a sair do esconderijo, imitando seus defeitos, provocando-os, parodiando sua hipocrisia, de forma que ninguém mais possa acreditar nela. O riso do ironista é sempre calculado, intelectualizado, refletido” (Minois apud Benetti, 2006).

Em Veja, a ironia é utilizada geralmente como um recurso de desqualificação de algo: de uma pessoa, de um lugar ou de uma prática qualquer. O sarcasmo é o modo mais recorrente do texto irônico de Veja, pois lança mão do deboche explícito para imputar características desprezíveis a algo ou alguém. É assim que a revista trata o governo Lula. O estilo irônico de Veja faz um duplo e importante movimento neste jogo de linguagem. Por um lado, a ironia fortalece a opinião da revista, editorializada e nada fortuita, sobre certas práticas, pessoas ou lugares. Por outro lado, estabelece com o leitor uma relação de cumplicidade interpretativa.

“O sentido geral que a revista estabelece é algo como ‘eu digo o que penso, e o que penso é que isto é tão imoral ou ridículo, que obviamente você, leitor, não pode discordar de mim, pois você não é imoral ou ridículo (ou é?)’. O leitor, ainda que não saibamos como ele processa de fato este posicionamento do veículo, é instado a pertencer a uma comunidade discursiva na qual determinadas idéias são tomadas como ‘naturais, evidentes e verdadeiras’. A ironia é um recurso ousado que, no limite, pode colocar em questão a credibilidade de um veículo. Se o leitor é suficientemente inteligente para perceber que se trata de um sentido-segundo, e não de um sentido-primeiro literal, é razoável pensar que seja suficientemente inteligente para perceber as intenções editoriais da revista, em um plano mais geral. O que percebemos em Veja é a imagem de um leitor articulado, com certo nível de compreensão do mundo e da própria linguagem, e, paradoxalmente, a imagem de um leitor ingênuo, cuja opinião deve ser construída pelos jornalistas. A ironia é, a despeito de todos os seus riscos, um modo de exercer poder – o poder de dizer,

qualificar, desqualificar, julgar e tornar ‘procedente e autorizada’ a fala de quem diz” (Benetti, 2006).

3.7 REAFIRMANDO A IMPARCIALIDADE

O jornalismo da revista Veja nunca foi tão criticado como em 2005. Talvez por isso, a revista tenha usado grande parte dos editoriais do período da crise do “mensalão” para justificar sua cobertura. Com um discurso auto-referencial, o enunciador se mostra forte, posicionado, propositivo, sentenciador e juiz nos editoriais.

“Veja, em particular, e alguns poucos órgãos da imprensa brasileira podem se orgulhar de dar sempre o pontapé inicial na luta contra corruptos e corruptores”. (25 de maio) "Veja reafirma aqui que não escolhe suas reportagens investigativas com base em preferências partidárias ou ideológicas – e as publica porque a hipótese oposta, a de engavetá-las, seria eticamente intolerável. A revista não tem a intenção ou a vontade de que suas reportagens causem crises políticas ou desestabilizem governos democráticos. Como sempre fez em seus 37 anos de história, Veja toma a decisão de publicar denúncias tendo como único objetivo servir a seus leitores e ao interesse público” (01/08/2005).

Para justificar que não tem posicionamento ideológico, o semanário diz que suas “convicções se firmaram muito antes que aquelas duas correntes políticas (PT e PSDB) tivessem se organizado como partidos. Gerações de jornalistas passaram pela redação de Veja e a diversidade de pensamento dos mais brilhantes sempre se espelhou nas reportagens publicadas pela revista” (22 de junho). O semanário explica que não tem qualquer interesse financeiro na política, porque a propaganda “permite às publicações praticar um jornalismo crítico e independente. Os anunciantes e os leitores, que compram a revista em banca ou por assinatura, são as duas únicas fontes de receita de Veja” (06/07/2005).

A revista também nega que lance mão do “denuncismo”, “uma doença terminal do jornalismo que se manifesta em momentos de crise política profunda como a atual. É vital não deixar esse mal se instalar”.

“A vacina contra o denuncismo passa pela apuração diligente, árdua e trabalhosa dos fatos que se julga imperioso levar ao conhecimento da opinião pública. A isso se

segue a edição do material em que a ênfase e a indignação não devem jamais degenerar em escárnio ou julgamentos sumários das pessoas envolvidas. Veja sempre se pautou por esses critérios. As reportagens recentes da revista sobre o excesso de liberalidades de políticos e empresários com o dinheiro público elevaram ainda mais esses padrões. Veja não fez denúncias. Apresentou provas irrefutáveis”. Diz que “a atual série de reportagens de Veja desnudando a corrupção começou em maio com a divulgação do que talvez seja a mais explícita e incontestável evidência já trazida a público por um órgão de imprensa”. E conclui que “entregar aos leitores o resultado da busca honesta e isenta da verdade é um requisito do bom jornalismo. Para Veja é um dever” (13/07/2005).

O enunciador se posiciona como um fiscalizador, que “é a missão jornalística por excelência”. Mas parece estar na defensiva: “No caso de Veja, o cantochão mais ouvido é que ela é 'parcial'. Há quem o entoe agora, por causa da cobertura extensa e aprofundada que a revista faz dos escândalos que colocam em xeque o governo Lula. Como se fatos sobejamente provados fossem um diz-que-diz inconseqüente. Como se Veja fosse antipetista. Nada mais longe da verdade. A revista não é, nem nunca foi, inimiga de forças políticas (...) Veja não é inimiga de certos partidos nem amiga de outros. A revista é, simplesmente, a favor do Brasil. Contra os que lhe malfazem, os que lhe roubam. A vista da nação” (03/08/2005)

Em 28 de dezembro de 2005, a revista da retrospectiva – última do ano – traz um editorial assinado Roberto Civita:

"Ao longo deste ano, Veja – mais uma vez – liderou a cobertura da imprensa sobre corrupção no governo. Isso resultou no descobrimento de um gigantesco esquema de desvio do dinheiro público na órbita do governo federal (...) Resultou, também, em inúmeros ataques a Veja e à Abril, acusando-nos de publicar 'fantasias'' e 'injúrias''. E levou o presidente Lula – após mais de cinco meses de evidências crescentes de que algo estava podre no Estado brasileiro – a falar de 'denuncismo vazio' e 'golpismo das elites'.... "Veja faz o que faz ao desvendar esquemas de corrupção em qualquer esfera pública não pelo gosto de fazê-lo ou para aumentar a sua circulação (que é baseada em 1 milhão de assinantes e conta com um fiel contingente de leitores que compra a revista nas bancas toda semana) – de longe a maior de qualquer publicação do país. Não porque apoiamos este ou aquele partido ou candidato. Não porque estamos defendendo ou promovendo 'interesses ocultos'' ou 'propósitos escusos''. Não porque somos insensíveis ou agressivos ou destrutivos. Mas porque entendemos que essa é a função e a principal responsabilidade da imprensa. Procurar a verdade e contá-la. Esclarecer, analisar, e interpretar.

Contribuir para o debate público. Exigir respeito ao estado de direito. Defender as instituições, e não os homens.Acreditamos que isso contribui para a indispensável tarefa de fortalecer a nossa democracia. Para que o país realize o seu enorme potencial em benefício de todos os brasileiros. E não apenas daqueles que consideram os cargos públicos sinecuras para se beneficiar individual ou coletivamente. Veja promete continuar por esse caminho".